Com a Copa chegando, país do futebol enfrenta o problema, mas medidas ainda não são tão eficazes
Por Isabella Bono (blagbono@gmail.com)
Não apenas o Brasil, mas todos os países sofrem com a violência. O futebol reflete esse quadro, mas com o esporte mais popular do mundo as consequências podem ser e, principalmente parecer, muito maiores que em outras áreas. E mediante as inúmeras tentativas de resolver esse problema fica a pergunta: É possível diminuir a violência que atinge o esporte mais popular do planeta?
Aprendendo com os erros
Alguns países europeus que caminham em direção a um esporte seguro podem servir de exemplo para o Brasil. A Inglaterra é a nação que mais tem a ensinar. Na década de 1980, o futebol no país havia sido tomado pelo Hooliganismo e os enfrentamentos entre torcidas eram constantes, assim como a invasão de campo pelos ocupantes das arquibancadas que também atiravam objetos no gramado. Diante dessa situação, cresceram nos superlotados estádios ingleses as grades que separavam o campo das arquibancadas.
Esse panorama só foi mudado depois de 1989, quando aconteceu o “Desastre de Hillborough”. Nessa ocasião, Liverpool e Nottingham Forest se enfrentaram pela semifinal da FA Cup, no estádio de Hillsborough, casa do Sheffield Wednesday F.C.. A quantidade de torcedores acima da que o estádio poderia suportar e a má atuação dos policiais acabou levando os torcedores contra o muro de contenção, que, por fim, foi quebrado devido à pressão vinda da multidão. Nesse episódio 96 pessoas morreram, várias delas foram asfixiadas devido a compressão, e mais de 700 ficaram feridas.
A partir de então, várias mudanças foram implantadas, tornando a Premier League, primeira divisão Inglesa, um exemplo mundial. Atualmente, todos os lugares nos estádios possuem cadeiras. Vender um número de ingressos correspondente ao de assentos permite o controle da quantidade de pessoas que entram no estádio. As arenas são seguras, e não existem mais barreiras entre as arquibancadas e o campo. A alta qualidade dos locais não pode, por si só, ser considerada a causa da mudança no comportamento dos torcedores, mas há uma relação entre ambiente físico e comportamento, pelo que eles significam no contexto específico.
Condições de acolhimento das torcidas
Tipicamente, quando as condições indicam acolhimento, aceitação e respeito, elas levam a um padrão de comportamento menos agressivo, pois as pessoas não se sentem agredidas. Além disso, existem mecanismos de punição e prisão para aqueles que se envolvem em atos de violência ou vandalismo. Segundo o jornalista esportivo Mauro César Pereira da ESPN Brasil, é nesse ponto que nosso país se encontra atrasado. O jornalista afirma que “não há motivos para esse modelo não dar certo no Brasil, basta vontade e interesse das autoridades. Se eu vou ao estádio e brigo com alguém, o que acontece comigo? Eu vou à delegacia e depois sou solto. Se eu fico preso, respondo a processo, e eu sou punido severamente, certamente vou pensar muito antes. Isso acontece em qualquer lugar do mundo, as pessoas agem em função da possibilidade de serem punidas”. Mauro César afirma que, mesmo que a burocracia brasileira possa tornar o processo mais lento, isso não impede que ele seja aplicado no país.
Medidas educacionais também apontam um caminho para a solução desse problema, uma vez que a conscientização é importante para que os torcedores tenham plena noção da gravidade de seus atos. Mas Mauro César afirma que, apesar de o investimento na educação da população ser importante, não só para o futebol, mas para toda a sociedade, esta medida não pode ser apontada como uma solução imediata, pois muitos torcedores que já saem de suas casas com a intenção de se envolver em tumultos não irão mudar seu comportamento por causa dessas instruções.
No ambiente das torcidas organizadas também existe uma busca pela melhora no futebol. Para André Guerra, presidente da Mancha Verde, torcida organizada do Palmeiras, o trabalho social seria o maior meio de transformação. “Acho que uma solução seria investimento na educação, na saúde… Porque infelizmente nós vivemos em uma sociedade violenta, e a torcida faz parte dela”. Sobre a comparação com o futebol europeu André completa: “A realidade da Europa é outra. Se vamos trazer a forma como é o futebol da Europa para o Brasil, vamos trazer a educação, a saúde pública e a segurança também. O modelo do futebol sozinho dificilmente será implantado aqui.”
Do ponto de vista psicológico
Gustavo Massola, psicólogo e professor da Universidade de São Paulo, explica que a educação da maneira formal não seria uma solução para o problema, como também não seriam as punições: “Uma educação que operasse em conjunto com outras instituições para aumentar o teor de participação democrática no tecido social poderia contribuir para isso ao permitir que se criassem canais para a expressão identitária não violenta. Só quando as pessoas podem reconhecer a si mesmas e às suas aspirações no contexto em que se encontram, ou quando entendem que este contexto é de fato permeável às suas iniciativas, é que pode haver a expressão não violenta dos conflitos.” Para ele é mais fácil explicar as punições pelas sociedades, que as sociedades pelas punições, já que elas não são processos isolados que independem de seu contexto. E se não considerarmos o papel histórico do futebol, acabamos em uma discussão sobre uma atividade econômica, que é muito diferente no Brasil e na Europa, o que repercute na análise do problema. No Brasil, o lucro, em geral, é advindo da venda de jogadores para a Europa e Ásia, já que o mercado nacional não consegue fazer frente ao estrangeiro. Os clubes também tem boa parte de sua renda proveniente da venda dos direitos comerciais de seus jogos para a televisão e apenas uma pequena parte vem das bilheterias dos estádios. Assim, o interesse em manter os estádios em boas condições é menor. Segundo Massola essas condições e o tratamento destinado aos torcedores refletem a visão do poder público com relação a essas pessoas. “A violência contra os torcedores já é bastante antiga. Penso que o uso dos cassetetes e das bombas não mudaria absolutamente nada neste quadro. Processar os torcedores que cometem delitos ou crimes nos estádios já é algo que poderia ser feito, pois a maior parte das condutas que mereceriam atenção está tipificada no Código Penal”, completa o psicólogo.
Mas a tenente Natália Giovanini, do 2° batalhão de choque, responsável pela segurança de vários estádios da cidade de São Paulo afirma que existem situações que podem levar a uma maior preocupação com a segurança do estádio, como, por exemplo, a tabela do campeonato. A chance de ocorrência de conflitos aumenta para os times que não estão bem colocados e até mesmo as condições climáticas podem levar a maiores aglomerações nos estádios. Em dias ensolarados, o número de torcedores no estádio cresce, aumentando também os cuidados tomados pela polícia.
O uso da internet pelas torcidas
Sobre as brigas entre torcidas marcadas pelas redes sociais, André afirma que pela internet é possível anunciar acontecimentos que, na verdade, não foram premeditados, pois na maioria das vezes os lugares em que esses embates são marcados já seriam naturalmente locais em que as torcidas se encontrariam por serem rotas para os estádios. Mesmo assim Natalia explica que todos os batalhões da polícia militar tem uma sessão que vasculha a internet buscando possíveis ameaças, mesmo que não relacionadas ao futebol.
Vem daí o maior argumento contra a política de torcida única nos estádios. Essa prática, que para muitos surgiu como solução para os enfrentamentos entre torcida, impede somente que os embates aconteçam nos arredores do campo e não que não possam ocorrer em outros lugares.
Longe da mídia e também do policiamento, as brigas podem até mesmo ocorrer com maior facilidade. Para Mauro César, “o problema não está só no estádio, mas sim em seus caminhos. Nada impede que os torcedores saiam de casa e encontrem na rota vários torcedores do time rival”. “Se você for à periferia em qualquer clássico, as pessoas vão estar nos bares onde também acontecerão vários desentendimentos, mas ninguém vê isso. O que acontece é que a visibilidade no campo é maior”, completa André. Uma medida simples aplicada no Reino Unido para evitar enfrentamentos entre torcedores alcoolizados nas mais diversas localidades é marcar os clássicos no período da manhã. Os britânicos acreditam que assim conseguem reduzir o espaço de tempo que as pessoas teriam para consumir bebidas alcoólicas antes das partidas, fato que aumentaria as chances de atos violentos acontecerem.
Em busca de soluções para o problema
Geralmente, as torcidas organizadas são o foco de políticas contra a violência nos estádios de futebol. Apesar de afirmar que hoje a maioria das pessoas envolvidas nessas entidades deseja demonstrar seu amor pelo clube, André reconhece que no passado as torcidas incitavam a violência. “As torcidas tem culpa pelo preconceito. Mas depois de 1995, a gente viu que perder nossa entidade é um peso muito grande porque muitas pessoas já se dedicaram a ela. Hoje o nosso intuito é estar junto do nosso clube e fiscalizá-lo”. Em 1995, na final da Super Copa de Futebol Júnior entre Palmeiras e São Paulo no Pacaembu houve uma briga entre torcidas que deixou 101 pessoas feridas. Nessa ocasião, um torcedor são-paulino foi morto por palmeirenses.
Nesse mesmo ano foi decretado o fim das torcidas organizadas, como uma maneira de promover a segurança nos estádios de futebol. No entanto essa medida não foi efetiva. “Aqui em São Paulo elas foram proibidas e continuaram existindo, sem nada que as identificasse, com uma vantagem: elas ficavam anônimas. Achar que uma determinação vai acabar com a reunião de pessoas é uma ingenuidade”, explica Mauro César. Hoje, as torcidas voltaram à atividade.
A tentativa de abolir as organizações não soluciona o problema. Em parte, a mudança de comportamento dos indivíduos em grandes grupos se deve à percepção que em meio à massa é possível escapar as punições. Mas não é possível separar um individuo do grupo a que pertence, pois não existem seres humanos que não pertençam a um ou a diversos grupos ao longo da vida. “Em grande medida, são os grupos aos quais pertencemos que nos permitem ter ‘consciência’ individual. Dizer que as pessoas perdem a consciência quando se encontram em grandes grupos é uma simplificação. As massas humanas podem ao mesmo tempo dar origem a episódios brutais de barbárie e a criações culturais verdadeiramente sublimes. Os grandes grupos considerados aqui estão relacionados tanto aos tumultos observados recentemente em Londres quanto à derrubada dos regimes ditatoriais no Oriente Médio”, explica Massola.
Outra tentativa de solucionar o problema da violência foi o cadastramento dos torcedores pertencentes às organizadas. Sua eficiência, no entanto, é questionada, já que essa medida não considera a possibilidade de as pessoas acompanharem as torcidas organizadas em viagens e jogos, sem no entanto se afiliar a elas. Além disso, o sistema de cadastramento não tem se mostrado eficiente, como comenta André Guerra. “O sistema de cadastramento já existia em São Paulo mesmo antes do estatuto do torcedor. Os promotores e delegados alegavam que iam punir os responsáveis pela violência. E as torcidas começaram a fazer campanhas para que os torcedores se cadastrassem. Foi criado um espaço destinado só para as torcidas organizadas, só que o espaço era pequeno e era de segunda à sexta, em horário comercial. Hoje é ainda pior, porque a Federação [Paulista de Futebol] marca só um dia no mês para atender a sua torcida. Só que toda vez que tinha um ato de violência a torcida era penalizada e não a pessoa. Então aqui em São Paulo a gente já entende que esse cadastramento não vai funcionar”, explica.
Desde 2006, comentam André e Natália, antes de qualquer partida em São Paulo, existe uma reunião entre batalhão de choque, as torcidas dos times que se enfrentarão, a federação paulista, o ministério público, a policia, a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), os dirigentes dos times e a SPTrans (órgão que regulamenta o transporte público da cidade). Durante o encontro, não só a questão da violência é discutida, mas também estrutura do jogo, locomoção dos torcedores, as vias de acesso para cada torcida, a capacidade do estádio e todos os aspectos que envolvem a partida. Esse diálogo tem se mostrado a medida mais eficaz implantada até agora no Brasil na busca por um esporte seguro. Resta saber se essa prática é aplicável também para grandes eventos. O Brasil sediará, em 2014, a Copa do Mundo e ainda não foi decidido se a segurança será feita pela polícia militar ou por instituições privadas. Com tantas rivalidades históricas no futebol, será um grande desafio receber o maior espetáculo desse esporte no mundo sem colocar em risco o bem-estar dos torcedores.
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