Por Isabel Sampaio (isabel.sampaio@usp.br)
Emily Elizabeth Dickinson nasceu no dia 10 de dezembro de 1830 em Amherst, Massachusetts, nos Estados Unidos. Famosa por sua escrita intimista, enigmática e ousada, Dickinson é considerada uma das principais escritoras norte-americanas do século XIX. Apesar de sua originalidade, a poetisa passou sua vida em anonimato; suas obras foram publicadas postumamente.
A primeira publicação de seu trabalho aconteceu em 1890, quatro anos após sua morte, em uma coletânea organizada por sua irmã, Lavinia, com o apoio de Susan Gilbert, cunhada e amiga íntima da autora, Thomas Wentworth Higginson e Mabel Loomis Todd. Apesar do esforço para fazer com que Emily fosse reconhecida, em 1898 um processo judicial entre as famílias Dickinson e Todd fez com que as publicações fossem temporariamente interrompidas .
Outras tentativas foram feitas para a construção do legado poético da autora, mas apenas em 1955 uma coletânea completa dos poemas foi publicada. The Poems of Emily Dickinson (The Belknap Press of Harvard University Press, 1955), editada pelo estudioso literário Thomas H. Johnson, deu início às pesquisas sobre a poetisa. Com o sucesso da primeira coletânea, um segundo volume foi lançado no ano seguinte, além de, posteriormente, coletâneas de cartas e novos livros de poemas.

Vida e obra da autora
Nascida em uma família em ascensão social, Emily Dickinson era filha do meio de Edward e Emily Norcross Dickinson. Tinha um irmão mais velho, William Austin Dickinson, e uma irmã mais nova, Lavinia Norcross Dickinson.
A família Dickinson desempenhou papel significativo na cidade de Amherst, inclusive na fundação de instituições educacionais, o que permitiu que a poetisa tivesse formação escolar de qualidade. Emily completou seus estudos na Academia Amherst — escola particular de nível primário — e, aos dezesseis anos (1847), frequentou o Seminário Feminino Mount Holyoke, localizado no sul de sua cidade, em South Hadley.
O seminário oferecia uma grade curricular com todas as principais disciplinas de cursos universitários, como botânica, matemática, astronomia, química e geologia, e estava entre as instituições acadêmicas mais rigorosas que uma jovem poderia frequentar. Apesar do interesse da autora na vida intelectual, ela não retornou ao seminário no ano seguinte.
Na época, as mulheres não eram incentivadas a acessar a educação superior, uma vez que suas principais funções eram resumidas às tarefas de “donas de casa”. Além disso, eram incentivadas a centrar suas vidas para a religião, o que pode ser evidenciado nas divisões feitas no próprio seminário. Eram divididas em“cristãs consagradas”, aquelas que “expressavam esperança”, e as “sem esperança” — categoria em que a autora se encaixava.
Por meio de relatos escritos por Clara Newman Turner, colega da autora, é possível compreender a posição de Emily durante sua passagem pelo seminário. Turner descreve um momento em que foi solicitado que aqueles que desejavam ser cristãos se levantassem, e Emily foi a única a permanecer sentada. “‘Eles acharam estranho eu não ter me levantado’ — acrescentando com um brilho nos olhos: ‘Eu achei que uma mentira seria ainda mais estranha.'”, comentou a poetisa para a amiga.
Embora as instituições priorizassem o ensino voltado para a ciência, também foram importantes para seu desenvolvimento como poeta. Em entrevista ao Sala 33, Adalberto Müller, professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF), membro da Emily Dickinson International Society e tradutor do livro Poesia Completa de Emily Dickinson (Editora Unicamp, 2020), comenta que a poetisa fez parte de uma época da literatura americana identificada como transcendentalismo. “Seus membros têm um fascínio pela natureza, são um desdobramento do romantismo da língua inglesa”, esclarece.
Müller conta que o contexto de avanço industrial vivenciado pelos Estados Unidos durante o século XIX é o ponto de contraposição dos poetas transcendentais norte-americanos. De acordo com ele, uma das principais características do movimento literário é a busca por uma verdade espiritual e a necessidade de um reencontro com a natureza, o que é encontrado nos poemas de Emily.
“A Dickinson se isola do mundo. Durante os últimos 30 anos de sua vida, ela não saía mais de casa. Ela tem uma aversão ao mundo social, à fama. Uma aversão àquilo que para o americano médio é o fundamental: ter sucesso. Os americanos têm horror de ser um loser, um perdedor. E a Dickinson se assume como loser.”, pontua.
Ele também chama atenção para um dos poemas mais conhecidos da autora,“I’m Nobody! Who are you?”, onde ela descreve a negação do sucesso material.
“Eu sou Ninguém! Você é Quem?
Você — é Ninguém — também?
Então somos um par!
Não conta! Podem te expulsar!
Que chato — ser — Alguém —
Se mostrando como o Sapo —
Na beira do Brejo —
Sempre com o mesmo papo —”
Emily Dickinson — tradução por Adalberto Müller

O professor conta que, desde a adolescência, a poesia é seu principal interesse no campo literário. Em 2013, durante seu pós-doutorado na Universidade de Yale, em Connecticut, nos Estados Unidos, realizou uma visita a Casa Museu Emily Dickinson. “Essa visita me marcou muito. Daí comecei a traduzir. E de 2013 a 2022 fiquei totalmente envolvido com a tradução da poesia completa”, conta.

A partir do início do processo de tradução, Müller começou a perceber as dificuldades na interpretação dos versos de Emily: “Você entende o primeiro, o segundo já parece complicado, no terceiro as coisas vão ficando mais difíceis ainda. Depois, fui entendendo que esse caráter mais hermético, mais fechado, tinha a ver com o próprio modo como ela viveu”.
De acordo com ele, Emily era uma mulher que recusava-se a entregar as coisas de forma fácil, e não gostava de comunicação direta. “Se hoje ela viesse ao Rio de Janeiro e alguém dissesse para ela ‘papo reto’, ela não ia entender”, brinca. Para Müller , o “papo” da poetisa é oblíquo. “Ela tem um verso que diz que seu ‘negócio’ é a circunferência. Ou seja, enquanto todos buscam uma linha reta para o sentido das coisas, para as relações e para o sucesso, ela quer chegar ao círculo, a maior distância possível entre dois pontos”, descreve.
Dickinson explorava temas por meio de um diálogo profundo e complexo. Dentre seus principais eixos temáticos, destaca-se a morte — muito explorado durante o romantismo e pós. Entretanto, Müller destaca que a visão da poetisa sobre a morte é feita a partir de seu reconhecimento como um processo natural da vida, que permite compreender o que é o tempo e o que é viver.
Emily também associava o tema ao amor, visto como fugaz e passageiro, de certa maneira inalcançável devido ao caráter destrutivo da morte. “O tema do amor e da morte se confunde também com o tema do isolamento”, explica Müller. A autora mostrava-se distante do mundo porque não conseguia entender as relações sociais em que todos querem vencer na vida: “Ela escrevia muito sobre o que é a perda, a derrota, a fugacidade da fama. A obra dela permaneceu inédita, ela nunca vendeu nada de seu trabalho literário”.
As palavras ganham forma: a representação da poetisa no audiovisual
O crescimento no número de leitores e a consequente difusão de sua obra fizeram com que a vida da poetisa migrasse para o mundo audiovisual.
A cinebiografia Além das Palavras (A Quiet Passion, 2016), aborda a intensidade da autora e sua vida isolada de grandes relações sociais. Adalberto Müller descreve que a visão fornecida pelo filme é de Emily como “uma mulher reclusa e solitária, meio doentia”.
Dirigido por Terence Davies e protagonizado pela atriz Cynthia Nixon — popularmente conhecida por interpretar Miranda em Sex and the City —, o filme aproxima Emily da audiência contemporânea, apesar de não retratar sua história com absoluta precisão.

No longa, o telespectador consegue acompanhar possíveis pretendentes da poetisa. Em Além das Palavras, o único interesse romântico por quem Emily demonstrou iniciativa foi o reverendo Charles Wadsworth, (Eric Loren), ainda que não haja evidências sobre uma possível relação entre os dois.
O filme opta por intercalar fatos concretos sobre a história de Dickinson, confirmados por suas correspondências e poemas, com teorias firmadas ao longo do tempo. Ao retratar uma possível relação entre Emily e Charles, o longa exclui uma pauta muito discutida entre os fãs e estudiosos da autora: sua atração pela cunhada, Susan Gilbert.
Três anos após a obra, a Apple TV+ lançou a telebiografia Dickinson (2019), escrita e produzida por Alena Smith, e protagonizada por Hailee Steinfeld — também produtora da série. Ao longo de três temporadas, o telespectador acompanha a juventude da poetisa, vista como uma jovem cheia de vida e que desafia as regras sociais, desmistificando a personalidade reclusa ao adotar uma perspectiva que se contrapõe à obra de Terence Davies.

Além de retratar Emily sob uma visão pouco explorada, o roteiro parte de um olhar contemporâneo para explorar pautas centrais do contexto histórico em que a poetisa estava inserida, como questões raciais, políticas e feministas. Um dos eixos centrais da trama é justamente a relação excluída em Além das Palavras: o romance entre a poetisa com sua cunhada e melhor amiga, Susan, interpretada por Ella Hunt.

Sue, como é frequentemente chamada na série, era uma das leitoras mais assíduas de Dickinson, além de servir como inspiração para muitos de seus poemas. Ao longo dos episódios, o telespectador observa a relação entre as duas, que é marcada pelas dificuldades de um romance homoafetivo no século XIX.
Para Müller, é evidente a existência de uma relação que extrapola os limites da amizade: “Pelas cartas e poemas, nós sabemos que de fato ela amava a Susan. Ela dedicou quase dois terços dos poemas à Susan. Fica evidente, pela leitura das cartas, que a relação delas ia muito além de uma amizade”. Entretanto, ele destaca que, como muitas das correspondências da autora foram queimadas, não é possível ter certeza sobre a situação.

Segundo Claudiana Gois dos Santos, mestre em letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), a nova percepção que a série trouxe sobre a autora e o aumento de sua visibilidade é algo favorável, mas que deve ser feito com cautela para não apagar a obra.
Para a especialista em personagens femininas, a produção audiovisual é de mais fácil acesso, o que permite a popularização da obra. No entanto, Claudiana defende que a relação entre Emily e Susan é um assunto delicado, uma vez que os registros são resumidos às cartas que não foram perdidas.
Claudiana dissertou seu mestrado A Bruta Flor do Querer: amor, performance e heteronormatividade na representação das personagens lésbicas em 2018, e desde então trabalha com o tema. “Um desafio persistente em mais de uma década de pesquisa é o número reduzido de personagens lésbicas, sobretudo quando comparado a personagens gays ou heterossexuais”, comenta.
Ela também enfatiza que: “Um dos principais equívocos na leitura da obra de Dickinson — e de outras autoras — é o foco excessivo na biografia, muitas vezes em detrimento da análise estética e literária”. Segundo Claudiana, produtos cuja maior preocupação é provar ou refutar uma suposta orientação sexual, negligenciam sua capacidade literária e podem vir a servir a uma representatividade passageira.
Com o novo panorama apresentado pela série, a autora passou a ser consumida por um público mais jovem. Adalberto Müller acrescenta que há uma tendência na crítica feminina americana, desde os anos 1970, a considerar Emily Dickinson uma mulher lésbica. Para ele, essa perspectiva foi uma “virada de chave” na leitura de suas obras.
