Por Vito Santos (vvitofs@usp.br)
Em clima de terra arrasada, a Itália da metade do século XX se encontrava como boa parte do continente Europeu: decadente e sem visão otimista de futuro. O desemprego, a pobreza e a fome estavam presentes na moldura de desolação que enquadrava o retrato do povo italiano, cujo dia a dia refletia o desespero de tentar sobreviver às mazelas deixadas pelo longo regime fascista.
Apegados a uma necessidade latente de apelar para o senso de coletividade, os jovens cineastas, munidos de poucos equipamentos, decidem inserir a realidade popular de miséria generalizada como tema central de suas películas. Fazendo do cinema seu laboratório documental, os integrantes dessa corrente neorrealista buscaram, no âmago dos problemas sociais, exaltar as formas de resistência popular para combater um sistema que distribuía as desigualdades e reduzia suas expectativas de futuro.
Rossellini, De Sica e Visconti mal sabiam que mudariam a forma de narrar as intempéries do povo trabalhador nas telas do cinema. No Brasil, a forma de fazer filmes do movimento encontraria forte adesão, tanto pelo relativo baixo custo de produção, quanto pela rejeição à realidade fantasiada.
O cinema pré-neorrealista
O cinema italiano é mais antigo do que o neorrealismo e traçar um panorama da sétima arte no país requer entender suas motivações prévias ao surgimento do movimento em si. Na década de 1910, a onda realista de cinema mudo, vinda principalmente de Nápoles, foi um grande expoente da arte cinematográfica italiana. Adaptando obras românticas da literatura e do teatro, essa época viu nascer famosas produções como Sperduti nel buio (1914) que fazia uso das montagens para contrastar a realidade aristocrática em oposição à realidade popular.
A partir da primeira Grande Guerra, a película se torna um dos aparatos utilizados para fortalecer uma visão nacional e transmitir ideias de um grupo. O uso do cinema como propaganda e veículo ideológico foi arma letal de grande importância dali em diante, principalmente nas mãos do fascismo, ideologia que tomaria a Itália dos anos 1920 à metade da década de 1940.
Como prova da importância da sétima arte para o fascismo italiano, houve a criação de um órgão oficial para cooptar o cinema à propaganda fascista. O L’Unione Cinematografica Educativa, ou simplesmente LUCE, foi criado por Mussolini após se reunir com Luciano De Feo, integrante de um pequeno grupo de cinema educativo chamado Sindicato Istruzione Cinematografica (SIC).
Benito Mussolini, ao ver potencial doutrinário nas filmagens produzidas pelo SIC, decide institucionalizar o empreendimento. Esse se torna responsável por coordenar curtas, médias e longas-metragens para educar a população nos valores fascistas.
De 1928 até os anos finais do regime, o cinema foi resumido em uma grande ação propagandista do governo. Até mesmo porque nada passava fora dos crivos dos órgãos de censura e repressão. Algo que rompesse com o fascismo só poderia vir à tona em todo seu potencial com o fim da superestrutura de opressão.
É entre 1940 e 1945 que o regime começa a acumular sucessivas derrotas e a perder o monopólio da força e o controle ideológico. Ao mesmo tempo, os agrupamentos de guerrilha se fortaleciam cada dia mais e o discurso antifascista ganhava adeptos a cada passo em falso de Mussolini.
As greves de 1943, os sucessivos bombardeios e a atuação da imprensa de oposição, ilegal e perseguida na época, desmanchavam os arranjos de poder do governo do duce. O apoio popular era escasso e, naquele mesmo ano, Mussolini seria destituído e, em 1945, fuzilado, dando fim ao período fascista iniciado em 1928.
A luta para o fim do estado de exceção significou para o povo um triunfo de sua própria autoria. Não foram os ingleses, ou os franceses, nem mesmo os americanos os responsáveis pelo combate para extirpar a doutrina fascista do solo italiano, mas sim os próprios residentes. A união dos trabalhadores e camponeses era o que moveria os moinhos da história e traria à nova república as setas que apontavam em direção a um futuro democrático e livre de ideologias opressoras.
Mariarosaria Fabris, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, escreve em seu livro O Neo-realismo Cinematográfico Italiano (Edusp, 1996) que “para os homens de cultura impunha-se a necessidade de registrar o presente — e por presente entendia-se a guerra e a luta de libertação —, de fazer reviver o espírito de coletividade que havia animado o povo italiano”. O cinema, então, é escolhido como palco principal para promover o senso do homem coletivo após os anos de cinema de propaganda fascista.
Capturar e encapsular em uma hora e meia as lutas cotidianas do povo italiano era uma tarefa que exigia um instrumental diferente do cinema promovido pelo LUCE ou pelas grandes produtoras estrangeiras. Sem efeitos e técnicas visuais sofisticadas, sem cartilha ideológica ou indumentária pomposa, a câmera era a máquina de raio-x que investigaria no corpo da sociedade italiana suas enfermidades e as escanearia para o público dar o diagnóstico. O viés documental prevaleceria sobre a ficção nessa nova forma de fazer cinema nascida em terras mediterrâneas.
O epíteto ‘neo-realístico’
É errado, todavia, afirmar que o movimento surge no dia em que as tropas fascistas desocuparam Roma. As inspirações do neorrealismo já nasciam nos anos finais da ditadura fascista tomando como referência trabalhos de forte veia social e política como os do diretor francês Jean Renoir.
Quando Piccolo Mondo Antico (1941), de Mario Soldati, e Sissignora (1941), de Fernando Poggioli, foram lançados, o que se via eram personagens que contracenavam com cenários reais e lotados de transeuntes e civis comuns. Além disso, dialetos populares começavam a figurar nos roteiros dos principais cineastas da época, o que já, por si só, demonstra centralidade das dinâmicas populares. O uso de montagens que, assim como no realismo napolitano, usavam de estratégias para comparar as realidades pobres e ricas volta à tona.
Há boatos que o montador do filme Ossessione (1943), de Luchino Visconti, teria definido a estética que os filmes daquela época estavam preconizando como “o epíteto do ‘neorrealismo’”. O nome vingou e batizou o movimento, principalmente após o lançamento de Roma, Cidade Aberta (Roma città aperta, 1945).
O sucesso do longa de roteiro e direção assinados por Roberto Rossellini despertou a atenção do mundo. “O efeito que [Roma, cidade Aberta] teve foi impressionante. Ficou cerca de um ano em cartaz em Nova Iorque, na época em que os Estados Unidos viviam a Era de Ouro de Hollywood”, informa Carlos Augusto Calil, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR) da USP.
Superar as grandes produções norte-americanas e se manter em cartaz por tanto tempo não era uma tarefa fácil naquele período. Carlos Augusto Calil revela que “os americanos, diferente dos europeus, viam o cinema muito mais como entretenimento do que como meio educativo”. Portanto, quando um longa de enredo fortemente político vence o grande prêmio de Cannes e desponta em terras estrangeiras pode significar uma mudança no mundo do cinema.
Contrastando ainda mais com as grandes produções, Roma, Cidade Aberta teve custos de produção baixíssimos, característica que seria predominante nas realizações da vanguarda. As filmagens eram em locais abertos e de grande movimentação, e os atores eram, majoritariamente, pessoas comuns.
Não havia presença de grandes efeitos sonoros ou visuais, pois a intenção da película era representar os desdobramentos do fim da guerra para o povo trabalhador. Além disso, os cineastas se encontravam em um lugar que carecia de recursos para financiar produções cinematográficas. O neorrealismo se tratava de um cinema de possibilidades frente aos desafios.
O impacto dessa nova verdade foi fazer um cinema que fala de pessoas e não um cinema de fantasia e artifício
Carlos Augusto Calil
Nos anos subsequentes ao lançamento do longa vencedor em Cannes, o neorrealismo se expande em outras produções como Paisà (1946), do próprio Rossellini, Ladrões de Bicicleta (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio De Sica e A Terra Treme (La Terra trema, 1948), de Luchino Visconti. Todas as obras seguem o mesmo modelo: filmar com a intenção de capturar a realidade da forma mais crua possível, quase como um documentário.
Não é de surpreender que o movimento estético tenha encontrado terreno fértil para semear novas ideias e florescer no Brasil dos anos 1950, onde o financiamento para o cinema também era escasso.
O Brasil mais ‘neo-real’ do que nunca
Dos subúrbios da Itália às vielas cariocas, a vida do povo trabalhador sempre foi uma árdua batalha perante as injustiças e mazelas do sistema econômico. Entende-se, então, porque o neorrealismo se fundiria tão perfeitamente à realidade nacional brasileira, que dispunha de muito material para ser adaptado.
Vindo de uma crise desde a década de 1940, o cinema brasileiro viu sua iniciativa de criar e consolidar uma indústria cinematográfica fracassar. A Companhia Cinematográfica de Vera Cruz era representante de uma vertente que queria transpor o modelo hollywoodiano no território nacional. Não conseguindo se manter, foi abandonado na década de 1950, após o lançamento de um seleto conjunto de filmes. “O projeto de cinema [do estúdio Vera Cruz] foi uma tentativa que faliu principalmente por causa da condição econômica e do assédio do cinema norte-americano”, afirma Calil.
A inspiração para os cineastas amadores depois do fim do estúdio viria do movimento que trazia um cinema de baixo custo e altamente politizado. Os militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), impedidos de entrar no Vera Cruz, enxergaram no neorrealismo italiano a possibilidade de explorar as narrativas do território nacional de forma autônoma. A intenção era contrapor o modelo exportado dos Estados Unidos e se lançar para tentativas que se adaptassem melhor à realidade social brasileira.
Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, principais cineastas do período, traduzem a vanguarda para os dialetos urbanos e fazem o cinema acontecer nos morros, becos e ruas do Rio de Janeiro. É com Agulha no Palheiro (1953) e Rio 40 Graus (1954) que os diretores fazem as primeiras reproduções do modelo cinematográfico neorrealista: filmagens ao ar livre, atores não profissionais e dramas cotidianos. Calil diz: “Rio 40 Graus virou a chave do cinema brasileiro em 54 e 55”, posto que o trabalho de Nelson Pereira viria a influenciar todo o cinema brasileiro dali em diante.
Com as dificuldades do cinema brasileiro de ocupar seu próprio mercado, o neorrealismo veio a ser muito conveniente […] até porque não havia outra alternativa.
Carlos Augusto Calil
O cinema novo, o cinema marginal e as correntes do cinema nacional subsequentes se espelhariam no neorrealismo à brasileira de Nelson Pereira e Alex Viany. Tanto que a frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, atribuída a Glauber Rocha — maior representante do cinema novo —, advém, justamente, da influência do movimento italiano do pós-guerra em terras verde-amarelas e da existência de um cinema acessível a todos.
“O neorrealismo na Itália durou muito pouco, logo a indústria italiana se reergueu, mas, ainda assim, foi um período muito rico”, relata o docente do CTR. Mesmo com a brevidade de sua existência, o movimento conseguiu se fazer presente como influência nas narrativas brasileiras.
Seja na adaptação da literatura popular, como em Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira, ou ainda nos dramas políticos, como Bahia de Todos os Santos (1960), dirigido por Trigueirinho Neto, é possível identificar o elemento centralizador de cada enredo: o povo. No Brasil ‘neo-real’, trazer o povo ao cinema sempre foi mais que vender ingressos. É levar para a tela a história de quem senta na poltrona; é escrever o enredo daqueles que giram os motores da história do Brasil, da Itália, do mundo.