Por Diogo Magri
Todo dia 15 de abril, o evento mais triste e marcante da história do esporte inglês faz aniversário. A Tragédia de Hillsborough, ocorrida no estádio que deu nome a ela, em Sheffield, na semifinal da Copa da Inglaterra disputada entre Liverpool e Nottingham Forest, mudou a forma de organizar futebol no país que o inventou. Naquela data, em 1989, 96 pessoas morreram e outras 766 ficaram feridas dentro do estádio por conta do que parecia ter sido mais um caso de confusão entre torcedores. Nos anos posteriores, seguiram-se injustiças que procuravam esconder o que realmente havia acontecido naquela tarde de sábado.
Somente muito tempo depois a verdade foi oficializada, em prol do bem de todos os afetados pelo desastre e por sua repercussão. No entanto, para entender o porquê da tragédia, ainda é preciso compreender todo o contexto da época na Inglaterra. E, claro, é ainda mais preciso relembrá-la a cada ano que se passa.
Antecedentes: hooliganismo e Heysel
Apesar de marcantes, não podemos dizer que confusões em estádios eram novidades no futebol inglês. Desde a década de 60, o hooliganismo fazia parte da rotina dos eventos esportivos de lá. “Era um modo violento de vida”, afirma Mário Marra, jornalista e comentarista da ESPN, Rádio Globo e CBN, ressaltando como o comportamento ia muito além da torcida dentro das arquibancadas. Muitas vezes, os ingleses levavam este comportamento para fora de seu país – em episódios na França, em 75 e 77, durante confrontos válidos pela Copa dos Campeões da UEFA (hoje, Champions League), Leeds United e Manchester United, respectivamente, foram punidos por atitudes violentas de suas torcidas.
Em maio de 85, essa série lamentável chegou ao ápice. Liverpool e Juventus faziam a final da mais importante competição europeia no estádio de Heysel, em Bruxelas, na Bélgica. O estádio não cumpria os requisitos mínimos de segurança, os ingressos foram vendidos de modo a deixar as torcidas lado a lado em determinado setor e apenas uma linha de policiais fardados as separavam. Estando muito próximos, os torcedores ingleses partiram para cima da parcela italiana presente no setor ao lado de modo inconsequente, como faziam corriqueiramente em seu país. Mas os juventinos, desacostumados com a atitude e sabidos da fama inglesa, correram em pânico para a direção contrária, onde havia um muro de concreto. Enquanto a torcida era literalmente prensada contra a estrutura, o muro desabou. 39 mortos. 600 feridos.
O jornalista britânico Tim Vickery, correspondente britânico da BBC no Brasil, em entrevista ao portal Trivela, diz: “Heysel é absolutamente fundamental para entender Hillsborough”. Mário Marra, porém, faz ressalvas: “A tragédia de Heysel tem um traço forte de hooliganismo, mas Hillsborough tem um enorme caso de erro na estratégia de policiamento e organização de eventos”.
O pré-jogo em Sheffield
O uso do estádio de Hillsborough era comum nas semifinais da Copa da Inglaterra, mesmo com alguns problemas semelhantes ao desastre de 1989 acontecendo nos anos anteriores. Obstáculos, esses, que motivaram algumas pequenas reformas na estrutura ao longo da década – entre elas, a instalação de enormes grades separando os setores, que buscavam combater o hooliganismo. Essas grades, que mais pareciam gaiolas, seriam determinantes para que a tragédia acontecesse.
A expectativa era de casa cheia. A torcida de Liverpool, a 100km de Sheffield, estava ansiosa para ver seu ótimo time em um jogo importante da competição mais antiga da história do futebol. Todos os ingressos estavam esgotados. “Era sabido que muitos torcedores iriam a Sheffield, mas a Inteligência Policial deixou muito a desejar. Tudo aquilo podia ter sido evitado”, explica Marra. Onde a maior parte da torcida do Liverpool ficaria, 7 catracas deveriam dar conta de mais de 10 mil torcedores. Mesmo ocupando metade do espaço de Hillsborough, os fãs tiveram direito a apenas 28% dos acessos às arquibancadas. Não tardou para a aglomeração de pessoas começar nas entradas destinadas aos torcedores dos Reds.
O desastre
Quem não conseguia entrar também era impedido de deixar o local por conta da vasta multidão que os pressionava contra as catracas. Dos quatro setores destinados ao Liverpool atrás de um dos gols, os dois centrais já estavam lotados. Ao ouvir os primeiros aplausos vindos da arquibancada, sinais de que o jogo começaria, os nervos se afloraram ainda mais lá fora. Preocupados com o esmagamento na entrada do estádio, as autoridades abriram um portão lateral, originalmente uma saída, sem catracas, para desafogar a multidão. A ideia era que os torcedores seguissem para os espaços laterais, vazios até então. Da sala de controle, acima de um dos setores, os policiais responsáveis tinham a completa visão da superlotação e todas as condições para sinalizar que a multidão não fosse para o lugar mais cheio. Mas não fizeram. A massa, não sabendo a quantidade de pessoas presentes ali, foi em direção ao centro, onde não cabia mais ninguém.
Quem entrava não fazia ideia da superlotação. Não fazia ideia de que pessoas estavam sendo esmagadas contra grades nas divisórias, construídas para impedir o acesso ao gramado e o deslocamento lateral entre setores. Onde cabiam 1.600, havia mais de 3.000. Em uma jaula, literalmente. Nenhuma autoridade procurou desviar o fluxo de pessoas. O jogo não foi sequer adiado. Só foi paralisado quando, depois de cinco minutos de bola rolando, torcedores começaram a subir desesperadamente nas grades para sair daquele inferno.
O protocolo policial a ser seguido visava evitar o hooliganismo – devido a casos como Heysel, esse era o tipo de confusão esperada -, o que explica a total falta de preparo para lidar com a situação. A segurança do público não era a prioridade. Ademais, o chefe da polícia na oportunidade, David Duckenfield, jamais havia trabalhado em um jogo de futebol. Mais tarde, se revelaria que mal conhecia os times que jogariam. Autoridades chegaram a impedir a entrada de ambulâncias no local, dificultando os primeiros socorros, além de tentarem não deixar os torcedores subirem nas grades com medo da “invasão” de campo, completamente céticos em relação ao real problema. Uma grande porção de policiais foi orientada a fazer um cordão humano que impedisse a entrada de torcedores do outro time, o Nottingham, em campo, bloqueando possíveis brigas, em vez de adotar qualquer procedimento emergencial que a situação pedia. Das 96 vítimas, apenas 12 conseguiram chegar ao hospital. Por pura negligência policial. Pelo menos 40 poderiam ter sido salvos se recebessem um atendimento decente ainda no estádio.
Consequências
No dia seguinte, um mar de flores em Anfield Road, casa do Liverpool, deu a verdadeira dimensão do que havia acontecido. A repercussão imediata, dada pelo comando da polícia, do governo liderado pela primeira-ministra, Margaret Thatcher, e pela imprensa, apontava toda a culpa nos torcedores, segundo eles, embriagados, inconsequentes e violentos. Thatcher teria pessoalmente colaborado, conforme informaram documentos sigilosos revelados anos depois, para que os reais acontecimentos fossem encobertos. Segundo oficiais, os torcedores, sem ingressos, haviam bebido e derrubado o portão sem catracas que dava acesso ao campo, causando o esmagamento daqueles que já estavam lá.
O jornal inglês “The Sun” chegou a estampar em sua capa, embaixo da manchete “A verdade” (The Truth, como ficou conhecida), frases como “Torcedores roubaram pertences das vítimas”, “Torcedores urinaram em cima dos corajosos policiais” e “Torcedores bateram em policiais que praticavam primeiros socorros”. Esse foi o resultado do primeiro inquérito oficial de Hillsborough, concluído ainda na década de 90 e totalmente influenciado pela adulteração de documentos oficiais. Segundo ele, a responsabilidade foi toda dos torcedores mortos.
“Até mesmo as crianças mortas foram submetidas aos exames de ingestão de álcool. Era cômodo deixar a culpa em quem já não podia mais se defender”, diz Mário Marra. 37 dos 96 eram adolescentes.
Além de toda a negatividade, o episódio marcou a divisão de épocas no futebol da Inglaterra. No ano seguinte, o Relatório Taylor, elaborado a partir de Hillsborough, constatou a necessidade de modernização de toda a estrutura da liga inglesa, que culminou no fim do frequente hooliganismo, na reforma de arenas e na criação da Premiership – hoje, a bem sucedida Premier League.
#JFT96
Durante a cerimônia em homenagem ao 20º aniversário da tragédia, em Anfield (vídeo acima), o público interrompeu o discurso do Secretário britânico de Mídia, Esportes e Lazer, Andy Burnham, para gritar “justice for the 96!”. A impressionante atitude foi o que motivou a abertura do último inquérito para investigar o caso, que culminou na inocência oficial das vítimas.
Sabendo que a tragédia havia sido uma consequência da negligência de autoridades oficiais e que os primeiros relatórios tinham sido adulterados para provar as hipóteses de acidente e comportamento agressivo dos torcedores, as famílias das vítimas e o clube lutaram todos esses anos pela não-responsabilização daqueles que morreram. Pela verdade. Pela justiça. Em parceria com o Everton, rival de cidade, o Liverpool organizou diversas campanhas com o lema ‘Justice For The 96’. Uma luta da população da região, que perdeu amigos e parentes, contra a mentira oficial.
Aos poucos, a pressão trouxe confissões que fizeram com que tudo fosse verdadeiramente esclarecido. Comprovadamente, atitudes erradas foram tomadas e relatórios oficiais foram alterados e censurados. Evidências foram corrompidas pelas autoridades. Ano passado, exatos 27 anos após tudo, o segundo inquérito de Hillsborough concluiu oficialmente a inocência das vítimas e torcedores presentes em Sheffield naquele dia. De forma justa, as falhas no policiamento foram consideradas as responsáveis pelo desastre.
“Não é fácil ver seu filho que morreu ser dado como culpado. Não é fácil ver uma cidade chorando os mortos e lendo que eles mesmos eram os culpados”. E Marra conclui: “É tão importante, mesmo décadas depois, porque é a justiça”. Lembrar do que aconteceu também é fundamental – para que os erros cometidos não se repitam e, principalmente, pela memória e honra daqueles que só queriam assistir a um jogo de futebol do seu time.
**** Fica a recomendação do documentário Hillsborough, feito pela ESPN Filmes e disponível gratuitamente no WatchESPN. Além disso, neste link, tem o especial de cinco textos feito pelo portal Trivela, em 2014, sobre a tragédia.