Por Luiza Santos (luizagabriela@usp.br)
“Casa da vovó”, “açougue” ou “sucursal do inferno”. Estes são alguns dos nomes dados ao DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo, um dos principais centros de tortura durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil. Sessenta anos após o golpe de 1964, militantes políticos e pesquisadores lutam para que o prédio se torne um museu pela memória da resistência ao governo antidemocrático instaurado por militares.
Localizado na Rua Tutóia, 921, zona sul de São Paulo, o 36° Distrito Policial parece um prédio público como qualquer outro. O que algumas pessoas não sabem é que atrás da delegacia estão as instalações do antigo DOI-CODI. Sem placas, sem fachadas e sem identificação, o edifício onde mais de cinquenta vítimas foram assassinadas — de acordo com dados da Comissão Nacional da Verdade —, passa despercebido nas ruas da Vila Mariana.
A legitimação de um órgão de repressão
No dia 1º de Julho de 1969, foi criada a Operação Bandeirante (Oban), um órgão clandestino que centralizava o poder repressivo das organizações policiais e militares, visando ao combate contra os opositores do Golpe Militar. Por meio de uma organização de coleta e investigação de informações, a Oban reuniu militares das Forças Armadas e policiais civis, militares e federais para uma atuação em conjunto.
Sem a presença de leis ou decretos, o centro de informações foi inaugurado ilegalmente e contou com o auxílio financeiro de figuras políticas importantes da época. Além disso, diversos empresários paulistas financiaram a entidade pública por meio de um sistema fixo de contribuições, como Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz.
Em 1970, buscando a legalidade da Oban, surge o DOI-Codi, uma estrutura nacional de repressão comandada pelo Segundo Exército. Com diretrizes desenvolvidas pelo Conselho de Segurança Nacional e aprovadas pelo então Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, a instituição coordenava ações repressivas contra opositores do regime vigente, com foco em exterminar os integrantes das guerrilhas urbanas.
O combate à esquerda engajada
São Paulo foi o primeiro estado do Brasil a possuir um DOI-Codi. Sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra (na época, major), torturas, desaparecimentos e assassinatos de militantes e opositores da ditadura se tornaram frequentes no local. O espaço ficou conhecido como “sucursal do inferno”, como relata Ivan Seixas, jornalista, escritor e militante político que foi capturado e levado ao DOI-Codi SP em abril de 1971.
“Tínhamos todas as privações e era um clima de terror constante. A tortura não era uma coisa escondida, era aberta”, explica Ivan. Segundo ele, o lugar atualmente continua idêntico aos tempos da Ditadura.
“O que separava a sala de tortura do ambiente exterior era um vitrô que ainda existe. Então quando a pessoa gritava, o bairro inteiro ouvia.”
Ivan Seixas, militante político
Aos 16 anos, o jornalista militava no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), uma organização clandestina de luta armada. Devido à sua atuação política, Ivan e Joaquim Alencar de Seixas — seu pai e dirigente do MRT — foram levados ao DOI-Codi SP junto com toda a família. Ivan foi torturado ao lado de Joaquim, que, após dois dias de violências ininterruptas, foi assassinado por agentes do órgão repressivo. Depois de seis anos de prisão em várias penitenciárias de São Paulo, Ivan dedica-se a denunciar a prática da tortura, seus autores e o regime da Ditadura Civil-Militar.
A descrição de Ivan sobre o centro de repressão coincide com o testemunho do ativista Maurice Politi, que descreve o ambiente de medo, violência e humilhação: “Os momentos de maior terror eram os da tortura física. Mas o pior era ser torturado ao lado de alguém que você conhecia, como o seu companheiro de organização, ou mesmo seu familiar.”
“Ali você ficava sequestrado e eles podiam fazer o que queriam, assim como fizeram. Você chegava lá e tinha que tirar a roupa na frente de todo mundo. E não importava se era uma avó de 70 anos ou um menino de 15.”
Maurice Politi, militante político
Em março de 1970, Maurice Politi tinha 21 anos quando foi capturado e levado ao DOI-Codi SP. Militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) — organização de luta armada no Brasil —, o estudante de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) — antiga Escola de Comunicações Culturais — participava ativamente do movimento estudantil.
Durante quatro anos, Politi enfrentou diferentes cadeias em São Paulo e foi expulso do país em 1975. Seu retorno ao Brasil ocorreu após a promulgação da Lei da Anistia em 1979 e, desde então, ele tem se dedicado ao ativismo pelos direitos humanos. Em 2009, junto com outros companheiros políticos, Politi fundou o Núcleo de Preservação da Memória Política (NM), conhecido como Núcleo Memória, com o propósito de resgatar e preservar a memória do período da ditadura.
A maioria dos capturados pelos agentes do órgão repressivo que sobreviviam às longas sessões de tortura eram transferidos para o Departamento de Ordem Política e Social (Deops), atual Memorial da Resistência, onde suas prisões eram oficializadas. Até hoje, muitas pessoas buscam o paradeiro de sequestrados políticos vistos pela última vez nas instalações do DOI-Codi, que foi desativado no final do governo do general João Batista Figueiredo (1979-1985).
O tombamento do DOI-Codi
No ano de 2010, com o objetivo de preservar as antigas instalações do DOI-Codi paulista, Ivan Seixas — na época, presidente do Conselho do Núcleo Memória —, solicitou o tombamento do prédio. O pedido também teve adesão de diversas organizações e ex-presos políticos. Em 2014, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) aceitou a solicitação e o edifício se tornou um patrimônio histórico.
“A nossa ideia é fazer dali um lugar para mostrar que existiu um centro de tortura e exterminio e transformá-lo em um espaço de cultura pela liberdade, legalidade e humanidade”, afirma Ivan, que aborda a necessidade de não deixar o tema cair no esquecimento.
“Isso também faria uma condenação do processo de tortura e assassinato durante a ditadura. [Se o memorial existisse], as pessoas saberiam que houve uma resistência. O povo resistiu.”
Ivan Seixas, militante político
Para Maurice Politi, lutar pela preservação das instalações do prédio é fundamental, pois existe uma tendência no Brasil de esquecer os acontecimentos do passado e repeti-los. “Todo lugar onde ocorreram violações dos direitos humanos deve ser preservado, isso deve ser explicitado para as novas gerações. Preservar e contar a história do DOI-Codi é dar visibilidade para o lugar e relatar o que aconteceu.”
Os embates na criação do museu
Após o tombamento do edifício em 2014, a promessa da criação de um centro de memória não foi cumprida. As instalações do antigo DOI-Codi pertencem ao estado de São Paulo, e não à União Federal. Para que o prédio se torne um memorial, é necessário que o Governo do Estado de São Paulo autorize essa ação.
Apesar de ser um patrimônio histórico, o prédio é de propriedade da Secretaria de Segurança Pública (SSP), quando deveria pertencer à Secretaria de Cultura, que pode desenvolver um plano para transformar o lugar em um memorial. No ano de 2021, o Ministério Público promoveu um inquérito civil pressionando o governo paulista para que ocorresse a criação de um museu no espaço.
A gestão do atual do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, argumenta que os recursos públicos utilizados para a criação do memorial do DOI-Codi SP seriam excessivos e que o centro de memória não traria benefícios financeiros ao estado. De acordo com a administração paulista, já existe um lugar que conta a história da ditadura, o Memorial da Resistência, sediado no antigo Deops/SP.
Segundo Maurice Politi, é necessário compreender que os locais onde ocorreram violações dos direitos humanos possuem suas particularidades. “No DOI-Codi, 52 pessoas foram mortas. O prédio da Rua Tutóia foi o primeiro do Brasil, então ele precisa ser preservado.”
“Se o prédio está tombado, ele é propriedade da sociedade.”
Maurice Politi, militante político
Arqueologia e pesquisa
Em 2018, ocorreu a criação do Grupo de Trabalho (GT) Memorial DOI-Codi. Coordenado pela historiadora Deborah Neves, o projeto tem o objetivo de desenvolver meios para ocupar o antigo centro de torturas. No ano de 2023, em colaboração com pesquisadores de três universidades públicas — Unifesp, UFMG e Unicamp —, o grupo desenvolveu um trabalho arqueológico, abordando três frentes de atuação destinadas à escavação, arqueologia pública e investigação forense. As áreas serviram de base para uma pesquisa no local que tem o objetivo de identificar vestígios e possíveis mudanças nas estruturas do prédio.
Com técnicas inovadoras utilizadas na pesquisa, o trabalho realizado no DOI-Codi é uma forma de entender mais sobre a história do local e encontrar vestígios biológicos e de escritas. “Por meio da materialidade, as próprias vítimas acabam lembrando de coisas que elas ainda precisam discutir. Estamos dando a materialidade para essas vítimas lembrarem de coisas que estavam esquecidas”, diz Claudia Plens, arqueóloga, professora e pesquisadora atuante no DOI-Codi SP.
Durante um dos trabalhos no prédio, a equipe localizou inscrições no banheiro, onde uma pessoa registrou os dias do mês de novembro, provavelmente documentando o período em que ficou presa. A descoberta foi amplamente repercutida na mídia brasileira.
Cláudia Plens ficou impressionada com o impacto das atividades realizadas pelos pesquisadores. “Existem relatos de moradores que dizem lembrar de ouvir gritos e existem pessoas que negam o que aconteceu até hoje. Estamos passando também por um momento de ‘revisionismo histórico’, onde muitas coisas estão sendo inventadas.” A arqueóloga também revela que o grupo tem pretensões de continuar o processo arqueológico no DOI-Codi neste ano.
Visitas mediadas ao antigo DOI-Codi
Para defender a preservação da memória política, o fortalecimento da cidadania e a defesa dos Direitos Humanos, o Núcleo Memória desenvolve iniciativas educativas e culturais. Com direção executiva de Maurice Politi, a organização não-governamental propõe eventos que abordam a memória, a verdade e a justiça, como o “Sábado Resistente”, projeto realizado em parceria com o Memorial da Resistência.
Todos os meses, o NM realiza visitas guiadas ao prédio do antigo DOI-Codi de São Paulo com a presença de ex-presos políticos. O objetivo é dar visibilidade ao lugar enquanto não ocorre a criação do centro de memórias. “Acho que é um dever que eu tenho. Enquanto eu tiver forças, vou contar essa história aos mais jovens”, expressa Politi.
As datas e o link de inscrição para visitação são divulgados nas redes sociais do Núcleo Memória: https://www.instagram.com/nucleomemoria/.
Importante artigo, revolvendo territórios obscuros e revelando os aspectos mais sórdidos da ditadura de 1964. Parabéns à autora.