O tribunal da quinta feira (Companhia das Letras, 2016) é um livro incômodo em muitos aspectos.
O tema da AIDS, trazido desde quando a doença era tratada como peste do século XX, tendo servido como forma de estigmatização brutal dos gays, é incômodo. As posturas do narrador José Victor e do melhor amigo e confidente Walter diante de suas relações afetivas e da doença, atitudes que poderiam ser facilmente identificadas como sádicas e egoístas, incomodam. Mas mesmo os julgamentos a que estes personagens são submetidos em razão do vazamento de mensagens privadas que trocavam, o que vem a se constituir como conflito guia da narrativa, também podem incomodar.
Mas é particularmente interessante notar como Laub constrói sua narrativa e lhe confere esta capacidade perturbadora ao tematizar todo um conjunto de dilemas morais e afetivos em meio à dinâmica dos novos meios de comunicação. Deve ser curioso notar nos romances do começo do século passado como o telefone foi gradualmente incorporado nas narrativas literárias. Como este objeto interferiu no surgimento de histórias, relações, dilemas humanos, a ponto de tornar-se parte natural deste cenário, sem ser o tema próprio da narrativa.
O romance de Laub parece tratar de um momento semelhante, agora em relação à inserção da internet como meio de comunicação por excelência de nosso cotidiano e desta como parte do espaço em que se constroem dramas cotidianos.
Um dos recursos de O tribunal neste sentido é intercalar com a narrativa de José Victor capítulos formados apenas pelas reproduções de mensagens veiculadas na internet, a qual o narrador faz referência: mensagens trocadas entre ele próprio e Walter (e que seriam descobertas por Teca e vazadas, o que constitui o conflito central da obra); os comentários em redes sociais a partir do vazamento; as mensagens enviadas em privado a José Victor por acusadores; os áudios que Dani, a namorada com quem trai sua mulher, lhe envia por WhatsApp.
Diante da pluralidade de recursos comunicativos e de significados e personas que estes podem encerrar, Laub é hábil em mapear de forma sintética os diferentes tipos de discursos que se constroem na internet e como os meios de sua veiculação também dizem respeito à seu sentido e propósito. O e-mail não é o mesmo que o áudio, que não é o mesmo que o post de Facebook, e as situações em que são usados bem como a maneira como se portam os indivíduos em cada um destes também diferem.
Mas Laub não faz apenas este registro da pluralidade de discursos e meios. O autor não se esquiva de abordar, através da perspectiva de José Victor, questões que estão na ordem do dia: a privacidade em tempos de superexposição e de inúmeros registros rastreáveis da intimidade; a construção e a cobrança por alteridade em tempos de suposta superexposição ao outro e da pluralização de narrativas que expõem experiências de opressão e dominação; e, especialmente, os julgamentos morais que a exposição destas narrativas mobilizam sobre aqueles que a sofreram e os que as perpetraram.
Para quem está habituado ao ambiente da internet e das redes sociais estes são temas cotidianos sobre os quais infinitas respostas e provocações são produzidas a todo instante. São problemas que tomaram as timelines e grupos, mesas de bar e de jantar, salas de aula de escolas e universidades, reuniões de pais e tribunais.
Para muitos participantes destas arenas de discurso talvez já pareça muito claro as posições e lados a se defender em cada circunstância de conflito, o que ou quem deve ser apontado como inimigo e como este inimigo deve ser chamado. Se sabemos quais posições assumir, quais são os valores e grupos corretos a se defender, só é preciso então reiteradamente repetir o que é o certo a ser feito e onde colocar o limite da problematização. Daí é só esperar que os outros se deem conta disso ou lamentar se não o fizerem.
É esta suposta clareza de julgamento, a virulência e intransigência com a qual posições são assumidas, e a pretensão da superioridade moral e de entendimento que vem à tona no romance. E isso a partir da boca e do olhar de alguém dificilmente defensável. José Victor certamente não é um modelo normativo de comportamento, mas tampouco existe para ser simplesmente um bode expiatório dos escrotos. Ele é um provocador incômodo e ser um provocador não o torna melhor ou pior.
É bom ver que a narrativa não se constrói para que simplesmente um canalha reconheça seus erros, se redima, aprenda, pague por seus erros. Não estamos diante de um conto de fadas da alteridade, e por isso o livro de Laub parece particularmente importante: é uma obra que não recai em fantasias ingênuas sobre as possibilidades de construção do reconhecimento mútuo, mas que expõe as fragilidades e contradições que estão presentes em todo julgamento moral.
A linguagem reflexiva de seu narrador, contudo, exige paciência. E o estilo de pontuação corrido, que muitas vezes dispensa pontos finais e troca-os por vírgulas, parece por vezes atrapalhar a própria agilidade com que o discurso de José Victor se parece querer se apresentar. De todo modo, o tribunal é capaz de abordar problemas de que todos parecem estar falando e, de fato, problematizá-los a partir de um ponto de vista que não é necessariamente agradável de ouvir. Ao fazê-lo a partir de uma história envolvente evita obviedades, polarizações simplistas ou a reafirmação de certezas morais sobre os problemas que aborda travestindo-as em linguagem narrativa.
Por Raphael Concli
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