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Delicadeza de Anúbis: a importância da tanatopraxia

A prática de conservação do corpo pós-morte para rituais fúnebres vem ganhando notoriedade nas redes sociais
Por Nicoly Modesto (nicoly.modesto@usp.br)

Você já foi a um funeral? Se sim, já viu que os corpos sempre estão com uma aparência natural, ou seja, a mesma que possuíam quando estavam vivos? Esse trabalho é realizado pelos profissionais de tanatopraxia, que ajudam no processo de restauração dos corpos. Assim como Anúbis, deus dos mortos e da mumificação na religião antiga egípcia, o tanato é responsável pela proteção e zelo dos corpos.

Porém, quais são as técnicas utilizadas para a conservação do corpo e qual é a importância desse trabalho? Esses questionamentos podem surgir ao pensar nessa profissão que vem ganhando popularidade nas redes sociais graças aos vídeos e histórias dos próprios profissionais da área.

O que é tanatopraxia?

A tanatopraxia é uma prática moderna que une técnicas de cessação dos processos biológicos de decomposição do corpo com as de conservação. Apesar de ser um procedimento originado do embalsamento egípcio, a tanatopraxia como é conhecida hoje surgiu em meados do século XIX com a Guerra Civil Americana. 

Os corpos de soldados estadunidenses eram arrastados e chegavam, muitas vezes, desfigurados para as famílias. Para amenizar o sofrimento, eles recebiam um cuidado visual. Aqui no Brasil, a tanatopraxia chegou no final dos anos 90, sendo o estado de Minas Gerais o precursor da técnica no país.

O processo ocorre apenas com a permissão de familiares. A técnica ajuda na higienização e na preparação para os entes queridos realizarem o velório de forma tranquila e sem riscos de contaminação com bactérias, vazamento de líquidos, ou entrar em contato com odores indesejáveis e doenças contagiosas. Ou seja, sua importância vai além do estético: ela também mantém, de forma segura, os últimos momentos do corpo com seus entes queridos.

Processos da tanatopraxia

De acordo com o professor Aldeir José da Silva, coordenador do Curso de Tanatopraxia da Universidade Federal de Minas Gerais, além da limpeza externa padrão, o processo também é feito no Sistema Circulatório do cadáver, com a difusão de conservantes nos vasos sanguíneos.

É realizada uma troca entre os fluidos corporais e um produto que possui o Formol como base, sendo um procedimento ativo em que se massageia o corpo e, por meio da aspiração ligada a uma artéria, todo o sangue é drenado. 

Através dos vasos cervicais, é realizada a dissecação com a introdução de uma cânula e a Bomba Injetora, que possui o produto dosado de acordo com o peso do cadáver. Isso resulta na infusão, que conta também com outro instrumento chamado “Vara Trocadora”. Ao perfurar os órgãos, é recolhido fragmentos de vísceras, gases, fezes, os deixando desidratados para eliminar alguns patógenos.

Essa é a descrição do processo num corpo clínico, ou seja, que não passou por uma necrópsia, já que um corpo necropsiado deve ser aberto novamente para o procedimento. “Depois disso, você lava o cabelo, faz maquiagem, a reconstrução facial, perfume e depois a finalização com a ornamentação. Se a família quer que pinte o cabelo, a unha, a sobrancelha, também”, explica o professor. “É todo um serviço que a família contrata”.

Foto de uma vara trocadora, usado em processos de tanatopraxia
A Vara Trocadora é um instrumento usado em um dos primeiros processos com o cadáver
[Imagem: Divulgação/Anúbis]
Imagem de dois galões e uma garrafa de tanatofluido arterial 26, líquido vermelho
O tanatofluido arterial 26 é utilizado para casos que precisam de maior tempo de sepultamento ou em mortes violentas.
[Imagem: Divulgação/Tanatus]

O professor, enfermeiro e técnico José Eustáquio Pereira Barboza enfatiza que algumas doenças como o Ebola, Covid-19 e Varíola dos Macacos podem usar o corpo como fator de contaminação. Nesses casos, as cerimônias acontecem em um período reduzido e com o caixão já fechado, o que previne a transmissão dessas doenças para o profissional e os familiares.

Profissão humanizada

A tanatopraxia consegue, através do seu trabalho, trazer um olhar de humanização do luto e do corpo. Para a profissional Tatiana Laguna, ver a tanatopraxia como um mercado causa a perda de sua verdadeira intenção de ajudar os outros. “Nunca é mais um corpo, e sim mais uma história, mais uma pessoa”. 

Ela também comenta que a morte de sua mãe e de seu filho a incentivaram a prosseguir com sua profissão, na qual está há mais de 21 anos ensinando e aprendendo. A forma de encarar o luto também se torna mais empática com a tanatopraxia, o visual do corpo pode confortar os enlutados, principalmente quando o cadáver demonstra serenidade.

Porém, ao mesmo tempo que carrega um tabu, o luto também atrai o interesse de muitas pessoas, principalmente quando está relacionado com artistas. A divulgação de imagens e vídeos da necropsia de alguns famosos como Marília Mendonça e Cristiano Araújo causam polêmica e prendem a atenção de pessoas curiosas. Mas até que ponto se vai pelo compartilhamento e curtidas no ramo da tanatopraxia?

 “Às vezes, a pessoa se aproveita da situação de um sistema fechado”, comenta Aldeir. “Nem todo mundo tem acesso ao necrotério, cadáver […]. Um dia me mostraram um vídeo de um técnico que nem sabia do que estava falando, mas com certeza a publicação gerou muitos likes e inúmeras visualizações”. O professor trabalhou no acidente de Brumadinho e complementa que o trabalho do tanatopraxista está relacionado à preservação da memória de uma pessoa, o que demanda uma ética com o corpo.

Redes sociais

Em redes sociais que possuem o recurso de vídeos curtos exibidos em uma linha do tempo infinita, como o Instagram e TikTok, vários profissionais fazem vídeos ou lives mostrando o seu trabalho e contando experiências e procedimentos para seus seguidores. 

O perfil Instrutora Josiane Oliveira tem, em suas redes sociais, mais de um milhão de seguidores,  assim como o perfil Bruno Tanato. Alguns desses perfis apresentam conteúdo mais sensível, ou seja, partes do corpo humano em procedimento, enquanto outros possuem apenas relatos, pequenos vídeos do seu dia a dia como profissionais, ou gravação de podcasts, outro meio que ajudou no impulsionamento da tanatopraxia nas mídias sociais.

Uma seguidora do perfil de Josiane Oliveira diz que acompanha seus vídeos porque tem uma curiosidade na morte desde criança, além de gostar de ver a delicadeza e respeito dos processos. Ela disse que gostaria de realizar o curso, porém sente receio relacionado aos próprios tabus da morte e espiritualidade.

Através da divulgação desse conteúdo, as pessoas continuam consumindo mídias que conversam sobre a pós-morte, além de divulgarem uma profissão que é desvalorizada pela sua construção dentro do país, que precisa formar profissionais capacitados para lidar não só com o corpo, mas também com os entes queridos.

A formação de um tanatopraxista

A tanatopraxia é um procedimento médico compartilhado. O laboratório precisa ter um médico como responsável técnico, seja um patologista ou um legista com curso de especialização em perícia médica registrado no Conselho Regional de Medicina. Porém, a maioria exige apenas um curso técnico da área de necropsia, já que a grande parte dos interessados já possuem uma formação ou conhecimento,  essencial, na área de saúde já que muitos realizadores vão para outras áreas da saúde como a enfermagem.

José Eustáquio, que também coordena um curso de tanatopraxia em Minas Gerais, explicou em entrevista que é importante ter uma turma mais intimista, com poucas pessoas, para que o ensino tanto prático como técnico consiga atingir todos os alunos. O professor precisa lecionar de forma igualitária e humanizada, para que todas as etapas sejam explicadas de forma correta.

Imagem do professor José Eustáquio em seu laboratório de tanatopraxia
Eustáquio no laboratório em que ministra aulas práticas de tanatopraxia.
[Imagem: Acervo Pessoal/José Eustáquio Pereira Barboza]

Desvalorização

A desvalorização do tanatopraxista começa com o seu salário: em média, um profissional ganha R$1800 por mês. O seu serviço prestado entra como apenas uma parte do “Serviço Funerário” em geral, além da falta de capacitação para os próprios profissionais da área.

A tanatopraxia entra como um curso livre,ou seja, não é vista como uma modalidade de ensino superior, e sim complementar a uma base de ensino já propriamente estabelecida pelo aluno, o que facilita a sua banalização e uma regulamentação escassa, refletindo justamente na falta de um apoio dentro e fora do ambiente de trabalho.

Ao relatarem casos marcantes em suas carreiras, os entrevistados comentam como a manipulação com crianças os deixam apreensivos mesmo que por um momento, além de casos envolvendo abuso sexual. Isso reforça a importância de uma ajuda psicológica para o profissional de tanatopraxia, essencial para manter a saúde mental e entender a situação do próprio atendimento, preservando assim uma humanização saudável no processo de conservação.

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