— Espelho, espelho meu… existe alguém mais estilosa do que eu?
— Bom, isso depende… o que você considera como estilo?
— Como assim o que eu considero como estilo? Estilo é estilo. Por quê? O que você considera como estilo?
— Já que perguntou, fico feliz de te responder. Estilo é, antes de tudo, um reflexo de uma evolução de autoconhecimento. Você nasce e durante sua infância é vestido por sua mãe e obrigado a usar o uniforme da escola. Além de não ter formado perfeitamente sua identidade, sua aparência é imposta e opressora. Porém, quando atinge a adolescência e começa a se conhecer melhor, começa também a se vestir sozinho. O simples ato de escolher uma roupa passa a ser uma reflexão diária sobre quem é. E é aí que se forma o estilo.
— Mas, então, se o estilo nasce de uma reflexão interna sobre quem sou, o que diferencia quem sou eu pelada de quem sou eu arrumada?
—Idealmente ambos são correspondentes. As roupas são apenas um mecanismo de reflexo do seu eu interior no seu eu exterior. Muitos veem o estilo e a moda como sendo algo superficial, fútil, para pessoas que não têm nada melhor com o que ocupar suas mentes. Mas não acredito que esse seja o caso. É uma questão de autoexpressão.
— Esse argumento soa meio ingênuo, não? É como se as pessoas partissem do pressuposto que as aparências não importam. Mas todos sabemos que importam. Hoje em dia, talvez mais do que o conteúdo. Não vivemos num mundo ideal. Vivemos num mundo capitalista, afinal de contas. Nós somos definidos por aquilo que consumimos.
— Um tanto machista também. A moda era originalmente voltada a homens. Os poderosos reis, os influentes bispos, os ricos burgueses, todos refletiam seu poder e seu status nos tecidos e joias que adornavam seus corpos. Porém, quando o foco passou a ser as mulheres, a moda deixou de ser vista com bons olhos por grande parte da sociedade.
—Você disse antes que moda é sinônimo de autoexpressão. Mas então como é possível ter um estilo próprio? Não enxergo a identidade como única, sólida, inflexível. Uma pessoa não age diferente com os pais, os amigos, os parentes, os desconhecidos, o namorado? Como é possível cultivar um estilo só?
— Aqui entra um dos paradoxos da moda: a coesão estilística. A relação de uma pessoa com a moda é plural e singular ao mesmo tempo. Toda vez que acordamos, somos diferentes do que éramos no dia anterior. Crescemos. Mas a essência continua a mesma. E esse fenômeno é refletido em como nos vestimos. São poucas as pessoas que usam exatamente a mesma coisa todos os dias. Às vezes queremos ser mais punks ou românticas ou profissionais ou minimalistas, etc. E, assim, adaptamos quem somos naquele momento com as roupas que usamos. As roupas apresentam um leque de possibilidades, e ao mesmo tempo nos restringem. “Escolha seu caixa”. Mas é impossível ser só uma coisa. A criatividade e o toque pessoal se mostram mais vividamente quando trocamos e combinamos aspectos de cada uma das caixas.
—Não há lojas que fazem roupas para determinados grupos? Isso também não é tentar encaixar a população em caixas?
—As marcas podem ser vistas como um auxiliar na busca por um estilo próprio. As pessoas se apoiam nelas num processo semelhante à antropofagia. Uma vez que aplicamos valores a objetos inanimados (no caso, roupas), esperamos que tais atributos sejam transferidos para nossa imagem. Ou seja, da mesma forma que um blazer parece sugerir profissionalidade, quem o veste pretende transmitir que é profissional.
— Então o objetivo final da moda é comunicar?
— Um dos objetivos da moda é comunicar, o que nos leva a mais um paradoxo. A moda é para mim ou para os outros? É um ato puramente narcisista ou generoso? É um exercício que me traz felicidade por si só ou demanda que outras pessoas interajam e reajam à minha roupa? É para refletir o privado ou para engajar com o público?
— Você não vai responder às perguntas?
— São retóricas. Mas a verdade é que a moda é as duas coisas ao mesmo tempo.
—E sempre foi assim, não? Engraçado como a moda muda tão rapidamente, mas sua essência e função permanecem as mesmas.
—As roupas representam, mais do que qualquer coisa, a afirmação “esse sou eu aqui e agora”. Pode ser que tragam lembranças com um eu do passado ou reflitam esperanças para o eu do futuro. Mas, mais do que isso, são uma atividade afirmativa eterna.
— Mas então por que existem tendências? Por que as pessoas mudam todo ano como se vestem?
—Bom, primeiro porque a sociedade muda. Como as roupas representam a moral de seu tempo (ou ainda o Zeitgeist de seu tempo), elas não podem durar muito. Porque a mentalidade da sociedade muda constantemente. A moda vive de mudança, de transfiguração, de evolução, de novidade.
— Mas e a história de obsolescência planejada?
— Tem um pouco disso também. Afinal de contas, vivemos no capitalismo como você tinha dito anteriormente. Para algumas pessoas, moda é mais um símbolo de status, uma alegação de que se é “antenado” do que uma janela para o mundo interior. Há um conforto em se vestir na última moda. Há um conforto em ter algo que todos desejam no momento. Há um conforto em se parecer com os manequins das lojas.
— Se a moda tem um objetivo diverso para esse tipo de pessoa, podemos dizer que tem uma função diversa para cada um?
— Como toda forma de arte, sim. Há algumas pessoas que enxergam a moda apenas como uma forma de proteção do corpo. Homens pré-históricos precisavam se proteger de doenças e do ambiente austero. Há outras que veem seu surgimento inerente à tomada de consciência de Adão e Eva. Assim que perceberam que existiam, foram direto cobrir seus sexos com folhagem, por estarem envergonhados. Já Luís XIV discordaria disso. Para ele e sua corte, roupas, joias, sapatos só serviam enquanto sinal de status e ostentação. A moda pode ser vista ainda como algo que diferencia os gêneros ou, como defendi, os indivíduos. A moda é a evidência da identidade numa ação de prazer, autorrealização, autossatisfação, que garante autoconfiança como nenhuma outra coisa.
— E onde que a beleza entra nesse argumento?
—Moda é também a imagem idealizada da beleza. Além de um corpo e uma cara bonitas, são também esperadas roupas bonitas. O louvor da Afrodite foi substituído pelo louvor da Chanel.
— Mas então… espelho, espelho meu… existe alguém mais estilosa do que eu?
Agradecimentos às estudantes entrevistadas Victoria Ferraro, Beatriz Iqueda e Joana Melão, que me ajudaram a elucidar muitas das questões aqui apresentadas.
Créditos da arte de capa: [Imagens (da esquerda para a direita): Divulgação/Fashion Coolture; Beardrevered/Tumblr; Divulgação/Glam Radar)
Nossa, amei tudo sobre essa crônica! O estilo da escrita, as reflexões…