Há um ano, em 25 de novembro de 2020, milhares de torcedores argentinos saíram às ruas para o velório de Diego Maradona, um dos maiores ícones do futebol mundial. O jogador deixou oito filhos e uma legião de fãs em todo o planeta, apaixonados pela personalidade controversa de um dos maiores talentos da história do esporte. Conheça a trajetória de Dieguito, como o atleta foi chamado, detentor de 345 gols em 680 jogos.
O início
Diego Armando Maradona Franco nasceu na cidade de Lanús, na província de Buenos Aires, Argentina, em 30 de outubro de 1960. Vivenciou uma infância muito pobre e o contato com o futebol foi precoce. Aos 9 anos, participou de uma peneira para ingressar nas categorias de base do Argentinos Juniors, clube referência nas categorias de base, também da cidade de Buenos Aires.
Em 20 de outubro de 1976, começou a jogar profissionalmente pelo Argentinos Juniors e transformou o clube ao colocá-lo na disputa com grandes equipes do futebol nacional.
Ao longo de sua carreira, Maradona vestiu sete camisas diferentes: Argentinos Juniors, Boca Juniors, Barcelona, Napoli, Sevilla, Newell’s Old Boys e, ainda, da seleção argentina.
Carlos Stroker, jornalista esportivo argentino, conheceu Maradona e destaca sua performance. “O que fazia Maradona quando criança ainda, quando tinha 12, 13 anos, na metade do jogo, no intervalo para ir ao vestiário, ele dava um show para o público com a bola. Ele começou como jogador infantil assim, eles chamavam los cebollitas (os cebolinhas). O povo começou a conhecer quando ele parava no meio do jogo, que jogava com pessoas maiores e profissionais, e fazia coisas com a bola mesmo, não a deixava cair. Já com 15 anos, muito se falava sobre o talento e a capacidade de Maradona”.
Em 1977, o jovem atleta foi convocado para jogar na seleção argentina. Desde então, Dieguito ganhou destaque com suas habilidades no futebol e foi eternizado um dos maiores nomes da história do esporte.
Principais conquistas
Em 1979, Maradona sagrou-se campeão do Mundial Sub-20, realizado em Tóquio, e foi eleito o melhor jogador do torneio. Era o início de sua trajetória profissional repleta de conquistas. “Quando ele começa na seleção, a Argentina vinha de um processo, lá no começo de 70, difícil. Ninguém queria jogar na seleção. Ninguém queria ser treinador da seleção, porque tinha muitos problemas. Quando o Maradona começa a jogar na seleção juvenil, consegue lá em 1979 o título, o pessoal começou a ver como ele foi mudando a imagem da camisa da seleção, como mudou para ele e como ele conseguiu mudar nos outros a adoração e o amor pela camiseta”, explica Stroker.
Durante cinco temporadas no Argentinos Juniors, o atleta não levou a equipe a nenhum título. Em 1981, Maradona assina com o Boca Juniors e, durante o curto período em que jogou na equipe sul-americana, marcou 28 gols e deu 17 assistências em 40 jogos. Conquistou seu primeiro título em nível de clubes e, em seguida, foi contratado pelo Barcelona, da Espanha.
Em 1982, Maradona deu início a sua carreira no futebol europeu. Na Catalunha, o craque conquistou uma Copa da Liga Espanhola, uma Copa del Rey e uma Supercopa da Espanha. Também lesionou a perna com uma entrada dura de Andoni Goikoetxea, do Athletic Bilbao.
Na sequência, em 1984, o argentino foi transferido para a Napoli, time italiano. Permaneceu 8 anos no Sul da Itália e elevou o patamar do clube, fazendo história. A equipe alcançou o campeonato italiano nas temporadas de 1986/87 e 1989/90, além da Coppa Italia, em 1986/87, e da Copa UEFA em 1988/1989.
“Quando Maradona chegou no Napoli, falou ‘o Napoli vai ser campeão’. Se você ver jornais da época, você fala que é uma luta entre Itália do Norte e Itália do Sul. Napoli contra Inter, contra Milan. Lá era a discussão Norte e Sul. Aí ele chegou e falou ‘o Sul vai ser campeão’. Todo mundo falava do Maradona e do Sul. E a bandeira do Napoli era o Maradona campeão. Era a luta do Sul contra o Norte da Itália. E ele conseguiu, foi campeão”, analisa Stroker.
Pela seleção argentina, o meia-atacante liderou na Copa do Mundo de 1986, no México. Lá, venceu o bicampeonato mundial e eternizou la mano de Dios nas quartas de final contra a Inglaterra, no Estádio Azteca. Questionado sobre o gol feito com sua mão a fim de desviar a bola para o gol de Peter Shilton, Maradona respondeu: “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios” (marquei-o um pouco com a cabeça e um pouco com a mão de Deus).
“O cara era um artista. Era um negócio que ele fazia com a bola que você não vê hoje, pelo menos eu não conheço. Ele sempre foi um negócio especial, sempre jogou de uma maneira especial. Ele sentiu a camisa da seleção, ele tem uma adoração especial. O que ele conseguiu com o futebol era de outro planeta”, conclui Stroker.
Quatro anos depois, a Argentina chega novamente a uma final da Copa do Mundo. Dessa vez, contra os alemães. Em 1990, os hermanos foram vencidos por 1 a 0, ficando com o vice-campeonato.
Durante sete temporadas no Napoli, Maradona consolidou seus melhores momentos no futebol. Em seguida, passou brevemente por Sevilla, entre 1992 e 1993, antes de retornar à Argentina.
“Acho que o melhor Maradona jogou os primeiros dois anos no Napoli. O Maradona de 86 era pleno. Esse Maradona de 86, com 26 anos, era a imagem do Maradona completo no futebol. Também quando ele começou a jogar como profissional nos Argentinos Juniors foram os destaques mais importantes. Eu acho que o Maradona no Barcelona não foi Maradona. Para mim, Maradona no Barcelona é nota 7, 8. Agora na seleção, mundial no México em 86 e primeiros dois anos no Napoli, é 9, 10. O cara mudou”, analisa o jornalista.
Em seguida, o ídolo retornou à Argentina para jogar no Newell’s Old Boys, onde permaneceu por pouco tempo. Posteriormente, na Copa do Mundo de 1994, sediada nos Estados Unidos, foi flagrado no exame antidoping e expulso da competição, além de ficar afastado por 15 meses.
Durante o período em que esteve fora dos gramados, entre 1994 e 1995, comandou o modesto Mandiyú e o Racing, ambos da Argentina. Em 1995, Dieguito voltou ao Boca Juniors e encerrou sua carreira como jogador de futebol dois anos depois, em uma partida contra o River Plate.
Anos depois, Maradona foi convidado a comandar a seleção argentina. Porém, o sucesso não foi tão grande quanto em seus tempos de jogador. Na África do Sul, durante a Copa do Mundo de 2010, foi eliminado nas quartas de final para a Alemanha.
Por fim, o craque foi treinador do Al-Wasl e do Al-Fujairah, ambas equipes dos Emirados Árabes e, então, do Dorados de Sinaloa, do México, e do Gimnasia de La Plata, da Argentina.
Algumas polêmicas
“Eu era, sou e serei um viciado em drogas”, afirmou o craque em entrevista.
Assim como muitos famosos, Maradona não ficou imune aos vícios. Cercado de más companhias, o jogador se afogou no uso do álcool e drogas, fatores que resultaram nos seus episódios de overdose, ataques cardíacos e hospitalização por hepatite.
“Todos os processos que o Maradona passou tem a ver com a mesma coisa, mas ninguém cuidou. Para mim, o problema passa aí. Maradona podia estar vivo e com saúde. Podia ter muito mais dinheiro do que teve. Podia fazer muito mais negócios do que fez. Muitas pessoas que estavam ao lado do Maradona não pensaram nele. Ninguém falava ‘não tem droga pro Maradona, vamos cuidar dele’. Ele tinha uns 38, 39 anos e o coração funcionava com 35, 40%. Era muito difícil. A responsabilidade é de empresários, clubes, objetivos, representantes, amigos”, afirma Stroker.
Na carreira como jogador, o argentino testou positivo nos exames de doping, por cocaína, em sua época no Napoli, em 1991, e na Copa dos Estados Unidos, por efedrina, em 1994. Nisso, ficou fora dos campos por um ano, quando finalmente, em 1995, voltou ao Boca Juniors e por lá permaneceu até a sua aposentadoria em 1997, ano que o Pibe de Oro testou positivo pela terceira e última vez no antidoping.
Na época, o próprio craque reconheceu o seu baixo rendimento nos jogos. “O Maradona não está contente porque sabe que o Maradona está abaixo do padrão”, observou o jogador após sua passagem pelo Newell’s, colocando-se na terceira pessoa.
Ciente de sua dependência, o mesmo teve um largo histórico de internações em clínicas de reabilitação, na Argentina e em Cuba, mas, por fim, o vício já era parte de sua vida, o qual lutou contra até o seu último suspiro.
Maradona: um progressista político em campo
Vindo de uma família da classe trabalhadora, Maradona tinha consciência dos problemas de seu país e manifestava em suas escolhas e palavras o ideário progressista. Não à toa, escolheu o Napoli para jogar, uma vez que esse time era composto por homens pobres da Itália. Além disso, o “Dios” tinha apreço por figuras da esquerda na América Latina.
E como colecionador de controvérsias políticas, ele foi apoiador do liberal Menem durante a campanha do presidenciável na Argentina, ao mesmo tempo que é tido como um ferrenho simpático da esquerda, por sua admiração ao ex-combatente Fidel Castro, tatuagem de Che Guevara no braço direito, e apoio aberto aos ex-presidentes Hugo Chávez, Venezuela, e Luiz Inácio Lula da Silva, Brasil.
O hermano se dizia contra o imperialismo. Prova disso, foi o seu protesto na Cúpula das Américas em 2005, na Argentina, em que ele usou uma camiseta contra o presidente George W. Bush, com a frase “STOP BUSH”.
Logo depois, durante um programa venezuelano, o jogador afirmou que odiava tudo o que vinha dos Estados Unidos e participou de comícios de candidatos da esquerda, pela América Latina, abertamente contrários à intromissão dos EUA em assuntos internos.
A desavença contra os poderosos não se restringia somente ao campo político, mas também se estendia ao futebol. Maradona tinha uma clara aversão aos dirigentes da FIFA, os quais ele julgava como imorais. O resultado? A sua exclusão do círculo dos diretores e certo apagamento nos grandes eventos da federação. Contudo, suas acusações se provaram verdadeiras com os sucessivos escândalos dos cartolas descobertos a partir de 2015.
Em seguida, o seu novo casamento, o qual duraria até 2020, o ídolo argentino apontou a velha política como âmago na organização e saiu de vez desse círculo.
Os últimos momentos do craque e sua herança
Mesmo após sua morte, Maradona ainda é cercado de polêmicas. A autópsia do ex-jogador aponta um edema agudo e uma parada cardíaca como causas de sua morte. Contudo, segue na justiça uma investigação acerca de seus últimos momentos. No documento, há a citação da equipe médica como a possível responsável pelo óbito do jogador.
Suspeita-se que os médicos, psicólogos e enfermeiros foram negligentes nos cuidados ao paciente, já que a perícia aponta um atendimento “ineficiente, deficiente e indiferente”. Na prática, isso significa que Maradona não recebeu o devido atendimento hospitalar e internação adequada, visto que estava em um cômodo de uma casa alugada.
Em 25 de Novembro de 2020, 21 dias após uma cirurgia para retirada de um coágulo no cérebro, o argentino já encontrava-se em estado crítico 12 horas antes do óbito. A perícia aponta que ocorreram irregularidades e a ausência de assistência médica nesse período.
No campo familiar, a herança segue sob disputa e estacionada na justiça. Suspeita-se que Maradona tenha tido mais três filhos, além dos cinco reconhecidos atualmente. O imbróglio acerca dos bens envolve o cálculo da herança, a necessidade de comprovação da paternidade quanto aos demais pretendentes, um impasse com o advogado e, por último, a preservação do corpo do argentino.
Um herói nacional de carne e osso
Maradona, além de jogador e partidário, foi também a personificação de um herói em seu país. O primeiro destaque quanto ao seu amor pela Argentina e recuperação do orgulho nacional foi o emblemático gol de La mano de Dios, marcado na partida entre Argentina e Inglaterra, pelas quartas de final da Copa do Mundo de 1986, no México.
El Pibe de Oro — outro apelido dado a Maradona, que significa “o menino de ouro” — trouxe satisfação com os argentinos, já que o clima com o Reino Unido era de inimizade tanto no aspecto futebolístico, mas também político. De um lado, a derrota da Argentina na Copa de 1966 para a Inglaterra deixava marcas, mas principalmente a disputa entre essas nações pelas ilhas das Malvinas, naquela que ficou conhecida como a Guerra das Malvinas, episódio bélico no qual a Argentina também saiu derrotada e cedeu o arquipélago.
O jogo de 86 foi a reviravolta e motivo de alegria para todos os hermanos. Ainda vale o destaque que, além do gol que marcou a derrota dos anglicanos, Maradona marcou o segundo da partida — que terminou em 2 a 1 para os argentinos — , eleito como o “gol do século” pela FIFA.
Stroker afirma que além dessas artimanhas, as quais colocaram o nome do camisa 10 da seleção na história, Dieguito provou ser um homem em carne e osso. A colocação do jornalista esportivo encontra correspondência no trecho do livro Espelhos: uma História Quase Universal (L&PM Editores, 2008), do escritor uruguaio e fã de Maradona, Eduardo Galeano. O camisa 10 “foi adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses”, escreveu o uruguaio.
O jornalista esportivo ainda chama a atenção ao fato do ídolo ter tido grande responsabilidade em campo. “Seja nos jogos ou fora, Maradona sabia que tinha de ser o ídolo dos argentinos”, observou Stroker. Ele ainda pontua que a cobrança de rendimento sobre-humano a qual o craque era submetido pode ter sido um dos agravantes da saúde do camisa 10. Ademais, o histórico de lesões, o abuso de drogas ilícitas e álcool, somado ao excesso de medicamentos, como a cortisona, são apontados como os fatores que contribuíram para a deterioração do estado físico e mental do Maradona, bem como a sua morte.
Apesar desses reveses, Maradona segue admirado por todo o seu país e, inclusive, pelos devotos da Igreja Maradoniana, a qual tem seguidores por todo o mundo. Ele se mostrou humano, com os seus erros e acertos, ao mesmo tempo que foi um mito dentro e fora de campo. El Pibe de Oro segue eternizado para sempre na história do futebol como uma personalidade enigmática e como um deus, como afirmou Galeano. “O mesmo Maradona que você adora no campo é o mesmo que tinha esses problemas. Você não pode mudar o Maradona. É isso. As duas coisas têm que ser faladas”, relata o jornalista.
“Acho que o legado que ele deixou pro resto é o amor que ele tinha pelo jogo e pela camisa da seleção nacional argentina. Ele mudou a imagem do torcedor da seleção com o jogo. O principal legado dele foi isso: ‘olha, você tem que amar essa camisa’ e ele mostrava essa paixão. Maradona é isso, é paixão, é jogo, é artista, é talento, é extraordinário”, finaliza Stroker.
“Maradona é isso, é paixão, é jogo, é artista, é talento, é extraordinário”
Carlos Stroker