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O mito da Super Mãe

Por Beatriz Arruda (beatriz.arruda12@gmail.com) A imagem da mulher realizada com o filho no braço povoa a mente de grande parte das pessoas. Na sociedade em que vivemos, é automático supor que o momento mais feliz na vida de uma mulher é quando ela se torna mãe, pois as propagandas, as redes sociais e a cultura …

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Por Beatriz Arruda (beatriz.arruda12@gmail.com)

A imagem da mulher realizada com o filho no braço povoa a mente de grande parte das pessoas. Na sociedade em que vivemos, é automático supor que o momento mais feliz na vida de uma mulher é quando ela se torna mãe, pois as propagandas, as redes sociais e a cultura ocidental, no geral, estão aí para reafirmar essa ideia. Realmente, a maternidade pode trazer muitas alegrias e ser o ápice da felicidade para algumas mulheres. No entanto, é preciso lembrar que nem todas precisam se sentir dessa maneira.

Permeada de estereótipos, a maternidade que vemos reproduzida atualmente não representa a maioria das mulheres. Os desafios e as dificuldades da função materna quase nunca estão em evidência, e, quando vêm à tona, uma avalanche de julgamento os acompanha. O grande problema de toda essa idealização é que muitas mulheres se veem perdidas ao constatar que ser mãe não é tudo aquilo que dizem e, sem qualquer referência, precisam descobrir sozinhas o caminho desconhecido da maternidade.

Ilustração da norueguesa Jade Nordahl, que retrata situações vividas na maternidade.

Maternidade: uma construção social

A noção de família atual, com pais e mães que se voltam para o cuidado dos filhos, nem sempre esteve presente nas sociedades ocidentais. Segundo o historiador Philippe Ariès, na Idade Média, principalmente nas classes populares, não havia muita distinção entre crianças e adultos, já que os filhos eram considerados aptos para serem independentes perto dos sete anos, quando passavam a viver sem o auxílio da mãe. Na Inglaterra do final do século XV, a situação era parecida: crianças com sete anos eram mandadas para outras famílias, onde realizavam tarefas domésticas e outros serviços pesados.

Este cenário começou a mudar no início dos tempos modernos, quando cresceu a importância da educação no contexto social. As famílias, então, passaram a ser responsáveis pela instrução dos filhos e, com isso, o grau de afetividade foi aumentando. Já no século XVIII, a concepção de família era outra, mais próxima da contemporânea, tendo os filhos no centro da vida familiar.

Com a mudança nas relações entre pais e filhos, transformou-se também o papel exercido pela mulher mãe. De acordo com Paula Penteado, psicóloga e terapeuta de família e casal, a maternidade era caracterizada de modo diferente. “No fim do século XV na Inglaterra, a falta de afeição dos ingleses em relação a suas crianças era uma atitude comum. Havia, ainda, um sentimento classificado como uma certa “deselegância social” em demonstrar amor demasiado aos filhos”, escreve ela no artigo “Construção Social da Maternidade”.

De acordo com Paula, do final do século XVIII em diante cresce a responsabilidade da mulher em relação aos filhos, já que passa a ser encarregada pela educação deles e por isso se torna uma entidade quase sagrada. A demonstração de afeto, antes evitada, passa a ser amplamente exibida. “A novidade em relação aos dois séculos precedentes é a exaltação do amor materno como um valor ao mesmo tempo natural e social, favorável à espécie e a sociedade.”, diz. “Nova é a associação das duas palavras “amor” e “materno” que significa a promoção do sentimento e também a promoção da mulher enquanto mãe”.

A maternidade já não é uma função obrigatória na vida das mulheres, como era  antigamente. Entretanto, a sociedade ainda cobra esse papel por acreditar que a maternidade é um instinto.  “Existe uma crença cultural de que esse amor seja algo natural, que nasce com as mulheres como uma verdadeira característica feminina”.  afirma a psicóloga.

A romantização da maternidade

Em fevereiro de 2016, circulou na rede social Facebook o “desafio da maternidade”, que convidava mulheres a postarem três fotos que mostravam situações felizes que tiveram como mãe. Entre tantas imagens que representavam os aspectos positivos de ser mãe, algumas mulheres viram a oportunidade de questionar estereótipos e expor o lado daquelas que não se sentiam tão confortáveis em exercer tal papel. Chamavam a atenção para o fato de a maternidade não ser um mar de rosas, evidenciando os momentos em que se sentiram desgastadas e cansadas, e alertando sobre a exaltação da função materna, que só acaba por sobrecarregar ainda mais as mulheres. Apesar de ter recebido o apoio de muitas pessoas, a grande maioria repudiou o ato e distribuiu ofensas para essas mães. “Vivemos em uma época onde é inadmissível fazer qualquer comentário que, de qualquer forma, possa ser interpretado como contrário à maternidade”, destaca Penteado

Porém, o que elas denunciaram é a realidade de muitas mulheres, que não se sentem confortáveis em exprimir o lado B da maternidade, com seus obstáculos e desafios. A psicanalista Anna Mehoudar, que também é fundadora do Grupo de Apoio à Maternidade e Paternidade (GAMP), ressalta que muitas mulheres se surpreendem com a rotina com um filho. “A pessoa constrói a vida e acha que está redonda, aí vem a criança na contramão. Não é como a família Doriana. Dá trabalho, é preocupação, plano de saúde, creche, aprender a lidar com o filho. Há todo um cenário para poder cuidar da criança”, aponta.

Paula também destaca que a relação entre mãe e filho se dá como qualquer outra, é uma construção que acontece de “maneira gradual através de um aprendizado” e não é fruto de “geração espontânea”. Nasce da proximidade física e emocional e só pode ser conquistado com a convivência. É nessa relação do cotidiano que cresce o afeto e o amor nasce. Ela acredita que o grande problema da idealização é supor que, assim que o bebê nascer a vida da mãe será perfeita. “A romantização passa pela ingenuidade de pensar que o bebê vai nascer, a mãe sentirá uma completude e tudo será maravilhoso”, disse.

A mãe Mariana Clara percebeu ainda na gestação que a maternidade não era as mil maravilhas como diziam. Mas foi o puerpério, período que se estende até a sexta ou oitava semana após o parto, o momento mais difícil para ela: “Acontecem inúmeras coisas que ninguém fala. O puerpério é bem complicado, porque o bebê nasce, você olha para ele e ele pra você, e você pensa: “E agora?”” , conta. “Logo de cara a mãe entra numa rotina muito pesada. Ficava o dia inteiro a favor dele e não conseguia fazer nada, nem minhas necessidades corporais. Dá uma certa tristeza, principalmente com afastamento dos amigos. Eu perdi muitas amizades”.

Com dificuldades para voltar ao mercado de trabalho e já tendo abandonado a faculdade por falta de tempo, para Mariana não é a criança que limita, mas a visão muito conservadora da maternidade. Não há compreensão da  situação das mães, pois o julgamento começa já na entrevista de emprego quando diz que é mãe solo. “Se nós vivêssemos numa sociedade acolhedora, que dá oportunidade para as mães, que fale mais desse lado B da maternidade, talvez não fosse  tão frustrante e tão pesado como é”, ressalta. O julgamento também parte de pessoas próximas, principalmente amigos homens: “Eles acham que a maternidade é algo instintivo, que nasce com a mulher e não é assim. Ser mãe é uma escolha e essa escolha tem as suas qualidades e defeitos, como qualquer outra na vida”, explica. “Então tem dia que estou de saco cheio mesmo, meu filho está agitado, frustrado, numa fase difícil. Tem dia que não quero lidar, ignoro, ligo para alguém pedindo socorro porque estou cansada, exausta e não estou sabendo lidar com o meu filho”, diz ela.

No princípio, ela  conta que se sentiu culpada e se cobrou bastante ao ver que não estava sabendo lidar com a maternidade. Mas ficou mais tranquila quando viu que não acontecia somente com ela. Encontrou outras mães com realidades parecidas e a partir de grupos no Facebook e Whatsapp criou uma rede de apoio com pessoas que a ajudavam e estavam dispostas a conversar quando precisava. A importância desses grupos em sua vida foi tanta que até se mudou do Paraná para São Paulo, onde estava esse suporte. Sem isso, ela acredita que já estaria sem forças e teria jogado muita coisa para o alto.

Mudança necessária

Thaiz Leão Gouveia, designer e ilustradora, não tinha projeção nenhuma para a gravidez, que veio no susto. A gestação não foi fácil desde o primeiro momento, quando ainda não tinha certeza do resultado do teste e já ouviu: “Você acabou com a sua vida”. O puerpério foi um sofrimento, o estar eternamente disponível, 24 horas por dia, a deixava muito tensa. Além disso, ao passar pelos canais na televisão via que o que era representado não era nada parecido com o que ela estava vivendo.

Logo no primeiro mês, Thaiz quis extravasar de algum jeito o que estava sentindo. Sentou no computador e fez uma tirinha rápida, um desenho simples de uma situação que passou durante a recente maternidade, era a mensagem que importava. Publicou em seu perfil pessoal e foi um sucesso. Muitas mulheres se identificando, marcando outras pessoas e pedindo para que postasse mais. Foi assim que surgiu o Mãe Solo, página onde Thaiz posta quadrinhos sinceros  sobre a maternidade. Realizando um trabalho para o ser humano sobre o ser humano, para ela, a tirinha é um subproduto de toda a experiência proporcionada pela página e o maior ganho vem dos comentários, que mostram um crescimento no número de pessoas que estão entendendo como a cobrança de ser uma Super Mãe pesa na vida das mulheres. “Está na hora de quebrar essa ideia de que mulher dá conta de tudo e de que pai não tem mão para o cuidado dos filhos”.

Uma das tirinhas de Thaiz Leão, que mostra situações cotidianas na vida de uma mãe.

O nome da página surgiu porque o termo mãe solteira era horrível para Thaiz. Mãe solo, segundo ela, passa uma imagem muito mais poética e verdadeira do que é a criação de um filho sozinha. Não se trata da solidão em si, mas de estar sozinha em uma jornada, um espetáculo, um show, que é a vida dela com o filho. A solidão não abrange apenas o parceiro romântico, ela é muito mais ampla.

A ilustradora conta que, no fim, a desconstrução da maternidade se tornou um ativismo, uma causa para qual lutar. Segundo Thaiz, quebrar tal romantização é uma forma de dar mais dignidade para a mulher mãe, livrando-a da culpa, além de inspirar outras pessoas a dizerem a verdade, reproduzindo um discurso mais sincero sobre a maternidade.

Ainda um tabu

Apesar de crescerem os discursos que estabelecem uma polaridade com a exaltação da maternidade, eles ainda são muito estigmatizados. Parte pela imagem da mulher maternal se encontrar muito enraizada na cultura, parte pela mídia, que reforça ainda mais esse papel.

Tanto é um tabu que, há 30 anos, Simone de Beauvoir e  outras psicólogas e sociólogas levantaram o questionamento sobre o instinto materno em suas obras e a sociedade da época desconsiderou suas posições por serem feministas, as vendo mais como militantes do que científicas. “Como consequência, em vez de aprofundar essa discussão, estes trabalhos foram desqualificados e relacionados com a esterilidade voluntária, agressividade e a virilidade destas mulheres”, aponta Paula.

Anna Mehoudar acredita que a sociedade ocidental faz uma divisão entre Eva e Maria. “A maternidade sempre foi envolta na mãe ser Maria, mais idealizada e santificada, ocupando um lugar de pureza. Enquanto Eva é erotizada”, afirma. Além disso, o papel da mãe, como se vê, ocupa um espaço importante e falar algo contra essas mulheres, que muitas vezes são as pessoas que asseguram  todo o cuidado e instrução dos filhos, é muito difícil.

O boca a boca também é um fator relevante na perpetuação da maternidade romantizada. Para Thaiz, não foi ela quem descobriu que a maternidade era difícil. Sua mãe, sua avó e bisavó sabiam que não era uma mar de rosas, mas foram ensinadas a esconder debaixo do tapete, arcar com tudo sozinha, porque o importante é “fazer média”. “A televisão mostra mulheres que têm 15 filhos e constroem um império. De fato, isso é possível, mas não é a realidade da maioria das mães. Vivemos em uma cultura de heróis, que cria e quer heróis para viver”, diz.

E a mídia publiciza e reforça o que é reproduzido pelas pessoas. “Se você abre a revista Caras, por exemplo, consegue perceber que a criança se tornou o centro das atenções, o centro da vida dos pais. Ter filho virou glamour”, ressalta Mehoudar. Atualmente, ser uma pessoa legal é ter um filho legal, o que sobrecarrega as exigências sobre a mãe. Há uma demanda muito grande de sucesso e felicidade, o que só vem sendo intensificado pela redes sociais.

Fora que o pensamento de que ser mãe é o maior ato de existência na vida de uma mulher é muito difícil de ser quebrado, pois ainda está muito arraigado na sociedade. No entanto, Thaiz acredita que a mudança virá, mesmo que em doses homeopáticas.

Por que desconstruir?

A criação de expectativas, fruto da idealização da maternidade, coloca sobre a mulher enormes exigências que dificilmente são alcançadas — o que só gera grande frustração e culpa. Trazer à tona o debate sobre uma maternidade mais realista e abrangente só acarreta benefícios.

Aceitar que a maternidade é uma experiência plural e não uma verdade absoluta, que precisa ser seguida por todas as outras mães fez a experiência de Mariana Clara se tornar muito mais prazerosa. “Para me sentir tranquila com a maternidade que ofereço a ele e a mim mesma, tento enxergar o que está proposto para nós, qual é a minha realidade. Tenho que lidar com ela, não posso me iludir, não posso sonhar alto, fugir daquilo. Não posso me comparar com outros tipos de maternidade, sendo que a minha é totalmente diferente”, destaca.

Entender que as verdades são relativas e respeitá-las é função da sociedade para possibilitar a abertura desse diálogo, para falar como realmente é, que é difícil e, muitas vezes, desgastante, mas também um constante aprendizado. Para Penteado, é importante ter a liberdade de poder expressar todos os sentimentos em relação a situação que a mulher está vivendo sem ter que responder às enormes expectativas sociais. “ A conversa, o debate, o acolhimento e o não julgamento são necessários. Se falarmos mais, maior será o retorno e informação para nosso bem estar. Só temos a ganhar”, ressalta.

Mehoudar destaca, ainda, que se a mãe não idealiza que seu filho vai dormir 8 horas por noite desde o momento que ele nasceu, ela estará mais preparada. “Quanto mais nós falarmos sobre como a maternidade é, as próximas mães estarão muito mais preparadas e informadas. Vão aprender antes de passar pela situação, o que é muito melhor do que aprender na hora, no sufoco”, complementa Mariana.

No fim, o que realmente fará com que toda essa idealização acabe é aceitar e respeitar o fato de que cada mãe é única, com um filho único e, acima de tudo, com uma experiência única. Colocar a maternidade em um molde, que todas devem seguir, só limita essa experiência que, de uma forma ou de outra, é um momento único na vida das mulheres que escolhem vivenciá-la.

1 comentário em “O mito da Super Mãe”

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