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Os Jogos Gaélicos e as Irlandas: esporte e identidade nacional

Por Caio Mattos Dia 17 de março é o famoso Saint Patrick’s Day. Um feriado muito mais familiar para os países de língua inglesa, principalmente, para as duas Irlandas, onde o santo é patrono. O desconhecimento, no Brasil, sobre esse feriado se estende sobre a cultura, e consequentemente, os esportes nas Irlandas. Alguns atletas irlandeses …

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Por Caio Mattos

Dia 17 de março é o famoso Saint Patrick’s Day. Um feriado muito mais familiar para os países de língua inglesa, principalmente, para as duas Irlandas, onde o santo é patrono. O desconhecimento, no Brasil, sobre esse feriado se estende sobre a cultura, e consequentemente, os esportes nas Irlandas. Alguns atletas irlandeses de destaque, como George Best e Conor McGregor, são relembrados por brasileiros. Mas, mesmo assim, pensar numa atmosfera desportiva irlandesa é muito difícil. Qual esporte se pratica lá?

Questionar assim a simpatia dos irlandeses para com práticas esportivas é um erro. A ilha da Irlanda sediou uma das primeiras competições atléticas da história, comparável às Olimpíadas gregas. Embora as principais modalidades praticadas na Irlanda são pouco vistas além da fronteira insular, elas possuem grande importância na formação nacional. Os esportes gaélicos tem relação intrínseca com a história e a identidade dos irlandeses e de sua terra.

As origens dos esportes gaélicos

As práticas esportivas na ilha da Irlanda datam de, pelo menos, 632 a.C. Segundo a mitologia irlandesa, os Tailteann Games, como eram chamados, foram fundados pelo deus Lugh Lámfada como uma homenagem à sua falecida mãe de criação, a rainha Tailtiu. Os eventos não só abrangiam competições de esportes, mas também de poesia, música, dança, etc., tudo intimamente relacionado à celebração da cultura gaélica — denominação recente (originada por volta de 1770) para se referir aos celtas que povoaram a ilha da Irlanda e a Escócia.

As atividades esportivas presentes nesse festival envolviam principalmente atletismo e hipismo, assim como o hurling. Esse último é um esporte no qual os jogadores devem colocar uma pequena bola — um pouco menor e mais leve que uma de beisebol — dentro do gol ou acima do travessão do time adversário. Para isso, o jogador usa um hurley, que é uma espécie de taco. O hurling, presente na milenar e famosa lenda de Cú Chulainn, precede e muito aos outros quatro esportes gaélicos que ainda existem (futebol gaélico, camogie, handebol gaélico e rounders).

Os conflitos com a invasão política e sociocultural inglesa

Com a invasão normanda no final do século XII, os ingleses chegaram à ilha da Irlanda, tornando-a um território feudal submetido ao rei da Inglaterra. Em 1366, foram outorgados os estatutos de Kilkenny, com o intuito de restringir a cultura e o nacionalismo irlandeses. O estatuto proibia o hurling — tido como responsável pelo grande mau e mutilações surgidas, com o enfraquecimento, na defesa da dita terra (da Irlanda). Os ingleses ainda atacariam os esportes gaélicos em outras ocasiões — como com os Estatutos de Galway (1527) e com o Ato de Observância Dominical (1695) — ambos mais direcionados ao caid (precursor do futebol gaélico), que havia surgido nesse período.

Em 1542, a região foi elevada pelos britânicos ao título de reino. Com o desenvolvimento do Reino da Irlanda (1542-1800), surgiu a figura dos nobres que se apegaram à causa de preservação da cultura local. Durante o século XVIII, eles patrocinaram os esportes gaélicos, principalmente, no sudoeste da Irlanda. O mecenato proporcionou uma repopularização dos ainda “proibidos” jogos gaélicos, porém limitada principalmente à área dos condados de Kerry e Cork.

O século XIX trouxe um grande impacto aos esportes gaélicos. Primeiramente, os reinos da Irlanda e da Grã Bretanha se fundiram no Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda (1801-1922), fortalecendo a dominação política e sócio-cultural britânica. Em meio a isso, o futebol inglês e o rúgbi chegaram na ilha irlandesa, o que desviou consideravelmente a atenção da população para com os esportes locais.

Além disso, entre 1845 e 1849, a região sofreu com a Grande Fome. Cerca de um milhão de pessoas morreram, enquanto tantas outras emigraram. A população foi reduzida em volta de 20% a 25% e a prática de esportes gaélicos decaiu mais drasticamente. É nesse cenário que a Gaelic Athletic Association (GAA) surge.

A fundação da GAA e o período revolucionário

Além desse cenário desfavorável, os esportes gaélicos não tinham suas regras unificadas. Uma partida de hurling no condado de Cork era diferente de uma em Mayo. Em 1884, com a intenção de viabilizar a prática dos esportes gaélicos em todo o território irlandês, o jornalista e professor Michael Cusack, fundador do Metropolitan Hurling Club, publicou uma carta nos dois principais jornais nacionalistas — o United Ireland e o The Irishman. Nela, ele propunha um encontro para o dia 1º de novembro de 1884 no Hayes’s Commercial Hotel, em Thurles, no condado de Tipperary, para fundar a GAA.

O Hayes Hotel, palco da fundação da GAA, existe até os dias de hoje (Imagem: Reprodução)

A Associação foi concebida com o intuito não só de unificar as regras dos cinco esportes gaélicos modernos (Futebol, Hurling, Camogie, Handebol e Rounders), mas também — e principalmente — o de promover o nacionalismo e a cultura irlandesa em aversão ao domínio britânico. A GAA logo implantou a Regra 21, a qual proibia qualquer tipo de filiação para membros das forças de segurança britânicas.

Por volta dos primeiros anos do século XX, as Regras 42 e 27 também foram implementadas. A primeira proibia partidas de qualquer um dos Garrison Games — termo popularizado na Irlanda para se referir a esportes britânicos (com destaque para futebol inglês, rúgbi e críquete) — de ocorrerem em estádios da GAA. O principal estádio de Dublin era o Jones’ Road, que foi comprado em 1913 pela Associação e foi rebatizado de Croke Park. O Wembley dos esportes gaélicos modernos, assim como a maioria dos estádios na Irlanda, foi durante todo o século XX inacessível aos esportes de origem inglesa. Se antes os ingleses inibiam as expressões culturais e esportivas gaélicas, os irlandeses passaram a se utilizar dos mesmos mecanismos de repressão.

The Ban é como se popularmente chama a Regra 27. Ela proibia que qualquer membro da Associação frequentasse qualquer partida de qualquer esporte estrangeiro. A regra podia se estender até a outros tipos de manifestação cultural, como dança, segundo o historiador John A. Murphy. Em 1938, o então presidente irlandês, Douglas Hyde, assistiu a uma partida de futebol inglês entre Irlanda e Polônia, e foi expulso da GAA mesmo sendo a pessoa mais importante do país. The Ban perdurou até 1971.

O primeiro presidente da Rep. da Irlanda, Douglas Hyde, fora patrono da GAA antes de 1938 (Imagem: Reprodução)

A ideologia pró-independência não se limitava aos burocratas da GAA. Muitos dos seus jogadores — principalmente de hurling — integraram-se, por interesse próprio, nas forças dos Irish Volunteers, de 1913. O grupo paramilitar engajou-se em confrontos bélicos contra o Reino Unido na Revolta da Páscoa (1916) e na Guerra de Independência (1919-1921). Nesse último conflito, os Volunteers mudaram seu nome para Irish Republican Army, mais conhecido como a primeira formação do IRA.

Menos de um ano para o final da guerra, ocorreu talvez o incidente mais trágico da história da GAA. Na tarde do dia 21 de novembro de 1920, forças britânicas abriram fogo contra torcedores em uma partida de futebol gaélico no Croke Park, em Dublin. Depois de mais de um minuto de tiros constantes contra cerca de 5000 torcedores indefesos, dez pessoas morreram e, pelo menos, 60 saíram feridas. Resgatados ainda com vida, mais três irlandeses faleceram no hospital.

O ataque foi uma retaliação à ação do IRA que ocorrera na manhã do mesmo dia e que resultou na morte de 14 agentes secretos britânicos. Esses incidentes de violência em Dublin ficaram conhecidos como Bloody Sunday. Essa tragédia não deve ser confundida com o mais conhecido Bloody Sunday (1972), que ocorreu na Irlanda do Norte — como parte do The Troubles, que serão mencionados posteriormente — e que serviu de inspiração para a música do U2.

Capa da edição do New York Times do dia seguinte à tragédia (Imagem: New York Times)

Irish Free State e o ressurgimento dos Tailteann Games

O fim da Guerra de Independência, que dividiu a ilha em Irlanda e Irlanda do Norte, desembocou na Guerra Civil (1922-1923), na qual a GAA se manteve politicamente neutra. O resultado desse conflito foi a formação do Irish Free State (1922–1937), que era um regime independente e constitucional no qual o chefe de Estado ainda era, na teoria, o monarca britânico.

Em 1924, ressurgiram os Tailteann Games. O formato mantinha as tradicionais competições esportivas e programações culturais. De acordo com o historiador Paul Rouse, foi o maior evento esportivo do ano em número de atletas. A versão revitalizada dos jogos céltico-gaélicos contou com pelo menos 5000 competidores. Já as Olimpíadas de Paris daquele mesmo ano tiveram um pouco mais de 3000 atletas. Ainda houve mais duas edições da competição irlandesa, em 1928 e em 1932. Mas, às vésperas da Segunda Guerra Mundial — e com o fim do regime parlamentarista irlandês — os Tailteann Games foram cancelados, permanecendo assim até hoje.

The Troubles e os esportes gaélicos nos condados de Ulster

Com a Constituição de 1937, formou-se a República da Irlanda, que existe até hoje. Os esportes gaélicos, principalmente o futebol, se expandiram muito pela ilha nesse período mais “tranquilo” das décadas de 1940 e 1950. A consolidação das práticas gaélicas foi tardia na província de Ulster, que incorpora alguns condados da República da Irlanda e todo o território da Irlanda do Norte, que permaneceu no Reino Unido desde o fim da Guerra de Independência. Isso se deu pelo fato histórico do massivo processo de colonização em Ulster desde 1600, gerando uma forte identificação cultural e, principalmente, religiosa de seus habitantes com os britânicos.

Essa grande concentração de protestantes pró-ingleses na província de Ulster e, principalmente, na Irlanda do Norte entrou em choque com os ideais católicos republicanos do restante da ilha. Isso culminou em uma onda de violência conhecida como The Troubles (1968-1998). Os conflitos envolveram as forças de segurança do Reino Unido e da Irlanda contra grupos paramilitares pró-unificação irlandesa republicana, principalmente o Provisional Irish Republican Army, a terceira e mais conhecida formação da IRA. Grupos paramilitares pró-Reino Unido também participaram dos confrontos.

Embora o tratado de paz — o Good Friday Agreement — só tenha sido assinado em 1998, o apaziguamento já havia sido iniciado, de maneira natural e considerável, no início da década de 1990. Concomitantemente, entre 1991 e 1994, a província de Ulster dominou o futebol gaélico. Três times de Ulster — Down, Donegal e Derry  — dividiram os quatro títulos.

Time titular do Down campeão de 1991 (Imagem: Reprodução)

O século XXI

O primeiro ano do novo milênio veio com o fim do banimento a membros das forças de segurança britânicas. Já a Regra 42, que proibia os Garrison Games, viu apenas seu “pseudo-término”. Pressões recentes para reverter a lei já tinham ocorrido em 2002, quando a Irlanda e a Escócia se candidataram para co-sediar a Euro 2008. Com a demolição do Lansdowne Road prevista para 2007 e a construção do Aviva Stadium para ser finalizada em 2010, as seleções de rúgbi e futebol inglês da Irlanda ficariam sem estádio para jogar por três anos.

Devido a essa questão, em 2005, autorizou-se a seguinte emenda à regra: Concelho Central (da GAA) deve ter o poder de autorizar o uso do Croke Park para jogos, outros daqueles controlados pela Associação, durante o período temporário quando o Lansdowne Road Football Ground é fechado para ser reconstruído. A abertura do Croke Park à “influência britânica” ocorreu em 11 de fevereiro de 2007, com uma partida de rúgbi pelo Six Nations entre Irlanda e França. Treze dias depois, os irlandeses receberam a seleção da Inglaterra pelo mesmo torneio. A partida histórica e dura acabou com a vitória irlandesa por 43 a 13.  

Como escrito na emenda, a Regra 42 só acabou para o Croke Park. Todos os outros estádios da GAA, menores e menos tradicionais que o de Dublin, ainda não podem receber partidas de futebol inglês, rúgbi ou críquete. Foi um impacto considerável na hegemonia estrutural dos esportes gaélicos, os quais, entretanto, ainda mantêm a preferência dos irlandeses. Dos 50 maiores estádios do país, 35 permanecem proibidos de sediar uma partida de qualquer dos Garrison Games.

Assim, as Irlandas têm se exposto aos esportes britânicos, assim como a outros estrangeiros, em um processo de séculos. Mas a mentalidade coletiva voltada à cultura própria se mantêm no plano desportivo. É o orgulho irlandês materializado no gosto popular. A relação que os irlandeses possuem com o esporte é tão grande e íntima quanto poucos povos talvez a tenham. Afinal, “qual esporte se pratica lá?”.

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