Por Aline Noronha (alinenoronha@usp.br) e Henrique Giacomin (henrique.giacomin@usp.br)
Em 17 de junho de 1994, Alemanha e Bolívia se enfrentaram em Chicago na estreia da Copa do Mundo dos Estados Unidos. Os olhos de todos estavam atentos ao que viria depois do primeiro apito, porém a atenção dos norte-americanos se desviou dos gramados; em seus televisores, uma cena de suspense real e sem precedentes estava sendo transmitida ao vivo.
A imagem de uma caminhonete Ford Bronco branca, perseguida por dezenas de carros da polícia pelas ruas de Los Angeles, paralisou o país. Dentro do veículo, O.J. Simpson — astro do futebol americano, ator e comentarista —, suspeito do assassinato brutal de sua ex-mulher Nicole Brown Simpson e do amigo Ron Goldman, fugia das autoridades em um episódio que interrompeu as transmissões da Copa e prendeu a atenção de milhões de espectadores.
A perseguição contou com mais de 95 milhões de telespectadores, sendo que muitos foram pessoalmente na avenida para acompanhar a fuga, alguns inclusive com cartazes apoiando O.J. [Reprodução/Wikicommons]
O caso de O.J. Simpson, que começava a tomar as manchetes, iria além de uma acusação de crime passional. A perseguição televisionada era apenas o início de uma saga judicial e midiática que, até hoje, permanece gravada na memória coletiva dos Estados Unidos e do mundo, envolvendo questões de racismo, violência doméstica e o poder da fama.
Nasce um astro talentoso e violento
Nascido de uma família humilde, em 1947, na cidade de São Francisco, Orenthal James Simpson viu no esporte uma oportunidade de mudar de vida ao ingressar na Universidade do Sul da Califórnia (USC). Em 1968, ele conquistou o Heysman Trophy, troféu dado ao melhor jogador da temporada no futebol americano universitário.
O.J. já era ídolo quando ainda jogava pela USC. Famoso no campus, era visto como um exemplo de superação por meio do esporte. Na foto, recebe o prêmio de jogador da partida após marcar dois touchdowns [Reprodução/Wikicommons]
Ele foi draftado na temporada de 1969 pelo Buffalo Bills, para atuar como running back, posição marcada pela velocidade, por receber a bola e ajudar em bloqueios. Em entrevista ao Arquibancada, o social media do portal Endzone, Vinicius Soares, destacou que a importância dessa posição não é a mesma atualmente. Ele apontou que no período, passava-se muito menos a bola e corria-se mais, hoje a realidade é oposta, por essa razão, raramente um running back conseguiria a mesma visibilidade na Liga Nacional de Futebol (NFL).
Simpson liderou a liga em jardas corridas por quatro temporadas e, em 1973, se tornou o primeiro jogador da história da NFL a correr mais de duas mil jardas (1,82km) em uma única temporada. Apesar de outros atletas como Derrick Henry, running back do Baltimore Ravens,terem corrido a mesma distância, a diferença foi na quantidade de partidas usadas: enquanto este precisou de 16 partidas, O.J. fez em 14, o único até hoje a conseguir esse feito.
O atleta era conhecido pelo apelido “The Juice”. A origem do apelido não é exata, mas a relação provavelmente vem do nome de O.J., que também pode ser uma sigla para orange juice (suco de laranja, em inglês [Reprodução/Wikicommons]
Apesar do destaque, O.J. Simpson se aposentou em 1979, aos 32 anos, sem conseguir o tão sonhado Super Bowl. Para Vinicius, a ausência deste título se deu por falta de sorte: “Ele deu azar de competir na época de uma das melhores defesas da história da NFL, que ganhou quatro títulos do Super Bowl no intervalo em que ele estava no auge. Tinha pelo menos três times, naquele momento, que eram melhores do que o dele, como o Miami Dolphins, o único campeão invicto da história”. Ainda supõe que se O.J. tivesse estendido um pouco sua carreira no São Francisco 49ers, time no qual se aposentou após jogar uma temporada, ele teria ganhado um Super Bowl no fim de sua carreira, como fez Walter Payton no Chicago Bears em 1985.
Em sua vida pessoal, no ano de 1985, O.J. Simpson se casou com a garçonete e, posteriormente, atriz Nicole Brown, com quem ficou junto por sete anos até o divórcio por “diferenças irreconciliáveis”. Simpson não aceitou o divórcio e chegou a invadir a casa de Nicole em algumas ocasiões.
Em entrevista para a Arquibancada, Marisa Ricci, especialista em linguística forense e dona do perfil Lady From Stars nas redes sociais, afirmou que desde o início o relacionamento deles era problemático. Nicole era sua amante quando ele ainda estava em seu primeiro casamento, e o ex-atleta sempre apresentou comportamentos violentos e possessivos.
A polícia foi acionada diversas vezes por denúncias de agressão física, mas negligenciavam os chamados pela amizade com o atleta. Para Marisa a negligência policial dá ao agressor uma sensação de poder e de estar acima da lei, o que acaba motivando mais atos violentos. O.J. chegou a ser preso uma vez, mas Nicole retirou as acusações. Tal atitude é comum a vítimas de violência doméstica que possuem medo da represália de seu agressor.
Quando foram assassinados, Nicole Brown tinha 35 anos e Ronald Goldman 25 anos, o crime aconteceu pouco tempo antes do aniversário dele [Reprodução/Wikicommons]
“Eu nunca vi tanto sangue na minha vida”
No dia 12 de junho de 1994, às 21h15, Nicole Brown recebeu uma ligação do restaurante onde havia jantado com sua mãe e Ronald Goldman, avisando que um óculos foi esquecido na mesa onde estavam. Ronald voltou para buscar o objeto e, às 21h50, saiu do estabelecimento. Pouco tempo depois, às 22h15, os vizinhos escutaram o cachorro de Nicole latindo incansavelmente. Por volta de 00h10, eles foram conferir o que estava acontecendo na casa ao lado e encontraram os corpos.
No mesmo dia, às 21h30, O.J. Simpson e seu amigo Kato Kaelin foram ao McDonald’s e, às 21h45, retornaram para a casa do ex-atleta. Às 22h25, o motorista já estava em frente da casa de O.J. esperando para levá-lo até o aeroporto, no qual tinha uma viagem agendada para Chicago naquela noite. Ele tocou o interfone várias vezes, mas ninguém o atendeu. Algum tempo depois, ele viu uma sombra caminhando perto da mansão e, após tocar o interfone pela última vez, Simpson atendeu e disse que estava dormindo. Às 23h45, o ex-atleta estava em um avião em direção à Chicago.
Quando chegou na cena do crime, a polícia encontrou uma grande quantidade de sangue espalhado, pegadas, um gorro e um par de luvas. Às 4h30, após reconhecerem o corpo, quatro policiais foram à mansão de O.J. para comunicar os assassinatos e não o encontraram, mas descobriram manchas de sangue e uma luva correspondente a que estava perto dos cadáveres em seu carro. Nesse ponto, ele se tornou o principal suspeito e ordenaram seu retorno imediato a Los Angeles.
Nicole foi encontrada próxima às escadas da entrada (A) e Ronald perto dos arbustos (B). Pegadas que correspondiam ao número que OJ calçava também estavam na cena do crime (E), juntamente com o envelope com os óculos (D) e a luva de couro (C) [Reprodução/Wikicommons]
O caso “óbvio” que ficou sem solução
Marisa afirma que não se lembra de ter visto uma defesa tão forte como foi a de O.J. Simpson: “A partir do momento em que a pessoa tem dinheiro, a gente já sabe que o julgamento não vai ser o mesmo”. A sua defesa reuniu os maiores nomes dos Estados Unidos, como Robert Shapiro e Robert Kardashian, que estava aposentado e voltou à ativa apenas para defender o amigo. Evidentemente, para inocentar o atleta, os advogados negaram a relação violenta e possessiva que ele tinha com Nicole, além de insistir nos erros policiais, bem como na tensão racial.
O dream team de Simpson comprovou que Mark Fuhrman — um dos policiais envolvidos no caso e que achou a luva no carro do atleta, juntamente com outros objetos da cena do crime — era racista. Os áudios discriminatórios vazados foram usados para anular a eficácia dessas provas contra O.J. e defender que foram implantadas.
“A polícia de Los Angeles fez um cuidado ruim. A cadeia de custódia das provas foi mal feita, muitas coisas tiradas do lugar foram mal coletadas e isso abriu margem para a defesa ter por onde questionar”, opina Vinicius. Já Marisa afirma que esses erros policiais, apesar de raros atualmente pelos avanços tecnológicos, eram muito mais comuns e levaram muitos suspeitos (principalmente homens negros) a serem condenados injustamente.
A cena do crime estava com muito sangue, tanto de Nicole (especialmente na região do pescoço) quanto de Ronald, mortos a facadas [Reprodução/Wikicommons]
O ápice do julgamento aconteceu na análise de uma das provas: o par de luvas. A defesa afirmava que se estas não coubessem em Simpson, era uma clara afirmativa de sua inocência. Para Marisa, isso não poderia ser usado como forma de comprovar nada, haja vista que a luva era feita de couro, que pode ressecar quando mal manuseado. Além disso, a peça, que estava com muito sangue, foi esfriada e aquecida várias vezes por causa das análises de DNA. Por tais razões, somadas ao fato de O.J. ter artrite (que causa inflamação nos dedos da mão), a luva pode ter aparentado não caber, quando na realidade, assemelhava estar somente apertada.
“Se ele não era culpado, quem é este gênio do crime que conseguiu montar aquela cena toda e não ter nada?”
Vinicius Soares, do portal Endzone
Outras duas teorias sobre o que aconteceu naquela noite foram estabelecidas. A primeira seria a de que um homem chamado Glenn Cillian Rogers teria declarado em seu leito de morte que matou Nicole. Ele alega que O.J. o contratou para roubar um par de brinco delas e permitiu que a matasse caso tentasse o impedir. Já a segunda envolve o próprio filho do atleta: Jason Simpson teria matado Nicole em um acesso de raiva. Essa acusação se sustenta pelo seu álibi ser contestável naquela noite, além de ter histórico de violência envolvendo facas.
Para Vinicius, essas ideias são improváveis, haja vista que na cena do crime havia o DNA de apenas três pessoas: Nicole, Ronald e O.J. Simpson. Ele afirma que, para ter cometido um crime tão brutal e dominar as duas pessoas, o suposto assassino deveria ter sido muito mais forte do que ambos para sair sem qualquer arranhão e não deixar seu DNA no local.
“Era bem difícil isso [provar as luvas] ser solicitado durante o julgamento, tanto que eu achei midiático”, destaca Marisa ao Arquibancada [Reprodução/Wikicommons]
Los Angeles dividida
Mesmo após o júri considerar O.J. inocente, a vida do ex-atleta nunca mais foi a mesma. Se The Juice foi aplaudido ao sair do tribunal (em um bairro negro), ao chegar em sua casa em Brentwood (um bairro branco), a situação foi diferente. Cartazes o chamando de “assassino” e cobrando explicações sobre o caso se tornaram recorrentes, as aparições na televisão diminuíram drasticamente, e muitos restaurantes se recusaram a recebê-lo.
“Quando ele abraça a questão racial, divide a opinião da sociedade. A mídia, durante o julgamento, teve um posicionamento parcial, mas mesmo inocentado, as portas se fecharam. Ele não trabalhou mais na NFL nem fez mais filmes”
Vinicius Soares, do portal Endzone
Depois do caso, muitos dos amigos e inclusive os advogados de O.J. se afastaram dele, se destacando o distanciamento entre o ex-jogador e o advogado Robert Kardashian. No livro escrito por Johnnie Cochran, advogado que também fazia parte do dream team, o mesmo diz que sua maior vitória não foi inocentar O.J., mas as mudanças que o caso trouxe para o sistema judiciário norte-americano.
“É mais ou menos como se ele dissesse assim: ‘um bandido na rua livre vale o tanto de mudanças que isso vai causar’, entendeu? Não que eu concorde com isso, mas foi o que ele tentou passar”, diz Vinicius sobre o livro do advogado. Pouco tempo depois, lidando com a rejeição popular e com o alto custo de vida na Califórnia, O.J. acaba se mudando para a Flórida.
“Metade de Los Angeles faz festa e metade de Los Angeles chora pela libertação de um criminoso”, fala Vinicius ao Arquibancada [Reprodução/Wikicommons]
I’m not black, I’m O.J.
Outra vertente que gerou polêmicas no julgamento foi o fato de que O.J. nunca havia falado abertamente sobre o racismo e o movimento negro nos Estados Unidos, mas a defesa e o atleta adotaram essa estratégia. Em um contexto amplo, Marisa destaca a importância das questões raciais terem chegado ao tribunal, devido a inúmeras injustiças que as minorias sofrem historicamente, sobretudo, quando o caso é levado a júri.
Para evidenciar as mudanças em relação às décadas antes do caso de Simpson, a especialista em linguística forense pontua: “Se fosse antes, isso não teria relevância nenhuma, como na época do George Stinney, falar que foi algo racista não funcionaria de forma nenhuma. Nesse momento [do caso do O.J.], ele realmente poderia começar a falar sobre isso”.
Uma pesquisa realizada no período pelo portal Columbia Broadcasting System indicou que 76% dos brancos que participaram achavam O.J. culpado, enquanto entre os negros apenas 22% [Reprodução/Wikicommons]
“Ele não se sentia parte do movimento, como se pelo trabalho e talento tivesse rompido essa barreira. O dinheiro dele comprava o acesso a lugares e oportunidades para seus filhos”
Vinicius Soares, do portal Endzone
Na década de 1990, nos Estados Unidos, esse debate estava em efervescência por causa da intensa violência policial contra a comunidade negra. Tanto Vinicius quanto Marisa concordam que erguer a bandeira do movimento nesse momento foi interessante para o atleta.
(Se) eu tivesse feito isso
Em 2007, O.J. publicou o livro If I did it, com confissões “hipotéticas” sobre o assassinato de Nicole e Ron Goldman. Não se sabe ao certo o que o levou a escrever o livro, mas a obra não foi bem recebida pelo público. As confissões, hipotéticas ou não, em nada interferiram na absolvição de O.J., pois, segundo a Quinta Emenda da Constituição dos EUA, ninguém pode ser julgado pelo mesmo crime duas vezes.
Embora tenha sido absolvido criminalmente, O.J. perdeu um processo civil em 1997, no qual foi condenado a pagar mais de 33 milhões de dólares por danos à família de Goldman. Para satisfazer parte do julgamento, em agosto de 2007, um tribunal da Flórida concedeu os direitos do livro à família de Ron, que montou uma nova versão do livro, com comentários de familiares e outras pessoas sobre o caso.
Na nova versão do livro, é possível observar que o “if” [se] foi propositalmente diminuído e escondido dentro da palavra “I” [eu]. A família Goldman ainda adicionou “confessions of the killer” [confissões do assassino] ao título [Divulgação/Amazon]
Veredito: Culpado
Ainda em 2007, O.J. foi preso, acusado de roubo à mão armada e sequestro em um hotel-cassino de Las Vegas. Ele manteve em cativeiro comerciantes de objetos colecionáveis esportivos, dentre os quais artigos com seus autógrafos. Segundo suas próprias palavras, ele estava pegando de volta o que o pertencia por direito.
Após um julgamento muito mais rápido em relação ao primeiro, ele foi condenado a 33 anos de prisão. As vítimas disseram que foram rendidas pelo ex-atleta e por alguns outros homens, todos bem armados. Simpson negou estar armado, e afirmou que não sabia que seus amigos estavam.
Um dos artefatos envolvidos no crime é uma bola de futebol, ainda na caixa, com a assinatura do ex-jogador [Reprodução/Wikicommons]
Para Vinícius, o livro contribuiu com a pena de O.J. em seu segundo julgamento. Já com 60 anos, a pena de 33 anos foi quase como uma “reparação histórica” pela sua absolvição no caso de Nicole. Em 2017, Simpson teve o direito à liberdade condicional concedido e, em 2021, aos 74 anos, obteve uma dispensa antecipada. Em abril deste ano (2024), morreu em decorrência de câncer na próstata.