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Restauração em 4K dá novo brilho a ‘A hora da estrela’, filme de Suzana Amaral

Ao revitalizar imagem e som originais de 1985, a exibição enriquece a experiência de assistir a uma das principais adaptações literárias do cinema brasileiro
Marcélia Cartaxo em A hora da estrela
Por: Lucca Pedrosa Bessa (lucca.bessa@usp.br) e Vito Santos (vvitofs@usp.br)

Feita pelo projeto Sessão Vitrine Petrobras, a restauração digital da obra de Suzana Amaral eleva o espetáculo da cópia antiga ao prazer sensorial de cores mais nítidas e imagens com maior qualidade visual. A cinematografia de Edgar Moura, com olhar tépido sobre os caminhos em que perambula Macabéa (Marcélia Cartaxo), reflete a mornidão na psique da personagem, escrita por Clarice Lispector em “A Hora da Estrela”.

Desde a primeira cena, quando se acompanha Macabéa comer um cachorro-quente; sujar a máquina; teclar como quem cata milho, e, em seguida, seu chefe, conferir a tudo isso o peso de uma descrição maldosa, se entende o arranjo geral do filme: uma menina destrambelhada, sufocada por personagens de presença histriônica. O chefe, as prostitutas com quem Macabéa vai dividir quarto, a cartomante (Fernanda Montenegro), e, principalmente, Glória (Tamara Taxman) e Olímpico (José Dumont) são atordoantes.

Glória, disposta a uma sensualidade absoluta por telefone, só se apaixona em silêncio, quando olha nos olhos do sócio de seu pai. [Imagem: Divulgação/Vitrine Filmes]

Somos convidados pela cineasta a ver a trajetória da mulher virgem, amante de cachorro-quente e coca-cola, como espiões da vida privada de uma anonimidade inquieta. A câmera simula aqui a narração onipresente da obra de Clarice. Como se fossemos nós os culpados pelo destino de Macabéa, como se pudéssemos impedir, mas insistíssemos em só observar, por curiosidade, o desenvolvimento da catástrofe anunciada, do desespero sem grito.

A mais importante vantagem do cinema sobre a literatura é, provavelmente, a possibilidade de narrar o silêncio. Mesmo a reprodução absoluta da imagem em movimento, revolução trazida pelo cinema que pariu as artes plásticas modernas, não passaria de refino técnico não fosse a possibilidade de correr o tempo em silêncio. A literatura já havia suprido a necessidade de perpetuar narrativas, e, à época dos irmãos Lumière, já havia explorado quase todo sentimento expresso. Porém, poder exprimir a passagem do tempo e do espaço sobre a imagem fez com que só o cinema pudesse capturar aquilo que se sente calado. Suzana Amaral estava certa disso ao adaptar “A Hora da Estrela”. 

Aliás, o nome escolhido para a colega e o namorado da protagonista não são frutos do acaso. Socialmente, não há qualquer diferença entre os três: Macabéa, Olímpico e Glória. Os dois últimos, porém, se comportam como quem quer convencer todos de sua altivez. Enquanto Olímpico encena discurso de deputado, Glória não se despendura do telefone (e muito menos dos homens do outro lado da linha). Quando o filme se encerra, fica a impressão de se ter assistido duas pessoas atuando; fingindo ser o que desejavam ter sido. São pessoas cuja identidade está soterrada até pelo próprio nome.

Marcélia Cartaxo e José Dumont vivem o casal de opostos Macabéa e Olímpico. [Imagem: Divulgação/Embrafilme]

Seria lógico atribuir a Clarice o mérito da dissonância que define e aprofunda as personagens. Mas Suzana dispôs da vantagem de poder mostrar essas pessoas, ao invés de narrá-las. Quando Olímpico sobe os degraus da escadaria do Ipiranga e discursa para uma multidão imaginária, desconfiamos da falsidade de tudo aquilo através dos seus olhos, de modo que aquela falação é escudo atrás do qual se esconde o que ele sente. Esconderijo este que a própria câmera não consegue alcançar. 

A narrativa verbal de “A hora da estrela”, não fosse a contraposição proposital com a imagem, poderia tornar convincente tudo que Olímpico diz. Suzana mostra que, seja lá o que Olímpico sinta, isso não pode ser dito; e mais grave: é completamente dissonante do que é falado. Não saberíamos nada de Olímpico não fosse a cena, ao final do filme, em que, sem trocar qualquer palavra, rejeitado por Glória, ele senta e sofre.

Acontece, logo, que Suzana, a todo momento, conduz a história como quem sabe que, no silêncio, surge aquilo que está soterrado. Macabéa, em silêncio, sorri; põe um vestido; solta o cabelo; olha com carinho uma flor; sente saudades; se envergonha; corre. Macabéa, em silêncio, lança um ar de delicadeza para sua própria imagem no espelho. Nada disso pode ser narrado. O cinema, porém, possibilita que seja visto. E vemos, então, que toda ternura está nos passos de quem se enrola em lençóis, e dança a calada solidão.

Os ângulos em que Marcélia Cartaxo se encaixa emolduram a personagem em quadros de inocência, vista sozinha contra si mesma em um espelho, ou em frente a pilhas de pastas com arquivos datilografados. Quando tenta recordar a música que ouviu no dia anterior na Rádio Relógio, a câmera dança ao redor de Macabéa como se embalada pela melodia cantarolada. 

De forma cálida, a trilha sonora, arranjada por Marcus Vinicius, nos lembra que, apesar de cômica, a existência de Macabéa é, sobretudo, melancólica. Em cenas, como a da travessia de um viaduto pela datilógrafa e seu namorado Olímpio, a trilha irrompe os momentos prévios de humor para demonstrar como a história desta mulher se trata de um sortilégio desafortunado. No entanto, o som por vezes se torna estridente e incomoda os ouvidos, algo em que a restauração pecou ao não conseguir salvar tão bem quanto a imagem.

Confira o trailer de “A hora da estrela”:

*Imagem da capa: Reprodução/ Vitrine Filmes

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