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Já pensou se pudéssemos nos desmaterializar?

Por: Daniel Miyazato (danielmiyazato@gmail.com)   Aos poucos, o nevoeiro desvanecia-se e o ambiente começava a tomar forma. André, como de hábito, arrependeu-se de acordar. Num quarto minúsculo, de um prédio de 150 andares, de uma cidade de 73 milhões de seres humanos, o rapaz lutava contra um sentimento nauseante, velho conhecido que lhe acometia de …

Já pensou se pudéssemos nos desmaterializar? Leia mais »

Por: Daniel Miyazato (danielmiyazato@gmail.com)

 

Daniel Miyazato/ Comunicação Visual – Jornalismo Júnior
Daniel Miyazato/ Comunicação Visual – Jornalismo Júnior

Aos poucos, o nevoeiro desvanecia-se e o ambiente começava a tomar forma. André, como de hábito, arrependeu-se de acordar. Num quarto minúsculo, de um prédio de 150 andares, de uma cidade de 73 milhões de seres humanos, o rapaz lutava contra um sentimento nauseante, velho conhecido que lhe acometia de despertar em despertar. Por longuíssimos minutos sentiu-se deslocado, fora da realidade.

Passado este ritual, quase diário, era hora de começar o dia, “ok, Home”, “boa tarde, senhor André”.

Instantaneamente, objetos surgiram no quarto. Telas interativas, um quebra-cabeças tridimensional por finalizar e arquivos de trabalho. Um holograma de repórter apresentava o noticiário matinal. “Neo-tanger atinge temperatura recorde, com termômetros marcando 83°C fora da estufa. Onda de calor, afirmam especialistas, promete ser mais intensa e duradoura que a do verão de 2156”.

Sobre o criado-mudo havia um porta-retratos, uma peça de decoração vintage. Na foto, via-se um homem de cabelos escuros, rosto arredondado, sorrindo inclusive com os olhos. Abraçada a ele, está uma mulher de traços retos, alegremente cercada por um casal de crianças.

André ficara perscrutando a imagem. Tocou a ponta dos dedos ao redor dos olhos e percebeu leves rugas que não existiam no momento da fotografia. O som da chuva batendo no vidro da janela o tirou daquela digressão. Apesar de toda a cidade estar envolvida por uma redoma que a protegia das intempéries extremas, por uma nostalgia de tempos nem vividos, vez ou outra, fazia-se chover artificialmente.

Aproximou-se da janela. As gotas escorriam. Escolheu uma delas e começou a observar sua trajetória. Incessantemente, caindo, esbarrando em outras gotas e por fim se perdendo em meio às semelhantes. “Será que eu devo me juntar a eles?”.

O céu, a cada 15 minutos, era invadido por uma profusão de anúncios publicitários. Destes, apenas um chamou a atenção de André. “Supere a mortalidade. O programa de transmutação neural ‘Suefrom’ (TNS) de liberta de um corpo ultrapassado”.

À despeito das tentativas de dissuadi-los, a família de André há cinco anos resolvera passar por uma TNS. Sua esposa, Alice, nunca estivera tão resoluta. Foi com os filhos até a clínica mais próxima e realizou os procedimentos. É relativamente rápido, em cerca de quatro horas o cliente é entrevistado, cadastrado e conduzido a um coma. Neste período, é feita a digitalização de consciência, a qual segue para a nuvem. O Corpo é depois cremado.

No início do século XXI, tal como o tacape estendeu o braço humano, os chamados smartphones, em conjunto com a internet, iniciaram a expansão da mente. O futuro do passado imaginou uma humanidade fundida às máquinas fisicamente, mas os primeiros cyborgs foram formados por um vínculo psicológico entre pessoas e aparelhos móveis. Não demorou para que a tecnologia fosse introduzida em peças de vestuário: relógios, óculos e roupas se tornaram “inteligentes”. Os sistemas de identificação governamentais passaram a contar com chips hipodérmicos. No início do século XXII, implantes no cérebro projetavam no ambiente objetos virtuais, como alguns dos que preenchem o quarto (ou a mente?) de André.

Na década de 2120, surge a TNS e o debate ético a respeito fora muito acalorado. No entanto, frente as catástrofes ambientais progressivamente mais agressivas, o ressentimento da humanidade em relação ao planeta foi aumentando. A crise de alimentos causou a crise econômica que, por sua vez, trouxe a crise política. A realidade já não aprazia tanto.

Uma angústia crescente se apoderou de André. Tentava com toda avidez se convencer de ir ao encontro de sua família. Mas uma ideia o impedia, lhe arrastava contra a própria vontade, com unhas e dentes. “Não é real!”.

“Mas o que é a realidade?! É o frio que sinto? As cores que vejo? O gosto amargo desse café? Tudo isso eu posso ter sem este corpo. E ainda poderei viver e amar eternamente! Eles estão me esperando”.

Uma tontura surgiu e começou a devorar sua razão com voracidade. A visão lhe foi estreitada por uma moldura escura. Viu a esposa e os filhos, tentou abraçá-los, tocá-los, mas foi em vão.

Nos dez segundos seguintes (os mais longos já vividos) testemunhou a deterioração do próprio corpo e em seguida das paredes do quarto. Não havia mais prédio, nem cidade, só ruínas. De súbito, abriu os olhos. Um raio de sol lhe espetava a face. Sentou-se na beirada da cama e perguntou as horas, “15 horas e 47 minutos, senhor André”.

Levantou-se, vestiu um casaco, olhou uma última vez para o porta-retratos e saiu apressado. A clínica fechava às 16:30.

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