Por: Daniel Miyazato (danielmiyazato@gmail.com)
Afonso arregalou os olhos quando o guarda gritou, “fila única! Andem depressa!”.
Naquela noite gelada, o garoto sentia o estômago vazio de estrelas e via o céu sem comida. A mãe, Ester, apertava-lhe a mão com toda força que a dor do frio permitia. A última ração que receberam fora na manhã do dia anterior.
À direita dos dois, jazia uma fileira de homens vestidos com capacetes e coletes pretos. Pareciam um único ser que ruminava um bafo quente em seus ouvidos, sentindo o cheiro do medo. As grades, que os separavam dos guardas e a multidão ao redor criavam uma forte sensação de claustrofobia. Aquele era o campo de triagem de imigrantes “TAC042”, uma dos maiores da América e da Terra, destino de milhões de pessoas vindas de cantos remotos da galáxia.
Quando a humanidade alcançou o nível tecnológico suficiente para colonizar outros planetas, foram poucos os que conseguiram lançar análises descontaminadas de ilusões de paz e cooperativismo. Parecia mesmo que tecnologia era um sintoma de civilidade, hoje chamam isso de neo-positivismo.
Nas primeiras três décadas, houve grandes disputas diplomáticas para dividir os territórios extraterrestres entre as nações mais ricas. No eterno retorno, o Congresso de Berlim, desta vez foi em Johannesburgo, liderados pelos Estados Unidos e pela União Europeia – sorte que nos planetas colonizados não havia civilizações.
Neste mesmo período, conglomerados empresariais começaram a se instalar nos Novíssimos Mundos. Juntamente, ondas migratórias imensas começaram a se mobilizar, cheias de sonhos, com o ímpeto próprio de um renascimento.
Não demorou muito, no entanto, para que conflitos surgissem. Em meio a ganância por minérios e outros recursos naturais, ao longo de décadas o bem-estar social fora negligenciado, o fundamentalismo religioso cresceu de forma compulsiva. Eclodiram guerras e estas não terminaram, a única certeza que as pessoas podiam ter era que a paz nunca chegaria, mas ainda costuma-se dizer que a esperança não morre.
Um contra-movimento migratório, então, cresceu. Mas os dirigentes terrestres, embebidos por ideologias planetaristas não aceitavam a entrada de gerações nascidas em solo extraterrestre. Diziam que não havia empregos suficientes, recursos suficientes, mas a verdade é que não existia humanidade o suficiente.
Ester e Afonso tinham esperanças de conseguir passar pela alfândega, viverem em uma grande metrópole de uma país que, ouviram falar, se chamava Chile. Durante o salto espacial, porém, logo perceberam que teriam sorte se não tivessem a nave abatida e acabassem sufocados na frieza do espaço.
Tratados como animais, não sabiam qual seria o próximo passo da jornada.
“Mãe, acorda! Estão distribuindo água”, falou o mais alto que podia, quando puxou sem força a calça de Ester. Sonolenta, abriu os olhos com dificuldade, como se tivesse as pálpebras coladas. “Ah! Finalmente!”, disse, tentando esboçar um sorriso. A mulher, com seus 40 anos, não queria parecer tão esgotada para o filho.
No dia seguinte, a multidão de migrantes foi conduzida para outro setor do campo. Apesar de não querer nem pensar nisso, Ester sabia que seriam deportados, o que significava voltar a dormir todas as noites ao som de explosões e tiros.
No meio do caminho, mãe e filho começaram a ouvir um burburinho na multidão. Algumas pessoas começaram a trocar olhares de medo, outras de cumplicidade. Os guardas gritaram palavras de ordem, empunharam suas armas.
Finalmente, uma pedra cortou o céu cinza. Afonso a viu girando, implacável até seu destino, a viseira de um soldado. Esta quebrou e sangue espirrou no chão.
“Mãe! Eles sangram!?”. Depois da pergunta, Ester não conseguiu mais distinguir os ruídos. Abraçou o filho até não sentir mais nada.