Por Aline Noronha (alinenoronha@usp.br) e Maria Eduarda Oliveira (marieduarda@usp.br)
Há exatos 30 anos, Michael Schumacher conquistava seu primeiro título na Fórmula 1. Consagrando-se campeão mundial pela equipe Benetton, esse foi o início de um legado que mudou a história do automobilismo, em uma temporada igualmente marcante para o esporte.
A estreia do alemão em 1991 aconteceu em um acaso do destino. O então piloto titular da equipe Jordan, Bertrand Gachot, foi preso por se envolver em um acidente de trânsito na Inglaterra. Nesse momento, a Mercedes viu uma abertura para conseguir um assento para seu jovem pupilo. Assim, desembolsou cerca de 150 mil libras por corrida para que Michael pudesse correr como substituto a partir do Grand Prix da Bélgica. Ainda na tentativa de convencer a Jordan, alegou — falsamente — que Schumacher era um especialista no traçado de Spa, como também é chamado o GP da Bélgica
O investimento se mostrou certeiro. Conquistando o sétimo lugar na classificação e o quarto na corrida, mas com um problema de embreagem que o fez abandonar, o jovem deu início a um legado inimaginável. Quando Flavio Briatore, chefe da equipe Benetton, o viu correr, sabia que ali havia um grande talento. Briatore demitiu o piloto brasileiro Roberto Pupo Moreno e contratou Michael, que estreou oficialmente pela equipe no GP da Itália, onde terminou em quinto lugar. Sua primeira vitória aconteceu um ano depois, na Bélgica, onde tudo havia começado.
Ao longo de sua carreira, o piloto passou por 308 GPS e contabilizou inúmeros recordes. Foram 91 vitórias, 155 pódios, 68 poles positions, e claro, um heptacampeonato que se manteve inédito até a conquista do sétimo título de Lewis Hamilton em 2020. Schumacher apresentou o livro dos recordes para a F1.
Schumacher segue como o grande ídolo da Ferrari neste século [Imagem: Reprodução: Ferrari]
A temporada de 1994
Apesar da imagem mais marcante da temporada de 1994 ter sido a trágica morte de Ayrton Senna no GP de San Marino, o ano foi repleto de outros acontecimentos na Fórmula 1.
Naquele ano, o pacote de mudanças no regulamento trouxe uma proibição em relação ao sistema de controladores elétricos dos carros, como o da suspensão ativa. Isso resultou em veículos mais instáveis que exigiram mais habilidade dos pilotos na direção. Em entrevista ao Arquibancada, o jornalista e comentarista Rafael Lopes, autor do blog Voando Baixo, comenta que a decisão não foi bem recebida por todos: “A questão do equipamento fazia muita diferença e havia uma cobrança para que se tirasse essas “ajudas” eletrônicas. Inclusive, Senna foi líder dessa campanha — para tirar — em 1993”.
A mudança no regulamento levou grande parte dos pilotos a ter dificuldade em se adaptar às novas modificações, o que não foi o caso de Schumacher. Além do acidente fatal de Roland Ratzenberger no dia 30 de Abril e o de Senna dois dias depois, outros foram registrados ao longo do campeonato. O de Rubens Barrichello, ocorrido no mesmo final de semana das fatalidades, foi igualmente grave e preocupante — por sorte, o piloto brasileiro saiu vivo da batida. Vale lembrar que, naquela época, os carros não possuíam tantos itens de segurança como os de atualmente.
No total foram 16 rodadas durante a temporada que se iniciou em Interlagos, no autódromo José Carlos Pace. Mesmo com Ayrton garantindo a pole position, Michael foi o grande vencedor do prêmio, mantendo o mesmo resultado nas três corridas que se seguiram. Na opinião de Rafael, isso foi fundamental para o título do alemão. “O início foi muito forte para o Schumacher, ele já consegue construir uma vantagem importante”.
Ao longo do ano, a disputa entre Damon Hill, da Williams, e Schumacher se intensificou. Após a sequência de vitórias no começo do ano, o alemão apresentou problemas mecânicos em Barcelona, o que levou ao primeiro triunfo de seu adversário. Já na França e no Canadá, Schumacher engatou duas vitórias importantes. As complicações começaram em Silverstone, na Inglaterra, país de Hill.
O alemão ficou marcado por sua personalidade arrojada e pelo estilo de pilotagem mais agressivo, alvo de muitas críticas [Imagem: Reprodução/Instagram/@michaelschumacher]
Durante a volta de apresentação, Schumacher ultrapassou Hill, ato proibido, o que lhe rendeu uma punição de cinco segundos no modelo stop-and-go — na qual o piloto deve parar o carro nos boxes, aguardar os segundos e depois voltar à corrida. Flavio Briatore, no entanto, se recusou a cumprir a penalidade e tentou negociar com os comissários. A tentativa não deu certo e, por não cumprimento, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) transformou a penalização em uma desclassificação, adicionando mais duas corridas de suspensão por permanecer na pista após o primeiro veredito.
A Benetton recorreu, o que permitiu que ele pudesse estar na Alemanha enquanto a decisão final não era anunciada. Ainda nesse momento, Michael liderava o campeonato, mas a confusão já estava instaurada. Com as sanções das punições anteriores, o piloto passou por outra desclassificação na Bélgica, por desgaste além do permitido no assoalho do carro. Assim, não competiu na Itália e em Portugal, onde Damon saiu com as vitórias. Nos dois circuitos que se seguiram, ambos saíram com uma vitória cada, acirrando ainda mais o campeonato, que foi para a sua decisão — Schumacher obtinha a vantagem por um ponto — na última corrida do ano, na Austrália.
Enquanto liderava a prova, o alemão colidiu contra o muro. Ao tentar ultrapassar Schumacher, Hill levou uma fechada do adversário, o que resultou em sua batida. A equipe da Williams tentou fazer alguma coisa para consertar o estrago, mas não conseguiu. Alguns alegam que, na verdade, Schumacher jogou o carro propositalmente, pois sabia que, com a eliminação dos 2, o vencedor seria ele. No meio dessa manobra polêmica, Michael Schumacher se consagrou Campeão Mundial de 1994, com oito vitórias em dez corridas. No campeonato de construtores, vitória da Williams sobre a Benetton.
Williams e Benetton venceram, juntas, 15 das 16 corridas daquele ano, com ambas as equipes recebendo inúmeras denúncias de adulteração, porém nenhuma delas foi comprovada durante investigações [Imagem: Reprodução: Fórmula 1]
A carreira inédita e surpreendente: o quão longe é possível ir?
Como destaca Rafael Lopes, se no início da carreira, Schumacher era um piloto com excesso de arrojo e agressividade, sendo duro demais em alguns momentos para ganhar, após a conquista do primeiro título ele se tornou mais maduro. Para o jornalista, o alemão passou a controlar mais suas emoções, ser mais racional nas pistas, características que ele evoluiu a cada temporada.
Depois de conquistar, com certa facilidade, o bicampeonato com a Benetton em 1995, Schumacher trocou de equipe. “Ele recebeu uma proposta irrecusável para liderar o processo de reconstrução da Ferrari”, contou Rafael. Para o jornalista, a ausência de conquistas para Schumacher entre 1996 a 1999 se deu porque a Ferrari estava se organizando para dominar a Fórmula 1 a partir dos anos 2000. Rafael ressalta que, em 1999, já havia um carro competitivo para vencer, mas as chances foram perdidas quando o alemão quebrou a perna.
O plano da Ferrari funcionou: Schumacher foi pentacampeão mundial pela equipe de 2000 a 2004, um feito inédito na história da competição. O piloto também bateu inúmeros recordes, como voltas mais rápidas, maior número de campeonatos e mais corridas ganhas em uma única temporada.
“Schumacher era absolutamente dominante, era o primeiro piloto da equipe e tudo tinha que se voltar a favor dele”, apontou Guilherme Longo, repórter do Motorsport e doutorando em comunicação pela Universidade de São Paulo. Ainda complementou que fora das pistas, o diferencial dele era saber se posicionar como o número um. Além disso, destacou a temporada de 2002 como o ápice da carreira do alemão, na qual em 17 corridas, subiu ao pódio todas as vezes.
Segundo Guilherme, a pergunta a se fazer em 2004 era “até quão longe Schumacher conseguiria ir?”. De repente, tudo parecia factível [Reprodução/Wikicommons]
“Ele tinha uma frieza absurda, sabia calcular o risco, não se metia em presepadas desnecessárias. A gente quase não vê esse calculismo na Fórmula 1 mesmo hoje, 20 anos depois”
Guilherme Longo
Para Rafael Lopes, o alemão era “extremamente inteligente e talvez tenha sido o melhor a entender o regulamento da sua época”, ao que credita seu sucesso em administrar as corridas e paradas.. O piloto realizava apenas cinco paradas para trocar os pneus e reabastecer, e também entendia quais largadas deveria fazer com mais ou menos combustível.
Ainda para Rafael, Schumacher surgiu em um período de entressafra de talentos da Fórmula 1, destacando-se por muitos anos como o único campeão que brilhava no grid. Por essa razão, o piloto não teve uma rivalidade tão intensa quanto a de Ayrton Senna e Alain Prost, por exemplo. “A grande rivalidade dele foi com cronômetro e com o livro dos recordes. Ele queria bater todos os recordes possíveis”, afirmou.
Até hoje, Schumacher é o único piloto a conseguir 100% de aproveitamento em uma temporada. Em 2023, Max Verstappen chegou perto da marca ao vencer 19 das 22 corridas [Reprodução/Wikicommons]
Já Guilherme Longo acredita que o piloto que mais conseguiu rivalizar com Schumacher foi o finlandês Mika Häkkinen, bicampeão em 1998 e 1999. Entretanto, apesar de ter estreado na Fórmula 1 em 1991, no mesmo ano de Schumacher, o finlandês aposentou-se em 2001. “O Häkkinen decide sair no momento em que ainda batia muito de frente com ele. Já o Alonso chega quando o Schumacher já é campeão e já deixou o nome dele na história”, complementou o jornalista.
No fim de 2006, Schumacher se aposentou, mas retornou às pistas em 2010 pela Mercedes, para correr por mais dois anos até se aposentar definitivamente. Sua última vitória foi no GP da China em 2006, e seu último GP foi no Brasil em 2012, no qual ficou na décima terceira posição, com 49 pontos.
O grave acidente e a continuidade de Schumacher na F1
No dia 29 de dezembro de 2013, Schumacher estava esquiando em uma área não delimitada e rochosa entre duas pistas em Meribel, na França, região onde possuía uma casa. Naquele dia, o astro da Fórmula 1 sofreu uma queda e bateu a cabeça em uma pedra. O impacto o arremessou para longe, além de partir seu capacete e provocar um traumatismo craniano.
Ele foi levado ao hospital em estado grave e permaneceu em coma induzido durante meses. Nos últimos 10 anos, o corredor não foi visto em público, e todas as informações sobre seu estado de saúde foram tratadas em sigilo, com pouca divulgação ao público. De acordo com os últimos relatos de pessoas próximas, Schumacher esteve presente no casamento de sua filha no final de setembro deste ano, em uma cerimônia na qual foi proibido o uso de celular.
Desde abril de 2014, Schumacher é tratado em casa. Segundo relatos, ele está em uma cadeiras de rodas, não consegue se comunicar e tem problemas de memória [Reprodução/Wikicommons]
Atualmente o filho caçula do piloto, Mick Schumacher, segue os passos do pai e pratica o esporte automobilístico, mas é muito criticado por não ter um bom desempenho que honre seu sobrenome. Ele que pilotou na Fórmula 1 nas temporadas de 2021 e 2022, quase pôde retornar a essa posição para a segunda vaga na Sauber, se não fosse pelo brasileiro Gabriel Bortoleto que assumiu a vaga. A decisão dividiu especialistas e internautas que acreditam que Mick era a melhor opção, em grande medida, por ter tido um desenvolvimento notável no passado e por ser filho do pentacampeão mundial Schumacher.
Para Rafael Lopes, se Schumacher estivesse com ele, o jovem talento teria uma blindagem diferente, sobretudo, no extracampo para lidar com as críticas. “Ele teria um apoio muito maior e uma responsabilidade muito menor. Hoje ele tem que manter vivo o legado do Schumacher e não ser a altura disso é normal, porque o pai dele foi fora de série, um dos melhores da história”, pontuou o jornalista.
Para Rafael, se pai e filho estivessem juntos nesse momento, a evolução de Mick teria ocorrido de maneira expressiva. Para ressaltar a importância desse acompanhamento, exemplificou a relação de Ayrton Senna com Rubinho Barrichello: “a morte do Senna mudou o rumo da carreira do Barrichello, o Senna tinha pegado ele para ser o pupilo dele, estava ajudando na carreira com conselhos que ele precisava ouvir e fazendo a sua propaganda para as equipes”.
Atualmente, Mick é reserva da Mercedes na Fórmula 1 e, mesmo contrariado, provavelmente continuará assim em 2025 [Reprodução/Wikicommons]
O show deve continuar: o legado de Michael Schumacher
Para Rafael Lopes, o legado que Schumacher deixa para os corredores atuais da Fórmula 1 é o profissionalismo, o exemplo de preparação física e de buscar sempre ser o melhor no que faz. “O Schumacher elevou isso a um nível absurdo. Ele era praticamente um robô em termos de eficiência”, destacou o jornalista.
Outro legado do alemão, para Guilherme Longo, é a paciência de esperar cinco anos para receber um carro competitivo, mesmo já sendo um bicampeão reinante. Além da persistência em acreditar e lutar pela Ferrari para colocá-la em uma posição de destaque novamente.
“Ele fez muito pela Ferrari e, como consequência, muito pela Fórmula 1 também, porque ela precisa de uma Ferrari forte”, disse Rafael Santos [Reprodução/Wikicommons]
Para Guilherme, Schumacher foi o maior piloto da história da Ferrari, que conseguiu quebrar o seu jejum de mais de duas décadas sem ganhar. “O cara que realmente sacramentou a Ferrari como uma lenda. Antes já era uma equipe gigante, mas o Schumacher eleva isso para um patamar quase de divindade”, pontua.