Imagem: Audiovisual / Jornalismo Júnior
“Qualidade do que não possui importância; pequenez; aquilo que não agrega valor”. A definição da palavra insignificância varia de acordo com o dicionário, mas a essência é a mesma para todos, e foi ela que fez-se presente durante toda a leitura de Enterre Seus Mortos (Companhia das Letras, 2018). O novo romance de Ana Paula Maia narra a história de Edgar Wilson: homem simples do interior, ele trabalha no recolhimento de cadáveres de animais nas estradas. Ao lado de seu colega Tomás, um padre excomungado, Wilson segue sua rotina diária, até que a descoberta de corpos humanos muda os rumos da história e leva os dois a uma jornada filosófica existencialista envolta em questionamentos sobre o valor humano e o fim da vida.
Com a polícia local impossibilitada de fazer algo, Wilson e Tomás vagam com os cadáveres pelas estradas em busca de um final digno às vítimas. No caminho, a passagem pelo IML gera uma das cenas mais impactantes da obra: Corpos se amontoam por todos os lados, já que não há mais espaço. A funcionária diz que a superlotação resulta de ninguém reclamar os indigentes e encaminha os homens a outra instituição. Lá, o empregado tenta negociar a compra do cabelo de um dos defuntos, mostrando que até para a morte existe um mercado. Pano de fundo para comparações, os animais recolhidos pelos amigos sempre tem um destino determinado. Ao contrário destes, os corpos humanos, se não pela teimosia da dupla, que coloca-se contra as regras do próprio emprego, seguiriam ao relento, insignificantes até para serem dignos de um funeral. “Não existe sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixá-lo ao relento, às aves carniceiras, à vista alheia”.
Só uma coisa realmente apavora Edgar Wilson: morrer sozinho e ser deixado para trás. Ser devorado por abutres, comido ao ar livre por vermes necrófagos, ter sua carne exposta ao vexame, e é esse sentimento que o leva a buscar incessantemente um desfecho menos cruel para os corpos desconhecidos. Na esperança de apaziguar seus próprios conflitos.
Conhecida por seus temas do cotidianos, Maia é um feliz expoente na literatura brasileira. Suas obras, sempre envoltas na temática do trabalho e do homem, trazem protagonistas muitas vezes invisíveis e menosprezados pela sociedade. Nas palavras do próprio livro: “Edgar Wilson nunca conheceu trabalho que não estivesse ligado à morte. Sempre esteve um passo atrás dela, que invariavelmente encontra todos os homens, de maneiras diferentes”. O personagem não é um herói. Não existe idealização ou salvação para a autora. O que a encanta em seu último romance é a forma com que o ser humano lida com a iminência da morte: sob o ponto de vista de alguém que está em contato direto com ela.
Dividido em duas partes, Os Animais e Os Mortos, o livro não é uma típica novela policial de assassinatos a serem desvendados. Os criminosos não tem muito espaço na obra. Não existem grandes perseguições ou descobertas a serem feitas e o mistério aqui não é quem matou, mas sim o que a morte representa em um sentido mais humanístico. Maia utiliza-se de um vocabulário com referências na literatura naturalista, embora o faça de maneira mais discreta. Na primeira parte, a narrativa segue uma ordem cotidiana monótona que chega a ser entediante com o passar das páginas, mas o teor existencialista faz-se presente e cresce de maneira incômoda na segunda metade do livro. É preciso frisar que não me refiro a “Incômodo” no sentido ruim da palavra, mas à sensação inevitável que o refletir sobre a morte traz, e a autora faz isso de maneira brilhante.
“Assim como não teme o pôr do sol, Edgar Wilson entende que não deve temer a morte. Ambos ocorrem involuntariamente num fluxo contínuo. De certa forma, o inevitável lhe agrada. Sentir-se passível de morrer fortalece suas decisões. Não importa o que ele faça, seja o bem ou seja o mal, ele deixará de existir”. Uma obra impactante e reflexiva, Enterre Seus Mortos nos faz refletir sobre o teor passageiro e inevitável da vida humana. Saberão da nossa morte? Quem irá nos procurar? Acabaremos em um amontoado de corpos ou em um jazigo florido? Assim como qualquer outro animal, o ser humano não é mais do que carne e osso destinado a definhar. Essa é a imagem perturbadora que fica do romance de Maia. Nas palavras da própria autora: “Nenhuma pessoa é capaz de se lembrar da hora de seu nascimento, mas o momento da morte, a todos é conhecido”.
Por Amanda Capuano
amandacapuano@hotmail.com