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O dia em que o Papão da Curuzu tornou-se o Papão da Bombonera

Por Karina Merli e Larissa Vitória Era 24 de abril, noite de quinta-feira. O Paysandu entrava em campo antes do próprio anfitrião, Boca Juniors. O time era rodeado por um público de mais de 40 mil torcedores e tinha como missão calar não só essa torcida, mas a imprensa argentina, que acreditava na sua derrota …

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Por Karina Merli e Larissa Vitória

Era 24 de abril, noite de quinta-feira. O Paysandu entrava em campo antes do próprio anfitrião, Boca Juniors. O time era rodeado por um público de mais de 40 mil torcedores e tinha como missão calar não só essa torcida, mas a imprensa argentina, que acreditava na sua derrota por goleada, como conta Pedro Loureiro de Bragança, diretor de comunicação do Paysandu em 2013 e 2017: “Quando chegou o jogo contra o Boca, em La Bombonera, todos os noticiários argentinos apostaram numa goleada histórica para o Boca Juniors. Não era cogitada de forma alguma, em hipótese alguma, uma derrota do time da casa.

Decerto, a chegada do clube às oitavas de final da Copa Libertadores da América era uma surpresa, mas, na verdade, o alviceleste vinha de três anos vitoriosos. Durante os anos 2000, 2001 e 2002, tendo no comando o técnico Givanildo Oliveira, o Papão da Curuzu acumulou, por três vezes seguidas, o título de campeão paraense, além das conquistas do Campeonato Brasileiro da Série B de 2001, da Copa Norte e da Copa dos Campeões, ambas no ano de 2002. Esse último foi o que garantiu o bicolor no torneio sul-americano e fez dele o primeiro clube do Norte a conquistar tal façanha. Loureiro analisa esses anos como cruciais para a equipe de 2003: “A base daquele time foi o que trouxe a consistência para a campanha na Libertadores.”

Paysandu comemora título da Copa dos Campeões de 2002 (Imagem: Jarbas Oliveira/O Liberal)

Dentro da Libertadores, na primeira fase, o time foi responsável pela terceira melhor campanha, atrás apenas de Corinthians e Santos, respectivamente. Ao longo dela, o Paysandu obteve dois empates e quatro vitórias; dentre elas, duas foram emblemáticas: uma sobre o Cerro Porteño, do Paraguai, por 6 a 2 e outra sobre o Sporting Cristal, do Peru, por 2 a 0, ambas fora de casa.

Porém, naquele dia, o Papão tinha como adversário ninguém menos que o Boca Juniors, time argentino de grande tradição no campeonato e que, apesar de não vir de uma campanha tão espetacular (três vitórias, dois empates e uma derrota), contava com Carlos Bianchi como técnico, além dos famigerados Abbondanzieri, Battaglia, Donnet, Delgado, Schelotto e Tévez. Somando-se a isso, o Boca não sabia muito bem o que era perder para um time brasileiro em casa pela competição, já que só havia provado desse amargo sabor em duas oportunidades: contra o Santos de Pelé, em 1963, e contra o Cruzeiro de Ronaldo, em 1994.

A partida histórica

(Imagem: Gabriela Teixeira/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior)

Primeiro tempo

O juiz Carlos Amarilla apitou e o jogo foi iniciado ao som ensurdecedor da torcida do Boca Juniors, descrita por um dos poucos torcedores do bicolor presentes naquele jogo, Salim Fraiha Neto, como “uma torcida que exalta o amor pelo clube”. O ambiente, no entanto, não assustava o Paysandu. Segundo Iarley, uma das estrelas do time daquele ano, o elenco já sabia com o que estava lidando: “O Dario Pereyra teve uma boa sacada, né? Nos levou ao museu do Boca antes do jogo, para a gente conhecer um pouco da história, o som de La Bombonera, para tirar um pouco o peso…”, o que, de fato, surtiu efeito.

O time paraense apresentava uma proposta de jogo semelhante ao do Boca, logo, era possível visualizar uma partida com defesas bem colocadas e à espera de um contra-ataque fatal. Em menos de 20 segundos, o Paysandu já se mostrava diferenciado, ao chegar com perigo no gol do adversário, após uma cobrança de falta. Mas, quatro minutos depois, os xeneizes reagiram, dando trabalho ao goleiro Ronaldo. Seria um duelo daqueles!

Ao longo do jogo, o camisa 7, Iarley, começava a mostrar que logo, logo, seria uma arma letal no ataque do Papão. Em diversos lances de velocidade, pela lateral esquerda, o meia-atacante deixava os zagueiros do time argentino desnorteados com os seus dribles. Aos 17 minutos, mandou uma bomba no gol, que Abbondanzieri defendeu em um belo lance. No minuto seguinte, Ibarra, lateral-direito, teve de ser substituído por conta de uma lesão, dando lugar a Calvo. Ficou a questão: seria essa a razão que justificava a liberdade de Iarley?

Os rumos do jogo, porém, foram alterados em um lance aos 20 minutos. Após se desentenderem, Robgol e Clemente Rodriguez foram expulsos por Carlos Amarilla, desfalcando a lateral esquerda dos xeneizes e reduzindo, significativamente, a ofensividade do Papão da Curuzu. Assim, o Paysandu acabava recuando diante de um Boca Juniors pouco criativo e que chutava no gol em raras ocasiões.

Por outro lado, a substituição do Boca ainda deixava o camisa 7 do bicolor solto pela lateral, acompanhado por Vélber e pelo volante Vanderson em suas corridas rotineiras de contra-ataque. O lance dos 31 minutos foi prova disso: após cobrança de falta, Iarley disparou e fez belo passe a Vélber, que chutou em cima do defensor argentino. Já aos 35, o lance perigoso veio dos pés de Marcelo Delgado, que assustou a torcida paraense.

Clemente Rodriguez e Robgol sendo expulsos (Imagem: Reprodução/Paysandu)

Aos 48 minutos, a primeira etapa se encerrava e o Paysandu já garantia um belo feito, dentro do caldeirão chamado de La Bombonera, mas não era momento para comemoração: o segundo tempo estava por vir. 

Segundo tempo: o impossível acontece

O segundo tempo se iniciou na Argentina com a torcida local fazendo valer outro apelido do estádio Alberto J. Armando: La Doce. A acústica proporcionada pela arquitetura da construção e o ímpeto da torcida realmente passavam a impressão de existir um 12º jogador atuando a favor dos anfitriões. O Papão, porém, embalado pela boa atuação na primeira metade da partida, seguia firme e com a defesa atenta às tentativas xeneizes. A posse de bola era dominada pelo Boca Juniors, mas os jogadores não conseguiam concluir jogadas e apresentar perigo ao gol de Ronaldo.

Iarley conta que o time bicolor havia se fortalecido durante a participação na Série A do Campeonato Brasileiro e na própria Libertadores. O Paysandu se classificou como primeiro colocado de seu grupo, que incluía equipes tradicionais como Cerro Porteño e Universidad Católica. “Tínhamos um time que se encaixou, o time possuía um entrosamento muito bom. A gente jogava de igual para igual contra as equipes de primeira divisão, com atuações consistentes. 6×2 no Cerro Porteño, né?”, relembra o jogador.

Aos 10 minutos de bola rolando, a situação tornou-se mais complicada para o PSC: Vanderson, volante importante para a equipe, foi expulso após cometer falta desnecessária no atacante Schelotto. Mais 35 minutos teriam de ser enfrentados com um jogador a menos. Contudo, enganou-se quem pensava – e eram quase todos os torcedores naquela altura – que o jogo tinha acabado ali para o Papão. Completamente fechada e auxiliada pelo restante do time, a zaga parava todas as jogadas da equipe adversária, e os alvicelestes aguardavam um contra-ataque oportuno para reacenderem as esperanças na partida.

Esse momento veio aos 23 minutos do segundo tempo. O zagueiro Jorginho, após parar uma jogada perigosa do Boca Juniors, tocou a bola, que foi trabalhada pelo time até chegar aos pés de Iarley, dentro da área. Acompanhado por dois marcadores, o jogador fez a finta e chutou para o fundo do gol xeneize. O silêncio incômodo instaurado em La Bombonera definia bem o lance que entraria para o história do futebol latino-americano.

O Boca bem que tentou empatar a partida nos minutos seguintes. Uma oportunidade perigosa surgiu dois minutos após o gol do cearense Iarley: uma cabeceada perigosíssima de Cagna foi espalmada por Ronaldo. Salim relembra que o clima dos torcedores xeneizes na arquibancada não refletia o desespero dos jogadores em campo. “O que mais impressionou positivamente é que, mesmo com a derrota, eles fizeram um lindo espetáculo pirotécnico ao final do jogo. Temos muito a aprender com eles”, afirma o torcedor.

Bianchi, que assumira expressão de incredulidade total após o gol, colocou Tévez em campo e a equipe argentina se lançou totalmente ao ataque, mas os toques não chegavam à àrea do Papão. Aos 48, o juiz apontava para o centro de campo, apitava e sacramentava o placar de 24 de abril de 2003: Paysandu 1 x 0 Boca Juniors. O improvável – e até impossível, muitos diriam – havia acabado de acontecer.

O jogo da volta

Os jogadores do Paysandu foram recepcionados como verdadeiros heróis no Pará ao retornarem para casa. A cidade de Belém estava em festa e exclamava “La Bombonera é nossa!”. Porém, a classificação para as quartas ainda seria definida em uma segunda partida, como ocorre até hoje na Libertadores.

O jogo de volta contra o Boca Juniors ocorreu pouco mais de 20 dias depois da histórica vitória, em 15 de maio de 2003, no Mangueirão, estádio da cidade de Belém. Ainda eufórico com o resultado alcançado na Argentina, o alviceleste começou muito bem o jogo, mas sofreu um duro golpe já aos 13 minutos do primeiro tempo: após passe de Tévez, Schelotto mandou a bola para o fundo da rede e igualou o número de gols no placar agregado. “O time fechou bastante o meu lado, fazendo uma marcação, às vezes, até dobrada. A gente não sabia jogar se defendendo, nosso time era ofensivo e, dentro de casa, a gente sempre jogou para frente”, conta Iarley.

Lecheva empatou a partida no começo do segundo tempo, mas a estrela de Schelotto brilhou novamente, naquele dia, e o jogador fez dois gols de pênalti. Alguns minutos antes, Delgado já havia colocado os xeneizes novamente à frente. Quase no fim da partida, aos 41 minutos, o zagueiro Burdisso fez gol contra e deu esperanças aos torcedores do Papão. Contudo, não havia tempo suficiente para superar o revés. Boca Juniors 4 x 2 Paysandu. O time argentino avançou para as quartas de final e foi campeão daquela edição do torneio; ao time brasileiro restou a glória de ter vencido o Boca, em La Bombonera, alcançando um feito realizado apenas por dois clubes nacionais até então.

Canhotos de algumas partidas disputadas pelo Papão naquele ano (Imagem: Acácio Elleres/Arquivo Pessoal)

O advogado Acácio Elleres, torcedor do Paysandu, estava presente naquele fatídico jogo de Belém e explica que a euforia do time pode ter atrapalhado o desempenho: “Poderíamos ter adotado uma postura mais defensiva e aproveitado contra-ataques, mas como você poderia pedir isso para um grupo empolgado e carregado nos braços por sua torcida?”.

O que vem depois do impossível?

Uma das pessoas que mais sentiu o legado daquela partida certamente foi Pedro Iarley Dantas, autor do gol que marcou o Papão na história de La Bombonera. Sua atuação impecável chamou a atenção do time derrotado, que o contratou logo após o fim do campeonato. “Aquele gol me colocava na vitrine do futebol mundial”, afirma o ex-atleta, que conquistaria um Mundial de Clubes naquele mesmo ano com a equipe xeneize.

Infelizmente, o clube que o catapultou para o estrelato não conseguiu manter as boas atuações no ano seguinte. Em 2005, quatro anos após voltar à elite do Campeonato Brasileiro, o Papão foi rebaixado para a Série B e, no ano seguinte, para a C. Nos últimos anos, a situação melhorou para o clube, que acumulou títulos estaduais em 2006, 2009, 2010, 2013, 2016 e 2017, tornando-se o maior campeão da região Norte, além da conquista da Copa Verde, em 2016.

Pioneiro na adoção de um material esportivo próprio, o clube criou a marca LOBO – o animal é mascote do Paysandu – em 2016, e passou a confeccionar uniformes e outros itens com sua marca, melhorando sua receita. As conquistas invictas do estadual e da Copa Verde, naquele ano, possibilitaram o seguimento da iniciativa e reacenderam o otimismo no torcedor do Papão, como traduz Acácio: “No início do século, a época das conquistas, nada se fez em termos de crescimento patrimonial. Hoje, o clube está bem melhor e não tarda a voltar à Série A do futebol nacional”.

Qual será o próximo momento histórico reservado para o Paysandu?

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