Em uma locação já visitada antes por novelas das seis o cenário se constrói: a casa grande, decadente, aos fundos; um chafariz seco e desgastado pelo tempo, e duas longas fileiras paralelas de palmeiras, complementando a fachada rural. A região? Provavelmente o interior de Minas Gerais, apesar de caracterizar-se, essencialmente, como qualquer sertão brasileiro. O automóvel antigo que corta a estrada de terra em meio ao cerrado, associado ao figurino do passado, dá a localização temporal do filme. Trata-se do final dos anos 20, da Primeira República, no período da crise do café e do início da industrialização.
Sim, a descrição poderia retratar qualquer novela de época. Porém, um ingrediente dá toda a caracterização e o sentido verdadeiro da trama: o realismo mágico. Estamos falando de O coronel e o lobisomem (Idem, 2005), um filme baseado no livro homônimo de José Cândido de Carvalho. A história do coronel Ponciano de Azeredo Furtado e de seu rival, o bacharel em direito – e lobisomem! – Pernambuco Nogueira, na disputa pelo amor de Esmeraldina, prima de Ponciano, já foi tema de muitas produções de cinema e de televisão. Além do filme mais recente, dirigido por Maurício Farias e produzido por Guel Arraes, uma primeira versão para os cinemas já havia sido feita em 1979, por Alcino Diniz. A televisão, do mesmo modo, também contou com programas baseados na trama: uma telenovela na TV Cultura, em 1982, e um especial da Globo, em 1995.
O surreal no cotidiano
Mas o que teria feito com que, desde 1964, o romance ecoasse nas mentes brasileiras até hoje? Talvez a sua principal marca, a construção com base no irreal, nos moldes do realismo fantástico. Esse termo designa uma escola literária caracterizada por inserir elementos sobrenaturais em cenas do cotidiano, tratando-os como algo tão comum quanto o contexto em que estão inscritos. Um dos expoentes dessa vertente no cinema é o longa O labirinto do Fauno (El laberinto del Fauno, 2006). Já na literatura, o grande nome do realismo maravilhoso é o colombiano Gabriel Garcia Márquez.
Em O coronel e o lobisomem a questão do mágico permeia todo o filme, e é construída de um modo bem natural, garantindo verossimilhança à história. Isso se dá por meio das crenças. Na filmagem de 2005, podemos perceber diversas características folclóricas e surreais. A começar pelo próprio tema do filme, que traz à tona a lenda do lobisomem e a evidencia em uma das cenas em que Seu Juquinha, funcionário da fazenda Sobradinho e amigo de Ponciano, alerta o coronel sobre a verdadeira identidade de Nogueira. Para isso, ele mostra uma foto da família do advogado, e ressalta que ele é o oitavo filho precedido por sete irmãs, possuindo, portanto, os pré-requisitos para ser um lobisomem.
Outro ponto em que notamos traços do realismo fantástico é quando prima Esmeraldina é mostrada como uma sereia. Ela, de fato, segue o script da lenda: encanta os homens com sua beleza e os arrasta para o fundo do oceano. Esse mar, no caso do filme, é tanto real, quanto metafórico. A bela moça, por detrás da imagem de inocente que tenta passar, é responsável pela destruição tanto de Ponciano quanto de Nogueira.
As tradições folclóricas e o contexto social
Segundo Andrea Soares, professora que ministra a disciplina de Folclore Brasileiro no departamento de Artes Cênicas (CAC) da Universidade de São Paulo, “o folclore inclui costumes, crenças e tradições que vão passando de pai para filho e que têm algum sentido para se perpetuarem”. O longa de Guel Arraes é repleto de elementos que marcam o arraigamento dos costumes na sociedade brasileira. Um deles torna-se evidente quando prima Esmeraldina diz que Ponciano deve se sentar à cabeceira da mesa de jantar, porque recebeu a fazenda Sobradinho e a patente de coronel como heranças de seu avô, e deve ser tratado, a partir daquele momento, como o dono da casa.
Além disso, há uma cena em que o protagonista tenta conseguir uma esposa – dona Bebé, interpretada pela brilhante Andréa Beltrão – por meio de uma briga de galo. A prática dessa atividade é muito comum no interior do país, e simboliza um jogo de influência e de status. A possível noiva acabava de chegar de uma temporada de estudos na Europa. Essa é uma indicação do recorte sociocultural proposto na trama, e demonstra, particularmente, o complexo de inferioridade do brasileiro, que eleva o Velho Mundo ao título de reduto da cultura, modernidade e inteligência.
Sobre o contexto sociológico, Andrea comenta que “o coronelismo é um mecanismo socioeconômico de dominação que, até hoje, se perpetua disfarçadamente no Nordeste. Assim também se dava com os bordéis. Naquela época, mulheres não eram para o sexo, mas sim para o lar. A relação sexual só tinha a finalidade da procriação”. A professora ainda ressaltou o fato de as referências tradicionais no filme advirem, em sua maioria, de uma matriz civilizatória europeia, como influência da colonização.
Porém, uma das inscrições folclóricas que encerra o filme vem de outra realidade: tratamos agora da literatura de cordel. Os versos rimados recitados por Ponciano são característicos desse tipo de manifestação nordestina que transportou a realidade fantástica para a escrita, transformando os causos narrados oralmente em rimas gravadas nos cordéis. Sob essa perspectiva o longa se assemelha a O Auto da Compadecida (Idem, 2000), que também contou com Arraes em sua equipe de produção.
Em um mundo em que tradições e fantasias coexistem, o longa consegue transportar o telespectador para uma atmosfera lúdica e divertida. Ainda que não seja brilhante, por não ter nenhuma grande inovação tanto no roteiro quanto na estética, a trama desenvolvida é bastante envolvente. Assim, como os causos do protagonista, esta história sobre lobisomens, brigas de galo, sereias e coronéis entrou por uma porta e saiu por outra, quem quiser que conte outra!
Por Malú Damázio
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