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Crime e Imprensa: como as mídias colaboram para difundir a cultura ‘true crime’ 

A sensacionalização irresponsável dos crimes reais tem impactos negativos para a sociedade e para as vítimas
Luiza Sanches (luizasanches.ribeiro@usp.br)

Casos criminais despertam um curioso e peculiar interesse no público: assassinatos, sequestros, serial killers. Quanto mais brutal e inusitado, maior a curiosidade do espectador. A prova disso está no sucesso de audiência de programas de true crime como o Linha Direta (1990; 1999-2007; 2023-) e o America’s Most Wanted (1988-). O gênero está por toda parte, nas redes sociais, Youtube, Twitter, TikTok, na televisão, jornais e até em séries na Netflix

America’s Most Wanted, programa americano de true crime que divulgava criminosos reais e pedia ajuda do público para encontrá-los [Imagem: Reprodução/Father Want Us Dead] 

Direta ou indiretamente, a maioria das pessoas consome true crime, pois, mesmo que o espectador não vá até a fonte do conteúdo, ele vem até quem assiste aos noticiários e outros veículos de comunicação utilizados no dia a dia. Poucas são as pessoas que não conhecem programas como o Cidade Alerta (1997), por exemplo, em que o apresentador relata  crimes e operações policiais em tempo real.  Seja como for, a atração humana pelo crime faz com que cenários em que se observam aglomerados de pessoas em frente a uma televisão noticiando um assassinato sejam comuns no cotidiano.  

O crime e seu fenômeno 

Mas, afinal, o que é True Crime? Em português, “crime real”, é um gênero que visa documentar e relatar casos criminais, detalhando os eventos, os suspeitos, a investigação e o desfecho. Para o sociólogo Alex Niche, há dois temas gerais que, desde os princípios da sociedade, mobilizam a atenção do público e explicam o porquê desse tema intrigar o ser humano: o crime e o sexo. Desde os folhetins no século 19, os fatos sociais que representam o rompimento da moralidade conquistam a curiosidade das pessoas.

“Esse fenômeno pode ter seus aspectos observados pela sociologia, mas suas raízes estão muito mais ligadas a uma dimensão psicossocial, que envolve questões psicológicas, socioafetivas e socioeconômicas, além das questões culturais e espirituais” afirma o sociólogo. Por mais monstruoso e violento que seja o comportamento criminoso, ele é profundamente humano. 

Por toda parte 

Que os programas criminais sempre estiveram em alta, isso já se sabe, e há ótimos exemplos de crimes amplamente conhecidos, como os assassinatos de Ted Bundy e de Jack, o Estripador. Mas o que pode ter começado em uma manchete de jornal sobre um serial killer nos subúrbios de Londres, de algum modo se desenvolveu até chegar ao modelo de documentário true crime tão popular nos dias de hoje  e disseminado em todos os canais midiáticos, desde a imprensa até a novidade do século 21, as redes sociais. 

Ted Bundy, conhecido como o “assassino de mulheres”, após condenado por seus teve inúmeras produções, séries, filmes e documentários, baseados em seus crimes [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons] 

Os novos meios de comunicação foram divisores de águas no processo que levou o true crime ao seu apogeu. Na internet, o gênero se revelou uma receita fácil e rápida para alcançar o sucesso de audiência.  A  popularidade do tema foi tamanha que até estimulou a volta do antigo programa Linha Direta, da TV Globo, que havia terminado sua transmissão em 2007.

A história de um crime  

Ao contar a história de um crime, há uma linha tênue entre a realidade e a romantização. Um passo em falso e o criminoso pode se tornar uma vítima aos olhos da população e da imprensa.

As diferentes narrativas, personagens, formas de contar a mesma história, bem como a perspectiva do culpado e até que ponto sua versão dos fatos pode ser validada são aspectos que devem ser levados em consideração ao relatar um fato criminal. 

Entre os riscos apresentados pela cultura do true crime está a romantização dos culpados. Não é incomum a mídia e o público distorcerem a imagem do criminoso, colocando-o como personagem principal da narrativa, muitas vezes até criando uma imagem de anti-herói ou vítima incompreendida da sociedade. Isso acontece devido a armadilha semiótica. Semiótica é o estudo da forma que o ser humano atribui sentido às representações visuais e, ao criar uma série ou reportagem de true crime, dependendo da maneira que os fatos são contados, as imagens, a caracterização dos personagens, a ambientação, entre outros elementos, diretores e roteiristas podem passar uma mensagem equivocada, contrária à ideia inicial. Nessa atmosfera, nascem os vilões romantizados, antagonistas colocados em primeiro plano, os tais dos “incompreendidos”, vítimas de uma sociedade opressora. 

A série Dahmer (2022) deixou o público com uma impressão equivocada do assassino [Imagem: Reprodução/Twitter/@Jabu_Macdonald] 

Essa confusão de narrativas é muito explorada pela própria indústria cinematográfica, em produções de grande impacto, como na série Dahmer (2022) da Netflix. Nela, vemos a história do famoso serial killer Jeffrey Dahmer, que assassinou 17 homens e garotos na década de 1980. Estranhamente, a imagem que a série deixou do criminoso foi de uma vítima, um homem perturbado, fruto de uma infância em um lar desfeito e sem acolhimento, como se seu passado justificasse seus crimes torpes. 

Ao dedicar uma série para contar o ponto de vista do assassino, os diretores e roteiristas permitiram que Dahmer se tornasse o protagonista da história, e suas vítimas, meros coadjuvantes. A dor, as mortes indignas dos jovens assassinados e o sofrimento de suas famílias tornaram-se plano de fundo para a narrativa do culpado. Enquanto isso, devido a enorme repercussão do seriado, o público e as mídias divulgaram a imagem romantizada de Jeffrey internet afora. 

O fenômeno visto na série é apenas um exemplo do que acontece na cultura true crime. A glorificação dos assassinos do massacre de Columbine, Dylan Klebold e Eric Harris, é outro dentre os inúmeros casos criminais amplamente explorados pela imprensa e pela indústria cinematográfica que resultaram na romantização dos culpados e, até mesmo, na criação de grupos de apoiadores. Até os dias atuais acontecem  massacres em escolas, inspirados pelo crime que deixou 33 vítimas em 1999.   

Imagens da câmera do refeitório capturaram o momento em que os assassinos invadiram a escola, atirando em alunos e professores [Imagem: Reprodução/Twitter/@truecrimewitch]

Outro exemplo famoso, dessa vez no Brasil, foi o sequestro de Eloá Pimentel, em 2008. Eloá tinha 15 anos quando foi colocada em cárcere privado por seu ex-namorado, Lindemberg Alves. O sequestro foi, o tempo todo, acompanhado ao vivo pela imprensa, o que resultou em interferência nas negociações entre a polícia e o sequestrador. 

Eloá permaneceu em cárcere privado por cinco dias junto de sua amiga Nayara Rodrigues [Imagem: Reprodução/Twitter/@CrimesReais]

Na ocasião, Sonia Abrão, apresentadora do A Tarde É Sua (2006), na RedeTV, entrou em contato com Lindemberg em uma ligação telefônica transmitida ao vivo para todo o país. Além disso, a imprensa fez o trabalho de romantizar a relação entre a vítima e o sequestrador, comparando o sequestro a uma briga de casal e chamando o evento de “crime passional”. Talvez seja possível dizer que, se o crime não tivesse se tornado um circo midiático, ele poderia ter tido um desfecho diferente, sem a morte da jovem Eloá. 

O sensacionalismo

Existe um dilema ético na divulgação de crimes reais baseado em uma série de fatores que podem gerar repercussão negativa, caso a informação seja disseminada de forma irresponsável, como a exposição da violência utilizada, os detalhes do crime e os agentes envolvidos. O sensacionalismo na cobertura dos crimes pode distorcer a percepção da realidade e contribuir para estereótipos e preconceitos. Ao destacar de forma exagerada casos isolados de violência, a mídia pode criar uma imagem distorcida de determinados grupos sociais, reforçando estereótipos negativos e alimentando preconceitos que marginalizam esses grupos. Um exemplo é o que aconteceu no caso de Jeffrey Dahmer, que reforçou estigmas para a comunidade LGBTQIA+ pela forma que a mídia escolheu noticiar a sexualidade do assassino e de suas vítimas. 

O sensacionalismo também pode influenciar negativamente o sistema de justiça. Ao destacar apenas os aspectos mais  dramáticos de um caso, a mídia cria uma pressão pública que compromete a imparcialidade e a justiça no processo legal. As possíveis consequências são linchamentos virtuais, pré-julgamentos e até mesmo erros judiciais, que prejudicam  a integridade do sistema e a garantia dos direitos fundamentais dos envolvidos.

E então, a questão permanece: como relatar um crime sem fomentar uma cultura do true crime irresponsável? Para o roteirista Guilherme Cesar, é preciso analisar quais histórias valem a pena serem contadas: “Eu não aceito narrar qualquer tipo de crime, não se ela não for muito carregada de sentido e construída de uma maneira muito cuidadosa. Para isso, é preciso muita responsabilidade para pesquisar e investigar a verdadeira história de um caso criminal”.

Guilherme é roteirista da série ‘PCC , Poder Secreto’ original da HBO Max, entre outras produções de true crime premiadas [Imagem: Reprodução/Instagram/@guilhermeccesar]

O true crime deve ter a função de revelar o que está por trás do factual. O roteirista afirma: “Não é sobre o crime em si só, isso é a menor parte da história, é sobre as paixões, os comportamentos e os contextos humanos sociais que levam àquele crime e aos seus desdobramentos”. Cada caso entrega um prato cheio para a discussão  de pautas relativas à violência, como ela se relaciona com o gênero, com a classe e as condições psicológicas dos envolvidos.  

Se produzido de forma consciente, com pesquisa e aprofundamento nas questões socioculturais e no comportamento humano por trás de cada crime, o true crime pode contribuir para compreender melhor as motivações dos culpados e, dessa forma, trabalhar para evitar que os fatos se repitam em um ciclo de violência.    

3 comentários em “Crime e Imprensa: como as mídias colaboram para difundir a cultura ‘true crime’ ”

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