Por Carolina Ziemer (carolziemer@usp.br)
Com bandeiras de “Vai Timão” a “Somos Pela Democracia”, as torcidas organizadas expressam mais do que apoio ao time: revelam uma complexa união de identidade e engajamento político. Na América Latina, esses torcedores ultrapassam o papel de meros espectadores e configuram-se como um fenômeno social multifacetado, que mistura cultura, resistência e, ao mesmo tempo, episódios de violência.
A história das organizadas funciona como um panorama de compreensão das diversas faces da sociedade latino-americana. Com surgimento ao longo do século 20, elas acompanharam a expansão do futebol como fenômeno de massa, estreitamente vinculadas ao contexto social e político das grandes cidades emergentes no continente.
Do torcedor comum ao coletivo
No final do século 19, o futebol chegou à América Latina trazido por ingleses e elites locais. Ao longo do século 20, com a industrialização acelerada, houve um grande movimento de migração de pessoas do campo para as cidades em busca de oportunidades. Porém, em meios urbanos como São Paulo, Buenos Aires e Bogotá, por exemplo, esse êxodo rural resultou em profundas desigualdades sociais.
O futebol tornou-se forma de lazer acessível e espaço de pertencimento, principalmente para jovens das periferias, que afirmaram sua existência em um espaço social que normalmente os exclui. Com o tempo, o torcer ganhou força como identidade coletiva e os primeiros grupos de torcedores começaram a se organizar informalmente com cantos e bandeiras. A partir das décadas de 1950 e 1960, surgem torcidas organizadas mais estruturadas, com hierarquias, estatutos e até sedes.
A Argentina é considerada o berço das torcidas organizadas como as conhecemos hoje, especialmente com o surgimento das “barras bravas”. Grupos como a La Doce, do Boca Juniors, surgiram nos anos 1950 e passaram a exercer poder dentro e fora dos clubes. Essas torcidas se viam como defensoras da honra do seu time, adotavam uma postura mais politizada e influenciaram a criação de modelos semelhantes em outros países latino-americanos.

Até hoje, a torcida do Boca Juniors é considerada uma das mais populares, apaixonadas e barulhentas da América Latina [Imagem: Reprodução/Instagram/@bocajrs]
No Brasil, as torcidas organizadas surgiram com o objetivo de fortalecer o apoio ao clube, criar identidade entre os torcedores e combater o elitismo das diretorias. Nos anos 1940, já existiam alguns grupos, como o Grêmio São-Paulino (futura TUSP) e a Charanga Rubro-Negra, mas eles não apresentavam a estrutura de organizadas nos moldes atuais. Nos anos 1960, o formato se consolidou com a Torcida Jovem do Santos e a Gaviões da Fiel. Com o passar dos anos, assim como as “barras” argentinas, organizaram-se com sedes, hierarquias, uniformes e baterias.
Nos demais países da América Latina, as organizadas surgiram mais tardiamente. No Chile, torcidas como os Los de Abajo, da Universidad de Chile, com forte carga política, ganharam destaque nos anos 1980 e 1990 como resistência à ditadura de Augusto Pinochet. Na Colômbia, torcidas como a Barra del Sur, do Atlético Nacional, e os Comandos Azules, do Millonarios, se fortaleceram nos anos 1990, com estruturas hierárquicas, envolvimento em ações sociais e, por vezes, em episódios de violência.
Em toda a América Latina, as torcidas organizadas emergem como formas de resistência social, construção de identidade e atuação política. No entanto, também foram marcadas por disputas internas e rivalidades. Isso contribuiu para uma maior cultura de violência nessas organizações, frequentemente retratadas pela mídia de forma sensacionalista, de modo que seus papéis sociais e culturais são ignorados ou vistos como limitados.
Emoções à flor da pele
Para muitos jovens latino-americanos das periferias, as torcidas organizadas oferecem algo ausente em outras esferas da vida: acolhimento, identidade e voz. Ser parte de uma torcida significa integrar uma comunidade com rituais e pertencimento, onde a camisa do clube carrega histórias familiares, lembranças da infância e um ideal de resistência.
Esse amor ao clube, quando canalizado em ações sociais, culturais e de resistência, revela o potencial positivo das torcidas. Quando canalizado em ações sociais, culturais e de resistência, revela o potencial transformador das torcidas. Campanhas de doação, movimentos culturais e protestos por direitos mostram que essas organizações vão além do esporte.
Contudo, quando essa paixão encontra o outro extremo, pode chegar até a fatalidade, como os dois casos de violência entre torcidas paulistas estudados na iniciação científica de João Ryoki, graduando em Geografia na USP. Em entrevista ao Arquibancada, o pesquisador discorre sobre ambos: o primeiro data de 1995, após a vitória do Palmeiras na Copa São Paulo Júnior sobre o São Paulo, quando uma briga no Pacaembu deixou feridos e um jovem de 16 anos morto. O outro ocorreu em 1997, quando torcedores do Corinthians emboscaram a própria delegação após o time perder do Santos por 1 a 0 na Vila Belmiro para mostrar insatisfação com o quase rebaixamento, o que demonstra a ambiguidade dessa paixão.
A violência é uma face sombria das organizadas, que em clássicos como River Plate x Boca Juniors e Corinthians x Palmeiras, ultrapassa o amor incondicional e chega à brutalidade. Para Ryoki, isso está ligado a um forte senso de comunidade e a uma masculinidade afirmativa e violenta, que cria vínculos, mas também gera confrontos.
“Eu acho que a gente vive numa sociedade que é, por essência e por fundamento, uma sociedade violenta.”
João Ryoki
Isto é, segundo o estudante, desde o princípio do capitalismo, o processo aconteceu através da violência e isso foi naturalizado dentro do sistema. “A gente se choca com a violência de torcidas, porque é tida como não racional. Mas eu acho que a gente perde um pouco da dimensão dela, já que está inserida estruturalmente”, relatou Ryoki. Por isso, o papel das organizações nos conflitos está situado nesse campo de reflexão sobre a violência estrutural da sociedade e demonstração da dinâmica de massas que dá forças até ao indivíduo mais inofensivo quando está no coletivo.
Arquibancada como espaço de resistência
Torcidas organizadas se incluíram no debate político com as manifestações pró-democracia e contra o fascismo nos últimos anos. Em 2019, no Chile, torcedores de clubes rivais como Colo Colo e Universidad de Chile se uniram nas manifestações contra o governo de Sebastián Piñera, o que mostra a arquibancada também como espaço de resistência.
No Brasil, a Gaviões da Fiel, do Corinthians, tem se destacado nesse cenário ao participar de atos pró-democracia e desmobilizar protestos após as eleições de 2022 à favor do ex-presidente Jair Bolsonaro, que está inelegível até 2030, o que reafirma o compromisso histórico do clube com a democracia. Eles desmobilizaram bloqueios em vias de São Paulo promovidos por bolsonaristas em defesa do regime militar e retiraram cartazes que exigiam intervenção militar, além de substituí-los pela faixa “Somos Pela Democracia”.
Segundo Danilo Pássaro, candidato a vereador de São Paulo pelo PSOL em 2024 e membro da Gaviões, as torcidas organizadas são mais que espaços de paixão clubística, pois representam ambientes de solidariedade, auto afirmação e dignidade para pessoas marginalizadas. Nesse sentido, a politização do futebol se torna uma forma legítima de mobilização popular, em oposição à neutralidade conveniente defendida por clubes e federações.
“A política distante do futebol só serve aos interesses de quem quer o povo longe das decisões que determinam os rumos do país. Aproximar futebol e política é, portanto, uma estratégia de revolução.”
Daniela Pássaro
Para ele, a arquibancada é uma trincheira política e uma ferramenta de transformação social. Por isso, Danilo já está à frente da articulação da Gaviões da Fiel com torcidas de outros países da América do Sul, para uma campanha internacional contra o racismo no futebol, que será acompanhada de diversas ações concretas.
Já na Argentina, há uma influência dos agentes dos conflitos ideológicos no envolvimento das torcidas organizadas. Para Tulio Verona, trabalhador da indústria farmacêutica e membro da La Doce, a situação não é tão voluntária quanto a participação política da Gaviões, dado que recebem uma quantia para ir às manifestações.
“As ‘barras bravas’ não exercem tanta influência política ou social fora do estádio, e sim a política que usa as ‘barras bravas’ para ganhar votos e poder.”
Tulio Verona
Especificamente a La Doce e seu presidente Riquelme estão muito ligados ao peronismo popular da Argentina, que defende um regime de governo centralizado. De toda forma, Tulio argumenta que cada vez mais perde seu vínculo com a torcida do Boca Juniors, que fez parte de toda sua vida, por parte dela ser “muito corrupta, mafiosa, violenta” e, principalmente, por controlar todos os negócios ligados ao futebol.
As questões políticas, portanto, podem significar tanto a união de torcidas, o que transcende os estádios e influencia pautas sociais urgentes, como o racismo, o fascismo e a ditadura, quanto o desinteresse de indivíduos que dividem apenas a paixão pelo esporte em si. O engajamento político das torcidas organizadas revela que o futebol é um campo de disputa simbólica e social que luta por direitos, justiça e democracia.
“Ingresso caro, arquibancada vazia”
Recentemente os clubes de futebol do Brasil passaram a aderir a modernização dos estádios e a criação do programa de sócio-torcedor. Essas iniciativas foram influenciadas pela Copa do Mundo de 2014, sediada no território brasileiro. O processo de transformação das arenas foi incentivado pelo governo como parte da preparação para o grande evento esportivo, que exigia infraestrutura padronizada de acordo com os critérios da FIFA da época.
Além disso, órgãos como o Ministério Público e a Polícia Militar de São Paulo também promoveram mudanças ao apoiarem a implementação do sócio-torcedor, um programa que pode chegar a altas mensalidades e garante benefícios extras, acessos exclusivos, entre outras vantagens a seus membros. Para essas instituições governamentais, é lógico promover a existência desse modelo que privilegia o acesso ao futebol aos torcedores com maior poder aquisitivo, pois justificam a elitização das arquibancadas como solução para as brigas nos jogos, enquanto negligenciam suas verdadeiras causas: desigualdades econômicas e a cultura de violência. Eles argumentam que muitos dos conflitos entre torcidas organizadas são causados por falhas estruturais, como falta de controle do acesso dos fãs, ao invés de fatores sociais.
Como resultado dessa reformulação, observou-se um aumento expressivo no preço dos ingressos. De acordo com dados da Pluri Consultoria, o valor das entradas mais baratas para jogos de futebol subiu cerca de 300% na última década, enquanto a inflação do período foi de 90%. Esse processo resulta exatamente naquilo que as organizadas lutam contra: um futebol pouco participativo, em que as cadeiras são numeradas e os ingressos são caros, o que sugere um paradoxo para times. “Politicamente falando, é uma relação complicada, porque mesmo os clubes estando mais próximos do Estado do que das torcidas, eles também dependem do engajamento delas para fazer a roda do futebol girar”, compartilhou Ryoki.
Com essa modernização, as torcidas organizadas tornam-se cada vez mais elitizadas e perdem o sentido de sua origem na América Latina, quando buscavam um lazer acessível que gerava o sentimento de pertencimento dos socialmente marginalizados. Portanto, a participação política e a defesa da diversidade socioeconômica nos estádios é necessária para uma experiência cada vez mais democrática no futebol, de modo a retornar a verdadeira essência das torcidas organizadas às arquibancadas.
