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‘Os detetives da Linha Púrpura’: um novo olhar para crianças desaparecidas

Romance de Deepa Anappara permite imersão na brutal realidade de pessoas pobres na Índia Moderna

Um dos aspectos mais amados em livros é a possibilidade que eles dão de viajar sem sair do lugar. Em Os Detetives da Linha Púrpura (Companhia das Letras, 2023), isso é concretizado com uma narrativa completamente envolvente que conscientiza sobre as injustiças sociais do país mais populoso do mundo. Ganhador do prêmio Edgar de melhor romance em 2021 e recebido com muito prestígio no mundo da literatura, o livro de Deepa Anappara finalmente ganhou uma edição brasileira em abril deste ano.   

Ambientado em um basti, terreno ocupado por moradias irregulares semelhante às favelas brasileiras, a obra conta a história de Jai, um garoto indiano de nove anos que ama séries policiais e que decide utilizar as habilidades aprendidas nesses programas para investigar o desaparecimento de Bahadur, seu colega de classe. O pequeno convoca seus amigos Pari e Faiz para embarcar nessa aventura de detetive e juntos percorrem os lugares mais perigosos da cidade onde vivem. Entretanto, a situação sai do controle quando mais crianças somem sem explicação e a polícia e autoridades comunitárias negligenciam o problema. 

“O que é uma vida inteira? Se você morre quando criança,

essa foi sua vida inteira, ou só metade, ou nada?”

O ponto alto da narrativa é que ela é capaz de gerar empatia no leitor ao dar voz para histórias invisibilizadas. A autora não poupa os detalhes: conhecemos cada uma das crianças desaparecidas, suas angústias, motivações e desejos. Seja aqueles que desapareceram enquanto fugiam da violência ou de um futuro indesejado, ou seja aqueles que estavam apenas no lugar errado e na hora errada, todos esses meninos e meninas têm um nome, uma história e uma família. É comum no cotidiano da vida urbana acostumarmos o olhar com absurdos, como esse tipo de situação, mas nessa leitura somos provocados ao inconformismo.

Infelizmente, em muitos momentos da leitura podemos encontrar semelhanças com a realidade brasileira. O retrato do descaso das autoridades de segurança quando a situação envolve famílias marginalizadas, bem como os programas televisivos que transmitem matérias sensacionalistas sem sensibilidade à dor das pessoas são exemplos disso. Mas a realidade particular da Índia é vislumbrada em todo o romance, pois, como declarou a autora, uma média aproximada de 180 crianças desaparecem diariamente na Índia. E, com o livro, podemos sentir de perto a dor de pais que perdem seus filhos e vivem a incerteza de quando — e se — vão encontrá-las.

Faiz: “Só porque você lê livros não quer dizer que saiba de tudo.

Eu trabalho. A vida é a melhor escola. Todo mundo diz isso.”

Pari: “Só gente que não sabe ler diz coisas assim.”

O desenvolvimento dos personagens é exemplar na obra de Deepa. Carregados de peso emocional, conhecemos os melhores amigos de Jai: Faiz, garoto muçulmano que já trabalha, mesmo sendo uma criança, e que enfrenta, junto com sua família, preconceitos religiosos e Pari, uma menina inteligente que se destaca na escola pública que frequentam. A dinâmica dos três “detetives” é divertida e muito bem escrita. Os personagens secundários também são cuidadosamente tecidos, de forma que todos têm importância para narrativa e se conectam com os acontecimentos centrais. 

Jai é o protagonista e narrador da maior parte dos capítulos — com exceção daqueles narrados em terceira pessoa que mostram outros focos, como o momento do desaparecimento de crianças. O pequeno Jai é tão verossímil e tem uma compreensão tão realista do universo que o rodeia que em alguns momentos é difícil acreditar que seja uma criança. Afinal, sua inocência é roubada pelas circunstâncias de quem vive à margem da sociedade. Porém, os sentimentos clássicos da infância ainda são presentes e capazes de emocionar o leitor. 

Deepa Anapara conseguiu concluir com maestria a missão de mostrar a perspectiva das crianças sobre dilemas complexos e, nesse sentido, se assemelha ao clássico O sol é para todos (José Olympio, 2006). Com linguagem acessível e reflexões necessárias para o público adolescente, não seria de espantar se Os detetives da Linha Púrpura se tornasse uma leitura recomendada em escolas, como é a obra de Harper Lee. Essa sensibilidade e especificidade da escrita da autora pode ser creditada a sua experiência de 11 anos como repórter na Índia, em que fez coberturas de destaque sobre o impacto da pobreza e da violência religiosa nas crianças. Inicialmente, como a escritora contou em entrevista, sua ideia era fazer um livro de não ficção com entrevistas de crianças indianas que vivem em vizinhanças como a do livro, normalmente ignoradas pelo governo. 

“Escrevi para combater a ideia de que elas (crianças) poderiam ser reduzidas a estatísticas” – Deepa no pósfacio [Imagem: Reprodução/ Liz Seabrook]

A espiritualidade é um ponto importante da obra e a enriquece culturalmente. Há, inclusive, capítulos dedicados a ela no início de cada uma das três partes do livro, que são divididas em média por dez capítulos cada. Esses capítulos, intitulados “Essa história vai salvar sua vida”, têm como figuras centrais os djins, criaturas sobrenaturais presentes na cosmologia islâmica que não são necessariamente bons ou maus, mas podem atender pedidos de socorro e até hoje estão presentes na cultura indiana. O título original do livro remonta a esses seres: Djinn Patrol on the Purple Line (Em tradução livre seria “Patrulha dos djins na linha roxa”). Provavelmente a escolha de tradução foi para aproximar a obra do público brasileiro.

“Acredite, hoje ou amanhã, todos nós perderemos alguém próximo, alguém que amamos.

Os sortudos são aqueles que podem envelhecer fingindo ter algum controle sobre a vida,

mas mesmo esses vão entender em algum momento que tudo é incerto e que tudo se destina a desaparecer para sempre.

Somos meras manchas de poeira nesse mundo, cintilando por um momento na luz do sol, e logo desaparecendo do nada.

Você precisa aprender a aceitar isso.” 

Com exceção de um erro de português identificado, a edição é impecável. As 375 páginas são muito bem diagramadas e a qualidade e gramatura das folhas são ótimas. Um único detalhe é que há muitos termos em híndi e em demais línguas da faladas na Índia que não são traduzidos, de forma que há uma quantidade exacerbada de notas de rodapé do tradutor, e, no caso de pratos típicos, fica a cargo do leitor pesquisar o que são. Por outro lado, essa manutenção do original foi importante para não não alterar a mensagem original. O mais prático seria se a edição tivesse um glossário no final, para quem estiver lendo conferir quando não se lembrar de alguma palavra. 

Os detetives da Linha Púrpura é um livro emocionante sobre resiliência que vale a pena ser lido. É uma daquelas obras que é difícil largar, pois você sempre quer saber o que irá acontecer em seguida. A leitura exercita a empatia e convida a conhecer uma realidade da Índia que dificilmente seria vista em uma viagem turística.

*Imagem de capa: Reprodução/ Instagram/ @companhiadasletras

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