Por Caio Nascimento (caiovn.usp@gmail.com)
Lançado em 2006 no Congresso Nacional, o Projeto de Lei para reforma universitária (ou PL 7600/06) está parado há dez anos em Brasília. A reforma pretende remodelar as universidades a partir da regulamentação das faculdades privadas e ampliar a proporção de mestres e doutores nas instituições para 65%. Segundo o ex-secretário adjunto da Secretaria de Educação do estado de São Paulo, João Palma Filho, a Lei promove a revitalização das faculdades públicas. “As universidades do estado precisam se integrar melhor na sociedade, e isso demanda mais recursos e uma melhor utilização das receitas por parte da reitoria”, ele diz.
Professor e especialista em gestão pública educacional, João Palma critica a transferência de verbas para as três universidades públicas paulistas. Desde 1989, elas são custeadas por um repasse fixo de 9,57% do total arrecadado do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) — do qual 5,03% destina-se à USP —, considerado por ele insuficiente .
Segundo ele, a melhor opção seria que as reitorias pedissem ao governo o aumento da fração do orçamento estadual alocado às universidades. Palma também acredita que o Estado precisa incluir outros impostos no cálculo de repasse, como o IPVA (Imposto sobre propriedade e veículos automotores) e o ITCD (Imposto sobre transmissão causa mortis e doação), fazendo uma ampla consulta à sociedade. “O ICMS é a única fonte que abastece o ensino superior público” afirma. “O governo precisava fornecer outras fontes e ampliar o percentual para garantir um bom serviço.”
No primeiro quadrimestre deste ano, a USP recebeu R$ 2,89 bilhões do governo – o menor repasse financeiro em sete anos. A afirmação do Cruesp (Conselho de Reitores Universitários do Estado de São Paulo) é de que a culpa é da recessão que o país enfrenta.
Para Palma, essa diminuição de verbas inviabiliza a manutenção dos serviços e a ampliação da universidade. “Hoje há uma pressão para ampliar a inclusão de alunos egressos de escolas públicas”, aponta. “Mas eles precisam de uma série de apoios do governo para se manter na faculdade. A expansão desses serviços está inviabilizada com o repasse atual.”
Um caso que ilustra essa inviabilidade, segundo o professor, é o Plano Estadual de Educação (PEE). Recentemente aprovado na ALESP (Assembleia Legislativa de São Paulo), o projeto prevê a melhoria do ensino público básico e superior nos próximos dez anos. Dentre as metas, planeja-se ampliar a proporção de mestres e doutores do corpo docente nas faculdades para 75%, sendo, do total, no mínimo, 40% doutores. “O PEE é um avanço, mas requer novas despesas que o percentual de 9,57% do ICMS não sustenta”, ele diz.
Em números atualizados, as três universidades do estado de São Paulo receberam R$ 286 milhões a menos do que em 2015. Isso equivale a uma queda de 9% no repasse, agravando a crise das instituições públicas de ensino superior.
Gasta-se mais do que se tem
Antes da atual recessão da USP, a reitoria já vinha se comprometendo com folhas de pagamento acima do que arrecadava no ICMS, segundo João Palma.
Em carta enviada aos professores, estudantes e funcionários em 2014, o reitor da universidade, Marco Antonio Zago, oficializou a suspensão de obras e escreveu que não havia dinheiro para novas construções. “Simplesmente não há recursos para atender a novos prédios”, disse. No mesmo ano, Zago cancelou as substituições de aposentados ou demitidos da USP, com a a promessa de que os cortes reduziriam 4,4% dos gastos com a folha de pagamento. João diz que essas políticas não mudam o quadro de crise. “Ao mesmo tempo que se adotou uma providência de reajuste interno por parte das universidades, do outro lado se tem a queda na arrecadação de tributos que serão repassados. Uma coisa anula a outra”, ressalta.
Os ajustes da reitoria uspiana contam também com o Programa de Demissão Voluntária (PDV), que prevê antecipar a aposentadoria de 2,8 mil funcionários de 55 a 67 anos e com no mínimo 20 anos de USP. Com a medida, a Univesidade de São Paulo tem diminuído 10% do quadro de funcionários, dispensando cerca de 1,4 mil trabalhadores e reduzindo a folha de salário em 6,5%, independentemente dos interesses das categorias estudantis e de classe — as quais, em sua maioria, se colocam contra os ajustes. João Palma critica o programa. “Isso sobrecarrega os professores e inviabiliza atividades acadêmicas”, afirma.
De acordo com dados do Codage (Coordenadoria de Administração Geral da USP), o caixareserva da universidade despencou de R$ 3,61 bilhões para R$ 1,3 bilhão no fim do ano passado. Além disso, o plano orçamentário de 2016, aprovado pelo Conselho Universitário, previu um montante de apenas R$ 2 milhões no cofre da instituição no fim de 2018 — uma queda brusca de R$ 792 milhões em relação ao atual momento. O déficit previsto para este ano é de R$ 543 milhões.
A USP utilizou 80% da verba para gastos com pessoal e 20% para investimentos em 2011 e, no ano seguinte, as reservas bancárias da instituição começaram a ser utilizadas. Em opinião concedida ao jornal Estado de São Paulo, o professor emérito e ex-reitor da USP, José Goldemberg, contou que, em 1988, quando os reitores conquistaram autonomia para gestionar sem crivos estatais, as universidades acreditavam que os gastos com pessoal não ultrapassariam 80% dos recursos totais. Até 2008, foi o que ocorreu. No entanto, de acordo com o orçamento da universidade, os salários do pessoal técnico e administrativo foram aumentados em 73% de 2009 a 2013, um índice superior à inflação da época. Com isso, em 2013, a relação de gastos ultrapassou os 100% — ou seja: gastou-se mais do que as receitas permitiam.
Essa realidade tem proximidade com a crise atual. Para o grupo de especialistas do site Crise na USP, na gestão do ex-reitor João Grandino Rodas (2010-2014), a expansão dos gastos com salários foi atípica e está diretamente relacionada à crise orçamentária.
Em artigo no portal HuffPost Brasil, João Palma escreveu que uma forma de contornar a situação seria uma maior transparência da universidade para com toda a sociedade — haja vista que o livro de contas da USP é fechado à população — e a racionalização do processo de gestão no interior da comunidade acadêmica. “Quem sabe a atual crise não leve à conscientização de todos no sentido de maior participação da comunidade acadêmica nos destinos da própria universidade e num melhor entrosamento com a sociedade”, elencou.
Autonomia na gestão
A autonomia financeira das universidades paulistas foi obtida a partir do Decreto nº 29.598, assinado em 1989 pelo governador Orestes Quércia (1987-1991). Antes disso, os funcionários dos campus eram sujeitos às mesmas regras do Estado: contratações, nomeações e demais burocracias acadêmicas passavam pelo crivo do governador. Por conta da inflação vigente na época, o repasse do começo do ano nunca era o suficiente para manter a universidade. Eram necessárias negociações constantes com o governo para suplementar a receita.
A Constituição Federal, já em 1988, previa a possibilidade de a universidade pública ter autonomia financeira, patrimonial, didático-científica e administrativa. Dessa forma, em 1989, os reitores da USP, da Unesp e da Unicamp conseguiram transformar essas instituições em autocracias, e o repasse financeiro às três paulistas passou a se dar pela cota fixa do ICMS.
“O repasse da cota do ICMS para as universidades públicas não segue a lei”
Antes de as universidades públicas paulistas conquistarem autonomia, a transferência de verba não era datada. Até 1989, as universidades consumiam cerca de 11,6% de tributos; com o estabelecimento da datação orçamentária do ICMS, o repasse caiu, chegando aos 9,57% de hoje. De lá para cá, a USP se expandiu — com maior número de vagas, cursos e campus — e o custo para mantê-la dobrou, como aponta o diretor do Sindicato da USP, Magno de Carvalho. Para ele, o ajuste do repasse foi subavaliado na época e assim se mantém até hoje.
Na visão do sindicato, mesmo que a dotação orçamentária tenha diminuído com a conquista da autonomia, a USP foi criando uma reserva financeira formada às custas de arrocho salarial e do não envio de verbas para serviços de suas faculdades. “Com a crise do jeito que está, esse caixa seca em um ano e meio, mas, se aplicá-lo, ele rende juros que podem servir para algo”, ressalta Magno.
O Sindicato defende o repasse do ICMS de 12,34%, mas entende que o anseio não deve pautar a greve num momento de crise nacional.
O diretor também conta que o poder público não cumpre com o repasse atual. Segundo ele, o governo faz o cálculo percentual do repasse depois de retirar as datações para a Habitação e não incluir alíneas da receita oriunda do ICMS, que são repassadas para os municípios. “Na realidade, as universidades paulistas não recebem 9,57%. O repasse é bem menor”, ele diz. “Sabemos que o percentual não subirá na crise, mas reivindicamos que nesse momento o estado faça o repasse de acordo com a lei. É o mínimo a ser feito sem prejudicar as contas públicas do Estado nesse período de recessão.”
De acordo com boletim da Associação dos Docentes da Unicamp (ADunicamp), os reitores divulgaram em 2014 um documento pedindo a passagem dos atuais 9,57% para, no mínimo, 9,907% do total do produto do ICMS. Para a associação, se isso ocorresse, as universidades deixariam de ter o desconto da Habitação e a base de cálculo dos repasses passaria a ser a mesma que dos municípios paulistas.
Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)
Com a presença de estudantes e professores de universidades públicas, a Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento de São Paulo aprovou, nesta quarta-feira (29/06), o Projeto de Lei 369/16, que dispõe sobre a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Na reunião, foram aprovadas emendas que tratam da educação. Dentre elas, foi subscrita a Emenda 587, de Cauê Macris (PSDB), que prevê que o Executivo poderá transferir dotações orçamentárias em vista da necessidade; a Emenda 1, de André Soares (DEM), que delibera a realização de audiências públicas pelo Executivo para debater o projeto orçamentário em todas as regiões do estado; e a Emenda 1073, proposta pela bancada do PT, que visa a valorizar as carreiras e os vencimentos de salários dos servidores do estado de São Paulo a partir de estudos.
Durante o encontro, o deputado Raul Marcelo (PSOL) defendeu um novo modelo de financiamento das universidades, a partir da taxação de 30% na transmissão de heranças acima de R$ 1 milhão. A deputada Beth Sahão (PT) contou que o Governo do Estado de São Paulo faz alta renúncia de ICMS em benefício de empresas privadas.
“O governo não quer negociar”
João Palma Filho completa: o Governo do Estado de São Paulo não quer dialogar com as universidades. Segundo ele, o Cruesp, também em 2014, enviou diversos ofícios ao governador mostrando a situação orçamentária das universidades públicas paulistas, mas não recebeu respostas. “A bola da vez está com o governo”, dispara. “O governo deve ter sua palavra em relação ao funcionamento da universidades. Não é porque elas têm autonomia que o governo deve largar sua autoridade. Autonomia não é soberania.”
Ele ainda diz que que todos os governadores que sucederam Orestes Quércia não têm se envolvido nas dificuldades das universidades públicas, resistindo em aumentar os repasses ou incluir outros impostos na transferência fixa. Para que o ensino superior público se expanda daqui para frente, o contato entre universidade e governo precisa mudar. “Não é só o Geraldo Alckmin. Há vinte e sete anos os governos de São Paulo têm lavado as mãos em relação à educação superior. Não tem mais espaço para continuar assim”, conta.
Em busca de um parecer, a reportagem não obteve retorno da assessoria de imprensa do Governo do Estado de São Paulo.