por Gabriel Lellis
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Do que é feito um bom ator? Essa é uma questão filosófica tão difícil quanto “de onde viemos?”. A nobre arte de atuar vem sendo desenvolvida e modificada desde o século V antes de Cristo, quando um cidadão grego chamado Tespis, durante uma festa feita para honrar Dionísio (deus do vinho), resolveu “imitar” o homenageado. Mesmo que a atitude não tenha sido totalmente consciente, e talvez tomada pelo impulso embriagador da festança, temos de agradecer Tespis, pois não apenas foi o primeiro ator da história da humanidade, como também deu o impulso para a criação do teatro.
É das artes cênicas que nasce a atuação, que migra dos palcos para as telas com a criação do cinema. Os primeiros filmes mudos produzidos com enredo trouxeram à tona a figura de um ator com poderosa capacidade de expressão corporal e facial. A voz era dispensável. Destacaram-se figuras como Buster Keaton e Lílian Gish.
A inevitável sonorização do cinema destruiu a carreira desse tipo de ator. Poucos, como Chaplin e Greta Garbo, conseguiram manter o sucesso após o advento do som. A partir de então, assim como no teatro, as interpretações deveriam tender para algo mais realista e natural.
A verdade é que historicamente os atores de cinema pouco eram submetidos a uma preparação prévia. Isto se deve principalmente pelo fato de o cinema ter a capacidade de repetição das cenas até o mais próximo de uma perfeição. No teatro, um ator que erra uma fala não pode pedir para a platéia autorização para refazer a cena.
Os extremos da atuação
A pressão das premiações internacionais, aliada ao aumento de profundidade do roteiro e das personagens, criou uma necessidade para uma melhor preparação dos atores de cinema. No Brasil, essa prática ganhou força após a retomada do cinema nacional nos anos 90 e hoje está centralizada no método desenvolvido por Fátima Toledo, que preparou atores de filmes como Cidade de Deus (2002), Pixote (1981) e Tropa de Elite (2007).
Atores mais tradicionais, que também atuaram nos palcos, optavam por métodos clássicos de atuação teatral ao realizarem uma cena para as telas do cinema. Dentre eles, podemos destacar o sistema Stanislávski, que foi um marco da atuação cênica realista.
Para quem ainda não o conhece, percebe-se pelo nome que Stanislávski foi um russo e seu método parte do pressuposto de que o ator deve imaginar como agiria se ele fosse o personagem, utilizando-se de sua memória pessoal para criar ações físicas e psicológicas que enriqueçam a sua interpretação.
Para o diretor teatral e ator Zédú Neves, o método Stanislávski é único: “Não acho que até hoje tenham inventado outro método tão eficaz, mas sim, desenvolveram outras receitas para outros bolos, sem contudo deixar de usar a farinha”. Ainda segundo o diretor, nem sempre os métodos de preparação garantem qualidade ao ator: “Participar do processo, fazer os exercícios, tentar usá-los é uma coisa, mas só o ator mesmo no seu íntimo, saberá fazer a coisa do jeito que funcione para ele.”
O método criado por Fátima Toledo é polêmico e divide opiniões entre os atores. A preparadora explica que a principal diferença com Stanislávski é que ela ensina o ator a pensar como “eu sou a personagem” e não “como eu seria se fosse a personagem”. O ator, portanto, deve esquecer as imposições do roteiro e agir como se todas as situações fossem reais.
É inegável que os atores preparados por Fátima obtiveram grandes resultados em tela. Wagner Moura em Tropa de Elite é um exemplo. O processo de transformação em Capitão Nascimento foi algo brutal. Em uma das filmagens, provocado por insultos propositais, Wagner teria agredido um dos assistentes da preparadora. Em entrevista para “O Globo”, Fátima afirmou que foi a partir dessa situação extrema “que nasceu o personagem”.
Nem todos os atores suportam uma experiência extrema como a vivenciada por Wagner Moura. O ator Marrat Descartes desistiu de participar do filme 2 Coelhos (2012) e declarou publicamente que: “Não adianta sair rastejando pelo chão se não é isso que é necessário. Lambendo o chão, se jogando, se socando, [dando] tapa na cara”. Tanta polêmica acabou virando munição para a sátira. O grupo “Porta dos Fundos” ironizou o método Fátima com o vídeo Preparadora de Elenco.
Ser ator é algo difícil. O mercado hoje demanda versatilidade e o profissional deve saber atuar tanto em teatro, quanto em cinema e TV. Poucos são aqueles que, como Fernanda Montenegro, conseguem manter a qualidade de atuação nesses diferentes meios de trabalho. A discussão em torno de métodos e estilos continuará pautando a vida desses profissionais. O público apenas espera que a qualidade, independentemente da forma que ela seja alcançada, se mantenha e que os atores continuem a emocionar tanto nas telas quanto nos palcos.
O que um ator pensa
Zédú Neves é bacharel em artes cênicas pela UNICAMP e professor de teatro. Já atuou em filmes como Caixa Dois (2007) e O menino da porteira (2009), além de participar de programas de TV como o recente Dentista Mascarado, da Rede Globo. Tem centenas de peças teatrais no curriculum como ator e diretor. Confira aqui a entrevista completa que ele concedeu para o Cinéfilos:
CINÉFILOS – Qual a principal diferença da atuação cênica para a cinematográfica?
ZÉDÚ NEVES – Creio que seja a questão do aparelho. No teatro o palco, no cinema a câmera. Só nisso a diferença é brutal, enquanto o teatro necessita do exagero, o cinema se elabora no detalhe, toda a informação tem que caber no enquadramento de câmera, ator, cenário, figurino e iluminação formam um conjunto imediato, que uma vez registrado é o que fica para sempre. No teatro tudo é volátil, efêmero, um dia após o outro, e embora também ocorra a repetição das coisas, tudo ocorre ao vivo. São pulsações diferentes, o ator, o intérprete precisa saber disso, ter noção, conhecimento das exigências técnicas e emocionais de cada um desses meios. A técnica de interpretação varia desse ou daquele ator, mas tudo sempre acaba numa coisa só. Na capacidade daquele que faz: saber dar vida, vivenciar o momento a cena, ou o take… Tudo é fake [de mentira], mas é como se não fosse. Resumindo, o ator precisa saber mudar o “dial” para este ou aquele trabalho, cinema, TV, teatro e no cerne da questão esse potencial vem do saber fazer a coisa, seja por que meio for, parecer viva e verdadeira e intensa.
C – Hoje no cinema utiliza-se métodos de atuação como o método desenvolvido pela Fátima Toledo. É possível o ator usar o método Stanislávski em atuação para filmes?
ZN – Entendo que o método de Stanislávski seja único. Outras variações de método surgem do próprio método dele, uma fez que o ator saiba lidar com Stanislávski, ele pode partir para outros vôos, como Brecht, Fátima Toledo, Clown… O importante é entender que o método seria uma forma de “chassi” de um carro, você sempre tem o modelo básico que segura toda estrutura, mas o carro que vai em cima pode ser muito diferente um do outro. Não acho que até hoje tenham inventado outro método tão eficaz como Stanislávski, mas sim, desenvolveram outras receitas para outros bolos, sem contudo deixar de usar a farinha, entende… No caso da sua pergunta, especificamente o ator de cinema, ele sempre usa Stanislavski, mas através do desenvolvimento que a Fátima Toledo deu pra ele, por exemplo.
C – Você acredita que a preparação de atores para o cinema é hoje algo indispensável?
ZN – Não, não creio. Entendo teatro como Arte, e Arte pede improviso, paixão, criatividade. Um método pura e simplesmente não garante nada ao ator, apenas indica um possível caminho. Ele precisa saber o método, e como transformá-lo para si próprio. Eu por exemplo desconheço o método da Fátima, sei algumas coisas de orelhada, participei de um processo semelhante e ele não me ajudou em nada, não serviu. Porque eu penso, ajo de uma forma em interpretação que o método não tem como atender. Logo acho que cada um no seu quadrado. Participar do processo, fazer o exercícios, tentar usá-los é uma coisa, mas só o ator no seu íntimo saberá fazer a coisa do jeito que funcione para ele.