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Da gestação ao aleitamento, maternidade indígena deve ser respeitada

Pesquisa revela ser essencial que a área da saúde construa uma ponte entre o saber científico e o saber popular para adaptar as suas práticas às vivências das mulheres
Vivências de mulheres indígenas acerca do ciclo gravídico-puerperal
Por Júlia Sardinha (jusardinha.eca@usp.br)

Ser mulher e indígena em um país como o Brasil é desafiador: suas crenças são menosprezadas, seu território é ignorado e a sua saúde, comprometida. A negligência se arrasta há séculos e profissionais das mais diversas áreas procuram caminhos para melhorar a qualidade de vida dos povos tradicionais. A professora da Universidade Franciscana (UFN) — em Santa Maria, no Rio Grande do Sul —, Dirce Stein Backe é mais uma dentre os pesquisadores brasileiros que lutam por essa causa.

Em entrevista à Jornalismo Júnior, a doutora em Enfermagem contou detalhes sobre a sua pesquisa mais recente, nomeada Vivências de mulheres indígenas acerca do ciclo gravídico-puerperal. O artigo foi publicado nesta sexta-feira (11) pela Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn).

Segundo Dirce, a proposta do estudo partiu de uma das suas alunas de mestrado em Saúde Materna e Infantil. A orientanda mora no município de Querência, no estado do Mato Grosso (MG), local onde se desenvolveu o projeto. De maio a agosto de 2023, o grupo entrevistou 27 gestantes entre as 31 aldeias indígenas existentes na região.

A motivação para encarar o projeto veio após observações dos dados apresentados pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) — conhecidos também como Agenda 2030, da ONU — feitos por Dirce. “A questão da mortalidade infantil ainda é uma grande lacuna no Brasil, principalmente entre as mulheres pobres e indígenas”, afirmou.

Com cuidado e respeito, elas decidiram adentrar os territórios para conversarem com as mulheres indígenas. O intuito ia além de cumprir os ODS: a pesquisa buscava ouvir as gestantes e ajudá-las a serem mais autônomas nas suas escolhas referentes à maternidade.

“Nós [brasileiros] não vamos atingir os ODSs. O nosso prazo está muito curto e tivemos um enorme retrocesso na área de saúde materna-infantil.”

Dirce Stein Backe

O método escolhido para dar vida ao projeto foi a técnica de análise denominada Reflexive. Dirce a caracterizou como uma análise que “vai além dos dados apresentados” e que é uma prática ideal para pesquisas qualitativas, como a realizada.

Dentro da singularidade

O nascer de uma nova vida é um momento inesquecível para muitas pessoas. Mas as interpretações sobre o nascimento de um novo ser vivo  podem variar com as particularidades e tradições de cada pessoa ou grupo. As gestantes indígenas de Querência, por exemplo, vinculam fortemente o nascimento à religiosidade e a tudo aquilo que é natural.

De acordo com Dirce, o pré e o pós-natal das indígenas são bem singulares. Dentre as preferências, 23 das entrevistadas da professora optaram por partos normais. A escolha não só leva em consideração as crenças individuais, mas também o conforto das mulheres, que procuram dar à luz próximas aos seus familiares — como mãe, sogra, irmãs e parteiras.

Apesar de pertencerem a diferentes povos, há quase uma unanimidade entre elas pela cultuação do percurso natural do nascimento, com 23 partos vaginais realizados nas próprias aldeias onde residem. Para elas, o corpo deve ser livre de cortes ou agressões físicas — que podem decorrer de um parto hospitalar —, já que é reconhecido como sagrado.

“A questão do parto no hospital é um grande sofrimento para elas. (…) A cesárea possui uma conotação de violência, frieza.”

Dirce Stein Backe

Mesmo frente às recusas de irem até o hospital para o nascimento de seus filhos, as gestantes continuam a ser duramente induzidas a realizar o parto hospitalar. Segundo Dirce, caso a mulher opte pelo parto hospitalar, é fundamental que ela esteja consciente dos procedimentos de uma cesariana, caso contrário, pode se tratar de um caso de violência obstétrica. “As mulheres indígenas prezam muito pelo ‘tempo do bebê’ e na cesárea quem escolhe [a hora do parto] é o médico, não é a criança nem a mãe”, afirma.

Procedimentos feitos em partos tem diferençes valores a depender de cada grupo.
Dados do Ministério da Saúde indicam que o Brasil é o segundo país com o maior número de cesáreas do mundo, com 55,5% dos partos em 2023. A Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que apenas 15% dos nascimentos sejam não-normais. [Imagem: Reprodução/Freepik]

Vindos ao mundo, bebês e mães continuam a enfrentar dificuldades quanto ao respeito pelas suas culturas. Durante o puerpério, o aleitamento se torna uma prática da maternidade que também entra na consagração divina das indígenas. Para alimentarem os seus filhos, elas se esforçam tanto que, de acordo com a pesquisa, elas cessam a alimentação do bêbê em ocasião de um novo nascimento.

Em um momento tão íntimo, as indígenas buscam estender o aleitamento o máximo de tempo possível, mesmo que a prática lhes custe a saúde. Das 27 entrevistadas por Dirce, muitas afirmaram que apresentaram fraqueza e demais problemas devido ao excesso de amamentação. Porém, elas não sucumbem à fórmulas ou ao leite artificial: “O leite forte é o delas. O leite dos brancos é fraco porque é comprado e elas entendem que esse não é o melhor para as crianças”, afirmou Dirce.

Dentre as medidas que os agentes de saúde podem colocar em prática, a mestre em Enfermagem destaca a readequação alimentar dessas mulheres. Ela afirmou ser necessário “pensar em uma alimentação que seja diferenciada para elas durante esse período [de gestação e de aleitamento]” de modo a melhorar a qualidade de vida das mães.

Uma mulher por vez

O aleitamento materno possui peso cultural e até divino para diversos povos.
O aleitamento materno é um momento de conexão entre a mãe e o bebê que as populações indígenas consagram como sagrado, natural e divino. [Imagem: Reprodução/Freepik]

Se 31 aldeias indígenas estão concentradas apenas no município de Querência, imagine quantas milhares estão espalhadas pelo Brasil? Dirce leva a diversidade dos povos tradicionais em consideração quando afirma que é preciso intensificar as políticas públicas para esses grupos.

“Nós não podemos ter uma política que vai funcionar de modo igual em todos os territórios, em todos os estados. Precisamos de políticas públicas bem específicas para os indígenas, mas que também não sejam uma regra para todos”, disse a pesquisadora. Além de não considerar políticas igualitárias para grupos tão diversos, ela acrescenta que não há nenhum conhecimento — seja o dos não-indígenas ou o dos indígenas — como superior.

Frente às particularidades de cada mulher durante e após a gestação, Dirce propõe que “é preciso romper com o modelo hegemônico biomédico”. Para ela, medidas como essa não somente devem ser acompanhadas da valorização dos costumes tradicionais das mães indígenas, mas também da qualificação de profissionais que sejam originários das aldeias onde atuarão como agentes da saúde.

“Eles [os povos indígenas] têm um saber que é muito próprio deles, e não é superior nem inferior a nenhum outro. Mas é um saber que precisa ser compreendido e precisa ser dialogado.”

Dirce Stein Backe

Dirce declarou ter sido desafiador lidar com tantas diferenças culturais. Acima do propósito científico, a equipe de pesquisadores prezou pelo respeito e pela paciência para fazerem o contato com as mulheres que conheceram durante o longo processo de entrevistas e análise dos relatos. “É uma desconstrução. Isso [realizar a pesquisa] foi um grande aprendizado para nós [porque] temos que nos despir de muitas coisas e se revestir de muitas outras”, apontou.

O processo que durou cerca de quatro meses obteve resultados significativos que incentivam os realizadores da pesquisa a darem continuidade no projeto. De acordo com Dirce, o próximo passo é abordar outras perspectivas sobre a temática, obter dados mais concretos e levá-los ao Ministério da Saúde para que o órgão promova políticas públicas mais inclusivas e eficazes.

[Imagem de capa: Reprodução/Freepik]

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