Por Gustavo Drullis (gudrullis@gmail.com)
Onde há pessoas o suficiente, lá estão eles. Comerciantes ambulantes nunca perdem a oportunidade de conseguir vender seu peixe. Ocupando calçadas em ruas movimentadas, saídas de metrô, terminais de ônibus ou até mesmo a própria rua entre pequenos intervalos de faróis vermelhos, eles ganham a vida onde poucos se sentem confortáveis, oscilando entre conversas com a fiel clientela, momentos de silêncio quase reflexivos do frio da noite, corridas do famoso rapa e, é claro, vendas. Eles não oferecem pouca coisa e a cada dia mais produtos ganham as ruas: carregador, fone, capinha, película, filme, espetinho, tapioca, milho, bolo, salgado, refrigerante, mel, saia, touca, camiseta, cinto, bolsa, pulseira, colar, quadro, enfim — muita coisa. Por trás de cada produto desse existe sempre uma pessoa responsável pela venda. E, por trás de cada venda, existe um ser humano com uma história diferente.
Entre divagações filosóficas sobre arte, sociedade e cultura, Rodolfo, de 24 anos, calmamente confecciona um colar com uma pedra perfeitamente circular envolta em um fio dourado. Longe de onde realmente fica exposto o seu artesanato, seus olhos não despregam de suas habilidosas mãos, enquanto um tom de serenidade domina sua fala. Quando perguntado da razão de ter começado a vender arte na rua, Rodolfo, rápido em sua resposta, afirma que é porque “ o mundo não dá condição certa pra gente viver”.
Apesar de ter cursado informática — na área montagem e manutenção de hardware — e estudado inglês, no momento crucial de decisão sobre seu futuro, aos 15 anos, decidiu sair de casa e vender artesanato na rua, algo que tinha aprendido já criança aos 8 anos, juntamente com a habilidade de vender. Sua mãe não aceitou, mas mesmo assim Rodolfo continuou. Tendo viajado por diversos estados do Brasil, como Mato Grosso, Tocantins, Brasília, Paraíba, Bahia, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, entre outros, ele tem convicções bem sólidas sobre muitos assuntos. Fala de obsolescência programada, distância da lei à sua real aplicação no Brasil, porém, suas reflexões sobre arte e cultura é que se sobrassaem: “No artesanato, eu ganho outros tipos de cultura, conheço pessoas, aprendo linguagens — e isso é a parte mais rica do que eu vejo na rua”. Reafirma, ainda, a sua autonomia na escolha pela venda do artesanato, enfatizando que está na rua porque esta é sua vontade, por achar digno fazer as coisas pelas próprias mãos e “conseguir divulgar uma cultura, uma sabedoria”. Para ele, o mundo deveria ser mais justo, as pessoas deveriam se preocupar mais umas com as outras, procurar viver de forma mais harmoniosa. Por exemplo, sabendo da vulnerabilidade de um pedestre, não seriam necessários faróis, pois os motoristas de automóveis poderiam ter consciência disso e, por que não, parar para que eles pudessem atravessar. Sua consciência, entretanto, vai muito além disso: “Procuro o artesanato pra ter uma coisas que ninguém procura, uma elevação do meu espírito, de ser uma pessoa melhor, fazer aquilo que foi deixado pra gente”. Indagado sobre o que seria arte para ele, Rodolfo replica que “arte é tudo” — tudo que sai das mãos do ser humano, desde um sapato até uma roupa, passando por música, educação e medicina. Trocaria o artesanato e a cultura por outra coisa? Rodolfo, que sabe tocar a maioria dos instrumentos que lhe apresentam, como saxofone, gaita, flauta, oboé, violão, guitarra e bateria, só trocaria o artesanato e a cultura por artesanato e cultura.
Paulistano nato, Carlos, de 29 anos, tinha um emprego estável na gráfica de uma famosa editora de livros e revistas e se vangloriava de ser um funcionário exemplar. Entretanto, segundo ele, desandou na vida, conheceu algumas coisas que preferiu não mencionar, começou a faltar no trabalho e chegar atrasado, até que o mandaram embora. Perdeu o emprego, perdeu tudo. Foi morador de rua durante um ano e seis meses, viveu e viu de tudo. Um dia, tendo conseguido acumular 20 reais, teve uma ideia, decidiu mudar de vida. Comprou um isopor e dois fardos de água. Assim seu negócio cresceu. Hoje em dia evangélico fervoroso, vive uma vida razoavelmente boa, vendendo água, refrigerante e salgadinhos variados, com segurança de que conseguirá pagar as contas no fim do mês. Depois de muita conversa, revelou que consegue faturar cerca de 3.000 reais por mês, bem mais do que ganhava na gráfica. Disse já ter trabalhado em diversas profissões, como jardineiro e cozinheiro, mas um de seus maiores sonhos mesmo era poder ser cozinheiro. Não só isso — queria cozinhar o que quisesse, do seu jeito.
Como Rodolfo, Carlos não se contenta com as limitadas perguntas sobre o comércio de rua e divaga sobre a sociedade e outras coisas. Também ele — humildemente — reclama de como as pessoas julgam os outros pela aparência. Muitas vezes, de acordo com ele, uma pessoa sem diploma pode fazer um trabalho muito melhor do que uma pessoa com diploma. Sua rotina não é das mais puxadas, porém, ainda assim exige bastante determinação. Sai de casa ao meio-dia e chega em seu ponto de vendas, o mesmo desde 2012, cerca de duas horas da tarde, e volta às nove da noite. Apesar da fiel clientela — “se eu falto, no dia seguinte eles vêm me perguntar o que é que aconteceu” -, Carlos afirma que prefere não misturar as coisas, pois “trabalho é trabalho e ideologia é ideologia”. Apesar de ser evangélico, não discute religião com seus clientes, porque conversa “com as pessoas dentro da ética, da educação e do respeito”. De traje social completo — camisa, calça e sapato — faz para quase todos um charminho, dá algumas balas de brinde. Ressalta que, para vender, não se trata de trazer a mercadoria, mas saber ganhar o cliente. Seu salgadinho mais barato custa 2,50 reais, porém, se o cliente aparecer com apenas dois, fala ele, não deixa ele ou ela ir embora de mãos vazias. Não hesita também em mostrar as notas fiscais que guardava de todas as mercadorias que comprava, para ilustrar que, como qualquer trabalhador, faz seu comércio de forma honesta. Vale a pena? “Eu vou ser sincero com você, vale a pena. Porque eu olho hoje em mim tudo que eu já conquistei trabalhando na rua, o que eu não conquistei dentro de uma empresa”.
Os erres puxados de Ailton, com seus 28 anos de idade, e o chapéu na cabeça denunciavam sua origem interiorana, mais exatamente de Botucatu. Lá, sua família tem um sítio para o qual volta todo sábado, retornando à capital paulista somente na terça-feira. Passa o dia inteiro vendendo mel, a especialidade de uma parte de sua família de apicultores, nos lugares mais movimentados da cidade. Veio para São Paulo após perder seu emprego como criador de gado. Para o futuro, pensa em colher o fruto de alguns pés de café que plantou no passado. Já Mayara, tímida baiana de 23 anos, vende bolo e salgado durante a manhã. Trabalhou durante dois anos e meio com um parante, mas há cinco meses toca o negócio sozinha. Acorda às 2 horas da manhã, chega às 4h30 no terminal de ônibus e sai de lá às 9h30. O resto do dia prepara as comidas para a manhã seguinte. Reiziane, tímida também, de 19 anos, faz tapioca, mas o carrinho não é dela, trabalha para outra pessoa. Já domina o jeito de fazer uma tapioca quentinha e saborosa, pois está há algum tempo no negócio.
Perguntados sobre o maior empecilho para o comércio nas ruas, a resposta é unânime: a polícia. No Brasil, grande parte dos vendedores ambulantes, ou camelôs, como popularmente são conhecidos, não são regularizados na prefeitura. Por isso, a Polícia Militar é convocada constantemente para intimidar de forma ostensiva os vendedores, e, muitas vezes, apreender suas mercadorias. Carlos alega que, ao tentar adquirir alvará para poder exercer sua atividade de forma legal, esbarra sempre na burocracia estatal — já teve suas mercadorias apreendidas duas vezes. Rodolfo, por exemplo, reitera que a polícia quer sempre colocar eles em um lugar onde não passa ninguém, frisando a regra de que não é permitido expor a menos de 100 metros de uma estação de trem ou metrô. Conhece bem os trâmites da lei, informa que o artesão pode expor seu artesanato; no entanto, não pode comercializá-lo fixando preços, atributo designado para o bom senso dos compradores. Entretanto, ressalva: “Não é a vontade do fiscal, é o trabalho dele; se ele pudesse me deixar aqui, ele ia me deixar aqui, porque ele tá vendo que eu tô trabalhando”. Parte dessa implicação se dá pela intensificação da política de combate aos camelôs irregulares empreendida pela prefeitura da cidade de São Paulo, comandada pelo prefeito Fernando Haddad, do PT (Partido dos Trabalhadores). Em abril de 2014, o prefeito prorrogou por mais dois anos um convênio que já vinha sendo feito com a Polícia Militar do Estado de São Paulo desde a gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab, do PSD (Partido Social Democrático), no valor de 148,9 milhões de reais, para dar continuidade ao Programa de Combate ao Comércio Irregular. Desde então, os comerciantes não têm paz. Mas não param de se multiplicar.
Outro ponto que muitos vendedores e vendedoras ambulantes ressaltaram foi de que gostam da autonomia de que gozam, sem ter que trabalhar para ninguém. Carlos menciona que ninguém lhe dá ordens — “eu mesmo sou o empregado, eu mesmo sou o patrão; vou e venho a hora que quero”. Critica o ambiente competitivo, e muitas vezes repleto de pessoas hipócritas, de trabalho em empresas, no qual, segundo ele, uns estão sempre querendo passar por cima dos outros, buscando vantagens em detrimento do fracasso de terceiros — “dentro de empresa”, diz ele, “é muita falsidade”. Além disso, afirma que nas ruas ele não precisa alcançar metas estabelecidas por superiores nem cumprir horários, e, portanto, não sente tanta pressão quanto sentia quando era empregado. Na rua, explica Carlos, não existe tanta competição, dado que os próprios vendedores fazem acordos entre eles e o preço acaba ficando igual para todos. Já para Rodolfo, “o trabalho [para outra pessoa] em si mesmo só te escraviza”. Na sua concepção, quando isso acontece, “esse alguém tá ganhando em cima de você”. Sente-se realizado quando o trabalho sai das suas mão e para ela volta. Para Ailton, a autonomia é uma das melhores vantagens do comércio na rua justamente porque “a gente trabalha o dia que quer”.