O movimento que teve origem na periferia passa a simbolizar aspectos que estão bem longe dela
Por Jeferson Gonçalves (jefmgoncalves@gmail.com)
Quando caminhamos pela Rua Oscar Freire mal percebemos a quantidade de marcas que desfilam em seus “modelos” por nossa visão e dizemos – é normal, oras. A questão que nos gera discussão é: como que esse garoto da periferia tem o mesmo tênis que eu? É inegável e até infantil ignorar que vivemos uma perfeita cultura de consumo em que o próprio consumo é o eixo central de todas as interações sociais e, sendo assim, ele acaba se tornando um eixo central de um movimento artístico e cultural que antes era fundamentado na originalidade.
O funk tem sua origem no morro, na periferia, na comunidade, e representa esse lugar, tornou-se, até, patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Aborda, na linguagem do local, o estilo de vida, a dificuldade, a exclusão social e a violência que assombra essas regiões. Ele tem, portanto, um caráter de ser crítico, de ser uma via de manifesto de opinião, mas peca ao representar uma realidade tão distante da vivida por tantos. Um movimento que representava o coletivo em suas melodias, começa a representar o único, o individual.
“Contando os plaque de 100, dentro de um Citroën”
O funk ostentação ganhou público com suas letras e exaltação à marcas e produtos de alto valor mercantil e passou até ditar moda: a moda do ostentar. Quanto mais marca você carregar consigo, mais está exibindo o “seu” valor, o que importa é o brilho do ouro em seus braços e pescoços, o fundamental é deixar bem visível o símbolo do tênis e do boné aba reta que veio ali dos EUA.
MC Guime, um dos expoentes dessa nova forma de fazer o funk tem origem humilde, chegou a trabalhar em uma quitanda durante a adolescência e hoje fatura de 25 a 30 mil reais em cada noite e 500 mil por mês. E é essa origem que liga todos esses funkeiros. A origem humilde, a origem no morro é como se fosse uma pré-disposição para tornar-se um funkeiro à la ostentação de sucesso. O próprio MC Guime faz questão de exibir a todos – e principalmente em seus shows – todo o luxo circundante em sua vida: seus carros, motos, roupas de grife e ouro, muito ouro. Mas e a origem?
Em entrevista, a Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda, do departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, faz uma reflexão ao dizer que é como se essa origem humilde só lhes servisse (aos funkeiros) para entrar no mercado e vender, como se isso os tornasse algo diferenciado no mercado.
De acordo com a Profa., os objetos de ostentação significam socialmente e ter aquele que parece o mais caro, o mais valorizado no momento, fala mais de você e de sua posição. É um verdadeiro conflito entre o ter e o ser. O problema dessa esfera de consumo que passa a sediar os prazeres humanos faz com que se desenvolva uma identificação perversa entre consumo e posição social. É quase que contraditório ver tantos MCs que hoje apenas esbanjam e vivem uma cultura de exibicionismo de seus objetos materiais – passam a ser veículos midiáticos.
Por outro lado, há também, em sua maior parte os próprios MCs, que o funk ostentação é uma forma crítica de mostrar que quem nunca teve direito ao consumo, dado a uma clara exclusão social e econômica observada no Brasil, pode sim consumir, assim como as madames da Oscar Freire e Cidade Jardim. Seria uma forma de mostrar à comunidade que todos podem consumir e podem fazer parte desse mundo que talvez ainda nem saibamos qual é, mas já que é importante consumir: ai vamos nós!
O sonho do exibicionismo próprio
Analisando o público abundante do funk ostentação, encontramos em suma pré-adolescentes e adolescentes, que vêem nos MCs um estilo a ser seguido. Para a Profa. Maria Arminda, um adolescente vê no MC todo o seu sonho de consumo (aquele lá, que começou ainda cedo quando a criança clamava por um Mc Lanche Feliz): as marcas, os carros e as mulheres, criando assim um sonho de ascensão a todo custo. Mas esse sonho custa caro, e muito caro. Ao concluirmos que o processo educacional que se desenvolveu no Brasil foi o de universalização, percebemos que ele encontrou drásticas falhas, sobretudo, no ensino público. A escola mostrou-se desinteressante e não oferecia mais garantias de ascensão e participação socioeconômica numa era controlada pelo capital, tudo isso aliado à dificuldade que a maioria das famílias de periferias encontram, de muitos filhos por casal e falta de políticas públicas, cria um conflito dentro do próprio jovem que quer consumir mas não enxerga vias para essa realização. A exorbitância consumista pode até abrir portas para um mundo muito mais difícil de sair, a criminalidade.
Vamos cantar o TER
Parece ficar claro: o funk ostentação é uma resposta ao nosso estilo de vida. É uma resposta a esse modo de agir pensando em quando será lançado o próximo iPhone ou qual será a tendência na próxima coleção daquela marca que mal sabemos pronunciar o nome. Mas sabe por que ela incomoda? Porque essas camadas que antes estavam apagadas devido ao contraste urbano começam a aparecer mais, a brilhar mais que o seu Rolex. E tudo fica complicado e errado quando alguém lá do morro tenta invadir o camarote classe A – se autodenominando classe A.
Porém, mais triste que assistir a essa briga de classe que lembra os duelos de filmes de velho oeste, é assistir, de pista vip e tudo, o funk perder seu caráter rude, crítico e genuíno. Ver que um movimento que servia de integração, hoje começa a ser um segregador. É triste ver o funk ser domesticado pelo mercado e virar uma grande indústria cultural assim como aquela que você veste para se exibir.