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‘Deixe as estrelas falarem’: representatividade não é passe livre para racismo

Com erros de digitação e alguns acertos na representatividade, a trama decepciona e ainda assume tom racista

Rosa Okonedo se prepara para retornar à ativa. Ela é capitã do navio cargueiro Amasterasu, que navega pelas estrelas entregando carregamentos os mais variados para diferentes planetas-estados. Depois de pausar a carreira para cuidar da filha e da neta recém-nascida, a capitã sente saudades da velha rotina e reúne sua equipe para voltar às atividades. Tudo vai bem, mas há um problema: o Amasterasu perdeu seus antigos clientes durante o hiato, e agora luta para se manter no mercado. No entanto, tudo pode mudar quando Rosa recebe uma oferta tentadora — e perigosa — para transportar uma carga misteriosa. 

Esse é o enredo inicial da novela Deixe as estrelas falarem, de Lady Sybylla. A escritora, afeita à ficção científica, inspira-se na diversidade do Brasil para criar novos universos e refletir sobre o nosso, aqui na Terra. Publicada em 2020 pela editora Dame Blanche, a novela apresenta uma sociedade que já evoluiu suas tecnologias e se expandiu pelo espaço — mas ainda enfrenta questões complexas do nosso tempo. Complexas demais, a propósito; que não são resolvidas, e poderiam ser tratadas de maneira mais cautelosa.

O enredo promete uma história cheia de reviravoltas e conflitos morais (ao melhor estilo Six of Crows, de Leigh Bardugo). Rosa, depois de dedicar-se integralmente à família, volta ao mercado e se vê obrigada a aceitar um negócio perigoso. Isso, no entanto, não parece ser problema: para ela, tudo bem arriscar um crime ou outro pelo bem de sua família e tripulação. O verdadeiro dilema moral chega em outro momento da trama.

Um ponto interessante são as altas doses de representatividade que Lady Sybylla insere em seus personagens. São pessoas de diferentes etnias, contextos sociais e culturas distintas — e que, de alguma forma, assemelham-se com as que vemos no Brasil. É o caso de Irmã Cecília, enfermeira da tripulação, cujo filho era militar e foi morto durante uma batida policial. Esses detalhes, mesmo pequenos, nos conectam ao universo da história, que é tão distante do nosso no tempo-espaço. Nesse sentido, o tamanho da novela (apenas 70 páginas) é um problema: os personagens têm muito potencial a ser trabalhado, mas acabam abandonados e têm pouco tempo para desenvolver suas questões complexas, que de outra forma seriam muito ricas e tocantes.

Avançando na trama, depois de muita descrição sobre a rotina na nave Amasterasu, que não agrega à construção dos personagens, Rosa e sua equipe finalmente tomam posse da carga. De cara, ela já é muito estranha: abandonada no meio de um espaço vazio, a nave que a carregava se autodestrói em segundos. Logo na primeira noite, os tripulantes têm alucinações e distúrbios do sono. Para completar, o destinatário não aparece no local e hora marcada para a entrega da carga. Só então Rosa e sua equipe descobrem o que carregam: um Alien, espécie extinta no espaço há séculos.

É nesse momento que surge um segundo dilema moral — e, dessa vez, bem problemático. Conforme a protagonista explica — de forma apressada demais, sem que o leitor compreenda bem a gravidade da situação —, os Aliens são criaturas tão inteligentes quanto os humanos. Ultimamente, eles preferem isolar-se na borda do universo; mas, com suas tecnologias, contribuíram muito para a conquista do espaço pelos terráqueos. Assim, manter um Alien em cativeiro seria tão perverso quanto prender um ser humano, que é uma vida inteligente, engenhosa e tem sentimentos. 

Rosa, então, entra num dilema moral e compara sua situação com a escravidão praticada pela humanidade entre os séculos 15 e 19. É aqui que a autora comete um erro imperdoável: ela não deveria comparar a escravidão do neocolonialismo à captura de um ser extraterrestre. Em primeiro lugar, porque um alien não é um ser humano, e porque essa era a justificativa usada por potências europeias para escravizar povos da América, África e Ásia. Para os europeus da época, adeptos do darwinismo social, esses povos eram inferiores, menos do que seres humanos. Mesmo que não tenha sido a intenção, a comparação foi infeliz e de tom racista.

Por fim, Rosa decide libertar o Alien, num ato de compaixão (que é quase como uma síndrome de salvador). O final é morno, sem grandes acontecimentos e com gancho fraco para uma segunda aventura da série. O leitor finaliza a leitura sem se apegar a nenhum personagem, nem mesmo à protagonista, e com a sensação de um texto curto demais. 

De início, a obra é recheada de erros de digitação — caberia à editora maior cuidado na revisão. Um problema contornável, se o ritmo e progressão da história compensassem. No entanto, até isso deixa a desejar: a progressão é ao mesmo tempo arrastada em descrições de rotina e apressada demais em momentos de tensão e conflito. A grande premissa de Deixe as estrelas falarem — construir um universo instigante, com personagens duais e bem trabalhadas — também fica pelo caminho e deixa o leitor a ver navios (no espaço).

Banner do especial Brasilidades.

*Imagem de capa: reprodução/Editora Dame Blanche

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