Por Clara Viterbo Nery (claravnery@usp.br)
O Quarto ao Lado (The Room Next Door, 2024) é baseado no romance O que você está enfrentando de Sigrid Nunez, autora norte-americana e co-roteirista do longa ao lado do também diretor Pedro Almodóvar. Diferente do livro, que conta diversos relatos de episódios dolorosos pela voz de uma mulher que, ao decorrer da narrativa, acaba emergindo na sua própria vivência, o filme se restringe à explorar unicamente a trama da narradora — que convive com uma amiga em estado terminal — e a transforma em uma grande história de luta e amizade.
Depois de se consolidar como um dos maiores nomes do cinema espanhol, o diretor Pedro Almodóvar, de Tudo Sobre Minha Mãe (Todo sobre mi madre, 1999), lança-se em uma nova aventura para sua carreira. O lançamento dos curtas Estranha Forma de Vida (Extraña Forma de Vida, 2023) e A Voz Humana (The Human Voice, 2021) marcou seus primeiros trabalhos na língua inglesa e, agora, ele desafia-se a lançar seu primeiro longa-metragem no mesmo processo.
O enredo do novo filme mergulha na relação entre duas mulheres: Martha (Tilda Swinton), que enfrenta um câncer em estágio terminal, e Ingrid (Julianne Moore), amiga de longa data que retoma contato com Martha e recebe um pedido inusitado da amiga. De início, a aproximação das duas parece rasa para desenvolver um longa No entanto a maestria com que Almodóvar conduz a narrativa a eleva a um nível diferente do que era esperado de uma obra do diretor espanhol.
Entre cenas do presente e relatos do passado, a trama se desenrola no mesmo ritmo em que a personagem de Julianne Moore se reconecta com a amiga. As vivências como mãe e jornalista de guerra de Martha são introduzidas ao público ao mesmo tempo em que Ingrid vai se inteirando sobre elas, o que contribui para uma sensação de maior intimidade com as protagonistas. À medida em que a relação das duas se fortalece, a complexidade emocional do roteiro cresce junto, permitindo que o espectador compreenda melhor o ponto de vista de duas pessoas tão diferentes.
Sem transbordar emoções, a narrativa estabelece entre as amigas uma rara cumplicidade na tentativa de lidar, de maneira racional, com o processo de morrer. A melancolia e a dramaticidade que é de se esperar de filme sobre morte não preenchem as cenas e, na verdade, dão espaço para momentos bem-humorados e certas vezes peculiares, que contribuem para trazer uma leveza ao roteiro.
Ao mesmo tempo, o que torna O Quarto ao Lado tão singular é que ele não tenta ser mais do que sua proposta inicial. Almodóvar não tenta transformar essa narrativa em um debate sobre as escolhas da protagonista ou em um filme sobre despedidas. Por diversas vezes, é mencionado o quão vivenciar a partida de alguém, através da experiência do sofrimento do outro, é um desafio frequente ao longo da vida, mas que não cabe ao outro julgar. O diretor, então, deixa as cenas mais simples e longas, de forma que o espectador possa acompanhar a trajetória das duas personagens e entender ambos os pontos de vista.
O brilho do filme são as atuações de Julianne Moore e Tilda Swinton. Como protagonistas, as duas são espetaculares e comedidas, de forma que é possível notar como as duas compreenderam e abraçaram a narrativa das suas personagens, mas em nenhum momento tentam roubar o momento da outra. A dinâmica de Ingrid e Martha só é tão íntima e verdadeira porque nenhuma das atrizes é a personagem principal, mas, sim, ambas.
Em aspectos técnicos, a obra é bem conduzida. Coerente com a narrativa mais leve e calma, seus planos são simples e retos, trazendo uma sensação de continuidade interessante aos eventos do filme. A trilha sonora de Alberto Iglesias (Madres Paralelas, 2021) é emocionante e também muito contribui para os momentos cômicos ou de quebra de expectativa. O verdadeiro destaque, no entanto, vai para a caracterização do elenco liderada pela equipe de maquiagem de Uxue Laguardia. A forma como a aparência da personagem de Tilda Swinton vai mudando conforme sua doença avança é impressionante, mas, a volta dela com um visual completamente diferente no final é ainda mais surpreendente.
Talvez esse não seja o melhor filme de Almodóvar, mas, com certeza, terá seu espaço guardado. Com uma delicadeza e didatismo sobre assuntos tão sensíveis quanto os que aqui são abordados, se constrói uma narrativa forte o suficiente para destacar os aspectos técnicos mais simples. Com diversos paralelos sobre guerras, sejam elas materiais ou não, a reflexão que o longa propõe não é em vão. Se há algo que se leva do filme é que, acima de tudo, a morte não é uma tragédia.
O filme está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer:
*Imagem de capa: Reprodução / IMDb