“Não vejo nenhuma linha entre o imaginário e o real”, afirmou Federico Fellini em uma entrevista com Dan Yakir em 1984. É esta a frase que abre e dá o tom de Em Busca de Fellini.
O longa de estréia do sul-africano Taron Lexton é uma co-produção EUA-Itália. Lucy Carthwright (Ksenia Solo) é uma garota ordinária de Ohio que, durante toda sua vida, teve as experiências restritas pela proteção da mãe, Claire (Maria Bello). Animais de estimação mortos, parentes doentes, desilusões amorosas – tudo mascarado, velado. Esta privação do trauma levou à privação de sentimento. Lucy tinha vinte anos, e a mentalidade de treze.
Uma aflição impossível de se omitir forma uma ferida na relação entre mãe e filha. A menina sai de casa pela primeira vez em muito tempo, e encontra na cidade um festival de cinema: “Tutto Fellini”, onde A Estrada da Vida (1954) a comove, e Lucy instantaneamente se apaixona pelo diretor. Deixando a mãe pela primeira vez, a simples garota de Ohio vai para a Itália à procura de Fellini, descobrindo-se Lucy pela primeira vez.
Em busca de Fellini presta homenagem ao cineasta italiano tanto no tema, quanto na maneira de fazer filmes. Com um sincretismo singular de memória, sonhos, fantasia e desejo, os filmes de Fellini carregavam uma visão extremamente pessoal da sociedade. Seu principal tema era a humanidade: pura, nua; sua produção era onírica, temperamental, a câmera era solta, as histórias e cenas eram assumidamente artificiais, as narrativas se desprendiam das amarras do convencional começo, meio e fim.
Enquanto isso, o filme de Lexton tem uma estrutura de sonho, banhado por um realismo fantástico em que tudo o que acontece é possível, mas obscuro ou implausível. As cenas se sobrepõem como as de um sonho: chega-se a lugares, mas os caminhos nunca são retratados. O destino de Lucy é o escritório de Fellini em Roma, mas diversos obstáculos a impedem de atingi-lo prontamente. Lexton consegue transmitir a sensação labiríntica de dar voltas e mais voltas – de sonho, mas também de pesadelo.
Além disso, reverenciando a técnica de Fellini de aproximação entre realidade e imaginação, Lexton brinca com uma história inspirada por um acontecimento verdadeiro. Nancy Carthwright, hoje roteirista e a voz de Bart em Os Simpsons, partiu em uma aventura para conhecer o diretor em 1985, quando ainda estudava cinema. Em uma aula sobre A Estrada da Vida, Nancy decidiu que precisava conhecer o criador desse filme, e mesmo com um “não” do escritório em Roma, a estudante partiu para a Itália.
A fantasia não tira nada do real, e o real, nada da fantasia. Quem assiste o filme se perde entre os dois, ou não se importa em diferenciá-los. Assim, mesmo que o espectador não seja um conhecedor de Fellini, é possível observar as influências do italiano – pequenos toques, singelos rastros. Em busca de Fellini desperta o próprio desejo de sair em busca do diretor italiano: conhecer sua obra, seu trabalho como cartunista, sua história, sua vida.
Contudo, talvez (apenas talvez), para um conhecedor de Fellini, o filme não seja especial o suficiente para suscitar a sensação de fantasia que apenas “Il Maestro” provoca. Mas não é isso que deseja: uma homenagem é uma homenagem, e Em busca de Fellini não pretende ser Fellini – ou sequer encontrá-lo. Pretende apenas reverenciar o cineasta italiano da maneira mais doce possível.
Há uma cena em que Lucy senta-se com um jovem italiano em um café e, escalando o abismo da timidez, conversam sobre adocicar os capuccinos. Lucy conta que sua mãe gostava de três saquinhos de açúcar no seu. “Sweet”, o italiano responde. “Dulce”. E Lucy reage: “La Dolce Vita” (Fellini, 1960).
Essa palavra pode resumir Em busca de Fellini, mesmo meio a todos os pesadelos e angústias explorados no filme: doce.
Confira o trailer legendado:
por Amanda Péchy
amandapechyduarte@gmail.com