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Fábrica de Cultura: Regando flores

Imagem: Bruna Irala “(…)Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. …

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Imagem: Bruna Irala

“(…)Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.(…)”

Carlos Drummond – A flor e a náusea

 

Flor e sangue

Harlley, morador da periferia da zona sul de São Paulo, sempre teve muita admiração pelas artes. Harlley era artista. Em dezembro de 2012, inaugurou uma Fábrica de Cultura em seu bairro, mas só em 2014 que conseguiu ingressar em um curso, o Projeto Espetáculo. Curioso, nesse ambiente pôde se aventurar nas mais diferentes linguagens artísticas: dança, teatro, música. Aprendeu a encarar o público e a enfrentar a timidez que o fazia tremer. Aprendeu a se conhecer.

 “Vamos assistir vocês ouvindo a nossa realidade

Tirando nossas capas de invisibilidade”

O trecho citado foi interpretado e composto por Harlley, artista pertencente a primeira Cypher LGBTQI do rap nacional e latino, o Quebrada Queer. Os versos retratam a vivência de indivíduos marginalizados e invisibilizados que, finalmente, ocuparam um espaço cujas suas vozes são ouvidas. O clipe (https://www.youtube.com/watch?v=FwktAmgku68) atualmente possui mais de 3 milhões de visualizações no Canal Rap Box

Quebrada Queer, Harlley de vermelho no centro da imagem [Imagem: It Pop]
Harlley tem 20 anos e é formado pela Fábrica de Cultura, onde pôde desenvolver seu potencial artístico no Capão Redondo. Pôde desabrochar. Porém, casos como esse só puderam ser possíveis após instalações de espaços culturais no início dessa década. 

A região do extremo sul de São Paulo já foi considerada o bairro mais violento do mundo em 1996, pela ONU, além de formar junto com Jardim Ângela e com o Jardim São Luís, o chamado Triângulo da morte. Durante o ano de 2008, a região chegou a registrar 14,5% dos homicídios de toda a capital paulista. Não por acaso, duas das pontas do triângulo juntamente com outras áreas dos extremos das capitais foram escolhidos para abrigar o Programa. 

Os locais foram selecionados a partir de uma pesquisa realizada pela Fundação Seade, que mapeou as áreas da cidade de São Paulo com os índices de vulnerabilidade juvenil mais severos: mortes violentas, gravidez na adolescência, perfil de renda das famílias e nível de escolaridade, entre outros.

Instaladas entre os anos de 2011 e 2013, as Fábricas de Cultura têm sido uma ferramenta de fortalecimento da produção de cultura local e de ampliação do repertório de alguns bairros da periferia paulistana. A metrópole conta com um total de 12 unidades, sendo cinco na zona leste (Vila Curuçá, Sapopemba, Itaim Paulista, Parque Belém e Cidade Tiradentes), administradas pela organização social Catavento, e outras sete nas zonas norte e sul (Brasilândia, Capão Redondo, Jaçanã, Jardim São Luís, Vila Nova Cachoeirinha, Núcleo Luz e Diadema), dirigidas pela organização social Poiesis.

 

Aroma

Segundo a doutora em Sociologia pela USP, Maria Carolina Vasconcelos Oliveira, além da inserção profissional, o acesso à cultura desenvolve nos indivíduos o sentimento de pertencimento e de cidadania. A afirmação é confirmada ao visitar um dos eventos realizadas por alguma das Fábricas. Durante toda a semana, o espaço movimenta a comunidade ao redor com cursos, palestras e apresentações, muitas vezes, ministradas por aprendizes da própria região.

Evento Coletivo Artivistas no evento “O invisível da Arte, Nise da Silveira” [Imagem: Bruno Richard]
No final de Abril, a unidade do Parque Belém abriu espaço para o Sarau de Artes no evento O invisível da arte em Nise da Silveira, desenvolvido junto com os aprendizes através de discussões e processos de sensibilização. A cerimônia teve o intuito de expor as produções artísticas dos alunos, uma delas protagonizada no palco pelo coletivo Artivistas.

A entrada dos atores foi silenciosa. Alguns chegavam pela frente, outros pelos lados. Vagarosamente, cada um chegava ao palco. Por fim, todos os nove jovens estavam sentados em blocos devidamente distribuídos no espaço. A primeira voz surge. Após os primeiros instantes de estranhamento, a compreensão. É narrada uma história cotidiana. Assim segue-se, a segunda, terceira, quarta, quinta. A sexta é uma história de assédio. O clima pesa. Na sétima, a narrativa é sobre a vivência de um deficiente físico, os olhares de dó, de pena a ele direcionados. Porém, algo chama atenção. O intérprete não possuía as características descritas. Neste instante fica claro que os atores haviam trocado as crônicas. No final, um coro é entoado pelo grupo e ecoou, não só no espaço, mas em mim.

“A gente conta história do jeito que ela mora na gente.”

Segundo Arley Andriolo, doutor em Psicologia formado pela USP, as artes, além de atuarem como meios de formação de vínculos sociais e comunitários, serviram como instrumento de exercício de poder, entre impérios e religiões, ou de distinção social nas sociedades capitalistas. É simbólico haver um espaço cujos corpos periféricos podem contar suas vivências no palco. É assistir a arte agindo como ferramenta agregadora.

Tato Amorim, 17 anos, cadeirante  e com os olhos cheios de brilho, é um dos integrantes do coletivo. Ingressou na Fábrica em 2017, após completar a faixa etária máxima do antigo espaço cultural que frequentava. “Eu sempre gostei de cantar, ver filmes, desenhos, séries, e o teatro veio logo em seguida”. Tato sempre foi artista.

Em seu instagram, ele desenvolve um projeto denominado artecadente, cujo objetivo é proporcionar visibilidade aos artistas deficientes físicos. “As expressões artísticas padronizam muito os atores. O meu objetivo é mostrar que deficientes físicos podem ser protagonistas, podem ser vilões. Temos capacidade de sermos bons artistas.” 

Projeto Artecadente [Imagem: @tatoamorim]
Projeto Artecadente [Imagem: @tatoamorim]
 

Desabrochar

Engana-se quem acha que a ocupação do espaço restringe-se apenas aos mais jovens. As Fábricas são frequentadas por pessoas de diferentes faixas etárias. 

“Quando pequena, praticamente não desenhei. Precisei trabalhar muito cedo.” Afirma Celene, de 57 anos. A dona de casa, de forma bem humorada, afirma que pôde ampliar suas possibilidades nas aulas de escultura e desenho. Lilian Piccilli, coordenadora do curso, destacou que casos como o de Celene são muito comuns no curso. “Muitos aprendizes do curso nunca tiveram antes oportunidade de aflorar seus potenciais artísticos e aqui se descobrem artistas”.

Exposição “Atravessando Fronteiras” realizada dia 4 de junho [Imagem: Lilian Piccilli]
Além de auxiliar os aprendizes no processo de autoconhecimento, a Fábrica também impulsiona aqueles que sempre souberam o que desejavam.

Jô Brasileiro em frente a Fábrica de Cultura do Parque Belém [Imagem: Bruno Richard]
Seu nome artístico é Jô Brasileiro, 66 anos, com voz eloquente e um grande repertório de músicas autorais. O vendedor de limões, após divorciar-se de sua esposa há seis anos, decidiu sair do Paraná e ir a São Paulo investir naquilo que sempre quis: ser cantor. Jô relata que desde pequeno teve facilidade para compor canções. Iniciando sua carreira agora, está fazendo aulas de violão para poder cifrar e tocar suas próprias músicas.

 

Mal presságio

A pasta destinada à cultura é a menor dentre os grandes setores da administração paulista. Nos últimos anos, o investimento não passou de 0,61% do total.

As ameaças de maiores cortes na cultura continuam constante. A mais recente ocorreu em abril deste ano. O atual secretário da cultura  anunciou contingenciamento na cultura de 127,3 milhões, correspondente a 23% do total. A medida afetaria diretamente todos os órgãos culturais geridos pelo estado de São Paulo. Já as Fábricas de Cultura, teriam os impactos na projeção da não realização de 250 ateliês, afetando cerca de 5.100 aprendizes; redução das atividades da programação cultural (fábrica aberta) com estimativa de 30.000 participantes afetados; e redução do funcionamento de bibliotecas, deixando de atender 7.500 frequentadores. As Fábricas de Cultura também poderiam reduzir em 40% o acolhimento ao público (4.000 pessoas), na Zona Leste, e fechar Bibliotecas, Orquestras, Bandas, Oficinas de férias e cursos noturnos.

Após semanas de aflição na área cultural, marcada por reivindicações populares nas ruas e na internet, o governador João Doria postou em suas redes sociais um vídeo afirmando que não haverá cortes. “Não é verdade que vamos cortar serviços e programas e fechar espaços. Nada será fechado. Nada será interrompido”. O ministro da cultura, Sérgio Leitão, ao ser perguntado sobre o caso afirmou: “Parabéns ao governador e para todos nós que amamos a arte e a cultura e reconhecemos sua importância econômica e social”. No mês seguinte, em Maio, foi anunciado o valor de investimento superior aos últimos anos, além de algumas mudanças que prometem desburocratizar o sistema de investimento de projetos.

Porém, alguns aspectos devem ser destacados. A mudança no nome da Secretária de Cultura para Secretária da Cultura e Economia Criativa sugere o interesse maior em dialogar com as expressões culturais que trazem retorno econômico, e não nas culturas de forma ampla, segundo Maria Carolina. Ainda, de acordo com Maira Rodrigues, doutora em Ciências Políticas pela USP, no âmbito dos investimento público, o déficit, muitas vezes, é esperado, pois o retorno é intangível. É importante destacar que o Brasil é signatário das diretrizes previstas pela UNESCO, que preveem o fomento à diversidade cultural. 

Nesse sentido, ainda, algumas alterações governamentais foram realizadas no PROAC Editais, programa de investimento direto do Estado. Nesse sistema, os projetos selecionados recebem recursos financeiros diretamente da Secretaria. Os editais são divididos em categorias e, neste ano, o governo alterou algumas. 

Os editais de expressões indígenas, negras e LGBTQs foram reunidas em apenas um edital cujo nome é Incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural. Enquanto isso, outros foram excluídos da pasta, como os editais de circo e de Hip Hop. 

Segundo Maria Carolina, as alterações podem comprometer às diversidades de vozes. Ela destaca que a tendência é que os grupos já estabelecidos continuem a dominar os editais, enquanto as vozes dissidentes, seja por orientação sexual ou condição periférica, que historicamente vinham ganhando espaço, não consigam acessar esses editais maiores. 

Legenda: Jeysi Boogaloo na competição Batalha Kamikaze (All style) [Imagem: Arte e Cultura (Itaim Paulista)]
Jeysi Boogaloo, 19 anos, foi uma dos jovens alcançados pela maior ascensão das expressões dissidentes. Cercada por muitos homens nos campeonatos de dança, a moradora do Jardim Ângela impõe respeito àqueles que a subestimam por ser mulher. Ganhadora de dois eventos, Batalha de Gigantes (All Style) e Batalha Kamikaze (All Style),  realizados pelas Fábrica de Cultura, ela começou a aprender popping, vertente do Street Dance, em 2016, de forma autônoma e em diferentes espaços culturais por São Paulo. Porém, foi na Fábrica, durante um evento de Hip Hop, que despertou em si o desejo de apresentar-se ao público. Segundo ela, esse ambiente é de extrema importância para periferia, pois cria condições dos artistas compartilharem seus trabalhos e experiências em competições e workshops, fato gerador de oportunidades. “O importante é isso, trazer mais gente pra esses lugares e não tirar esses lugares da gente.”, afirma.

Segundo o psicólogo Arlley Andriolo, a arte por si só não pode “mudar o mundo”, porém tem uma função importante nesse processo, mudar a “estética social” através de uma reflexão sobre a sensibilidade humana em sua diversidade. Além de mais florido, um mundo em que todas as flores possam florescer e existir.

Árvore do futuro, Fábrica da Cultura do Itaim Paulista [Imagem: Bruno Richard]

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