Por Caio Mattos
Neste domingo, dia 6 de maio, começaram as primeiras partidas dos campeonatos provinciais de futebol gaélico. As rivalidades locais ebulem, enquanto as equipes garantem sua vaga na principal competição: o All Ireland. Ainda há tempo para se informar e poder acompanhar o melhor da temporada de 2018 de um dos mais apaixonantes esportes tipicamente irlandeses.
Os primeiros esboços das origens desse esporte são traçados do século XIV. Conhecidas todas como Caid, as práticas esportivas que precederam o futebol gaélico moderno se distinguiam entre si em relação às regras. As diferenças se dilatavam de acordo com as distâncias territoriais, principalmente.
O caid podia envolver um grande contingente de jogadores. Afinal, as disputas eram entre diferentes paróquias – unidades territoriais submetidas à administração eclesiástica – e não havia um número limite de participantes. O objetivo era levar a bola até os limites da paróquia adversária. Sendo assim, o “campo de jogo” era ridiculamente enorme.
Chutar a bola, tal como carregá-la com as mãos, era permitido. Brigas eram muito comuns entre os jogadores, tornando-se, usualmente, a maior importância do jogo. Elas eram valorizadas pela cultura gaélica.
Em 1884, foi fundada a Gaelic Athletic Association (GAA) – em irlandês, Cumann Lúthchleas Gael –, com o intuito de fortalecer as tradições gaélicas e o nacionalismo irlandês através, principalmente, do esporte. A GAA estabeleceu campeonatos e uma coletânea de regras para unificar, em dimensão nacional, cinco modalidades gaélicas. Dentre elas, se encontra o futebol gaélico como é visto na atualidade.
Regras
O geral
Em relação ao seu básico, torna-se prático – embora seja um erro conceitual – pensar na modalidade como um composto de futebol inglês, rugby union e handebol olímpico. A começar pelo gol.
O “gol” do futebol gaélico é muito semelhante ao conhecido no Brasil. Porém, as traves se estendem para além do travessão, formando o “H” (uma figura também presente no rugby).
O objetivo do jogo é colocar a bola dentro do gol (3 pontos) ou acima do travessão (1 ponto) – ou seja, dentro do H – do time adversário. A bola tem tamanho idêntico ao do outro futebol, porém é um pouco mais pesada.
As partidas são disputadas entre duas equipes, com 15 jogadores cada, em dois tempos de 35 minutos mais acréscimos (nas principais competições). São permitidas seis substituições no tempo normal, e mais três em caso de prorrogação, que é dividida em dois tempos de 10 minutos cada.
Também há substituições temporárias, que ocorrem enquanto um jogador com sangramento recebe atendimento médico obrigatório fora das quatro linhas.
Usualmente, e desconsiderando-se particularidades táticas, os times são formados por um goleiro, seis defensores, dois meio-campistas e seis atacantes. Tanto defensores como atacantes podem, e costumam, se esquematizar em duas linhas (de três cada).
A condução da bola
Os jogadores podem carregá-la nas mãos, como no rugby, mas sendo limitados a apenas quatro passos por vez. Caso queiram prosseguir com a bola em mãos, é preciso quicá-la contra o chão ou contra o próprio pé de volta para as mãos. Esta última ação, que se assemelha a uma embaixadinha, é chamada de soloing.
Dentre esses dois métodos de progressão, o soloing pode ser utilizado livremente a cada quatro passadas. Já quicar a bola contra o chão não pode ser utilizado como recurso duas vezes consecutivas. Logo, se um jogador quica a bola contra o chão, ele deverá fazer o soloing após seus próximos quatro passos.
Outra forma de conduzir a bola até o gol adversário é através do passe. O passe com as mãos precisa ser feito espalmando-a (de mão aberta, obviamente) ou socando-a por baixo, como em um saque simples de vôlei. A bola, em nenhuma hipótese, pode ser lançada ou arremessada.
Além disso, não se pode pisar na bola. Ambos, mãos e pés, também podem ser usados como recurso de chute ao gol ou para dentro do “H”. A única diferença, na regra, entre usar a mão e os pés (seja para um passe ou um chute) é que o segundo é permitido com a bola em chão também; o primeiro, não.
Com a bola em chão, tocá-la com as mãos passa a ser um ato irregular para todos que jogam na linha. Usar qualquer outra parte do corpo (menos os joelhos) continua sendo permitido. O comum é encaixar o pé por debaixo da bola e erguê-la somente um pouco acima do chão para voltar a pegá-la manualmente.
A única exceção é quando um jogador cai, ou é derrubado, mas mantém a bola em suas mãos. Nesse caso, o atleta pode socá-la ou espalmá-la com o intuito de evitar perder sua posse para o time adversário.
Já o goleiro pode manusear a bola até mesmo no chão, desde que se encontre dentro de sua pequena área, um retângulo pequeno (de 14m x 4,5m) dentro da grande área (de 19m x 13m).
O campo
As faltas
As principais transgressões técnicas são as seguintes:
- Segurar a bola em mãos por mais de 4 passos;
- Arremessar ou lançar a bola com as mãos;
- Levantar a bola do chão com os joelhos;
- Passar a bola com as mãos sem ser por espalmá-la ou socá-la claramente;
- Ficar ou pisar em cima da bola no chão;
- Tocar na bola no chão com as mãos, salvo a exceção mencionada;
- Quicar a bola no chão com as mãos duas vezes consecutivas;
- Entrar na área pequena do time adversário de maneira irregular (a Square Ball Rule).
As principais transgressões agressivas são as seguintes:
- Usar os pés para (tentar) bloquear um voleio do adversário;
- Chutar o adversário para (tentar) impedir que ele levante ou chute a bola do chão;
- Segurar o adversário com as mãos;
- Dar um investida contra um adversário de frente ou pelas costas.*
- Dar uma investida contra um adversário que não está com a posse da bola;
- Dar uma investida contra um adversário que está no ato de chutar a bola.
*Só se pode tacklear um adversário desde que se mantenha, pelo menos, um dos pés no chão e seja um contato de ombro no ombro. Também é permitido caso nenhum jogador tenha a posse da bola e ambos estejam em direção dela.
Essas são apenas as primeiras mencionadas na regra para cada um dos dois tipos, por serem muito recorrentes. Dentre as infrações técnicas e agressivas mais comuns, o local de cobrança da falta costuma ser onde ela ocorreu.
O cenário se altera após a linha dos 13 metros. Sendo assim, a falta cometida pela defesa é cobrada à mesma altura do campo de onde ocorreu a transgressão, mas da linha dos 13 metros.
Para faltas dentro da grande área, a regra praticamente se mantém desde que seja uma falta técnica. Em casos de faltas agressivas, um pênalti é cobrado. A penalidade persiste para qualquer tipo de infração dentro do retângulo menor do goleiro.
Há duas principais faltas ofensivas envolvendo a pequena área. A primeira é tocar no goleiro adversário enquanto esse se encontra nela. A segunda é a Square Ball Rule, que é o mais próximo que existe de um impedimento no futebol gaélico. Ela é repartida em dois cenários diferentes: se é, ou não, originada de bola parada.
No primeiro caso, o jogador só pode adentrar a pequena área após a bola fazer o mesmo. No outro, um jogador de ataque não precisa esperar a bola, mas apenas o final do lance que a leva para dentro da pequena área. Por exemplo, a conclusão do movimento de um chute, como mostrado a seguir.
Todas as cobranças são com o pé, mas podem ser iniciadas pelas mãos, ou seja, em voleio. As únicas exceções são o tiro da linha de 45 metros, que será explicado no tópico seguinte, e o pênalti. Em ambos, a bola precisa estar parada sobre o chão.
No futebol gaélico, o árbitro possui três cartões: amarelo (advertência), vermelho (expulsão) e o preto (expulsão com direito à substituição do jogador expulso). Dois cartões amarelos levam a um vermelho, mas aqueles são zerados no começo de uma eventual prorrogação. Não há limite mínimo de jogadores em campo desde que se inicie o jogo com treze, pelo menos.
A bola recolocada em jogo
Para além da cobrança de falta, o método mais comum de recolocar a bola em jogo é o Throw In. O árbitro lança a bola ao alto entre dois jogadores (um de cada time). Os outros podem ficar próximos, mas sem disputar a bola ao alto.
A única exceção é quando o Throw In é usado para abrir os primeiro e segundo tempos. Nesse caso, dois jogadores de cada equipe disputam a bola ao alto, enquanto todos os outros devem estar atrás da suas respectivas linhas de 45 metros.
Essa mesma linha também é usada quando um time isola a bola para sua própria linha de fundo. Não há escanteio no futebol gaélico. A bola é reposicionada na linha de 45 metros em uma cobrança de falta para o time adversário.
Já quando uma equipe manda a bola para fora da linha de fundo do oponente, recomeça-se com um tiro de meta da fração da linha de 13 metros que compõe o quadrilátero da grande área.
O goleiro precisa estar dentro desta, enquanto todos os outros jogadores (de ambos os times) devem estar após a linha de 20 metros. Já a bola saindo pelas linhas laterais leva à mesma situação do futebol britânico. No gaélico, porém, o lateral é cobrado em voleio (como se fosse uma falta).
Por fim, para recomeçar o jogo após atendimento médico em campo, a equipe que tinha a posse de bola ganha uma cobrança de falta da onde a jogada foi paralisada. Se a interrupção da partida veio durante um lance ofensivo que atravessou a linha de 13 metros adversária, a falta será cobrada na dita linha.
Mas, não se pode pontuar (seja um gol ou uma bola dentro do “H”) diretamente dessa cobrança de falta. Se nenhuma equipe tiver a posse da bola no momento da paralisação, um Throw In será disputado.
Competições
A National Football League
O primeiro campeonato do ano no futebol gaélico, e também o menos importante, é a National Football League. A liga é disputada completamente à parte do circuito principal do futebol gaélico, que envolve os campeonatos provinciais, a repescagem (All Ireland Qualifiers) e o All Ireland.
A NFL é disputada em um sistema de divisões. São quatro de oito times. Cada equipe enfrenta todas as outras de sua divisão uma vez, completando os seus sete jogos da primeira fase.
Os dois primeiros colocados de cada divisão disputam uma final entre si, sendo ambos promovidos de divisão (caso não sejam da primeira). Os dois últimos, por outro lado, são rebaixados (caso não sejam da quarta). O campeão da primeira divisão este ano foi o Dublin.
A NFL é disputada, praticamente, pelas mesmas equipes participantes dos campeonatos principais, apresentadas no próximo tópico.
Os campeonatos provinciais
A base para as principais competições gaélicas, e isso não se aplica somente ao futebol, são os campeonatos provinciais. A ilha da Irlanda é repartida nas quatro províncias de Munster, Leinster, Connacht e Ulster. Essas, por si, são divididas em condados.
Todos os campeonatos provinciais são disputados no formato de mata-mata em partida única e ocorrem, principalmente, durante o verão. O processo de chaveamento varia entre as províncias, mas tende a privilegiar os times de melhor campanha do ano anterior.
Cada condado é representado por um time, o qual herda seu nome, no campeonato de sua respectiva província. Por exemplo, o Mayo GAA é a equipe do condado de Mayo, do oeste irlandês.
Tal regra é válida para todas as equipes e seus respectivos condados. Apenas o condado de Kilkenny não participa de seu respectivo campeonato provincial (o de Leinster). É um caso cultural específico desse condado, que consolidou um ideal esportivo de dedicação exclusiva ao hurling (outra modalidade gaélica, também presente na GAA).
Como afirmou a lenda do hurling Brian Cody ao jornal Irish Independent, “eu falo por mim, mas não estamos interessados em jogar futebol de alto nível em Kilkenny… nós somos um condado de hurling e pretendemos nos manter assim”.
Há mais duas exceções, chamadas de The Exiles, que são o London GAA e o New York GAA. Ambos competem no campeonato provincial de Connacht e existem para representar os irlandeses expatriados por conta dos históricos processos de diáspora.
O All Ireland
O principal torneio do futebol gaélico é o All Ireland Senior Football Championship, também conhecido, simplesmente, como All Ireland. Em suma, ele envolve cada campeão das quatro províncias da ilha da Irlanda (Ulster, Connacht, Leinster e Munster) e mais outros quatro times vindos da repescagem (All Ireland Qualifiers).
As finais são jogadas no Croke Park, em Dublin. Desde 1913, quando foi comprado e rebatizado, o principal e maior estádio da GAA sedia a decisão. Nos cinco anos anteriores à aquisição, sob a alcunha de Jones’ Road, a mesma edificação fora palco das finais do All Ireland. A única exceção — neste período de mais de 120 anos — foi em 1947, com a final no novaiorquino Polo Grounds.
O campeonato sustentava, desde 2001, um formato em que os oito times classificados se enfrentavam em um mata-mata entre os meses de agosto e setembro. Tal esquema perdurou até o ano passado.
A partir de 2018, a GAA implementou o sistema de Super 8. As quartas de final foram substituídas por uma fase de grupos. São formados dois grupos de quatro times (dois campeões provinciais e dois vindos da repescagem).
Todos as equipes jogam três partidas únicas (uma como mandante, outra como visitante, e a terceira no Croke Park) contra cada membro de seu respectivo grupo. Os dois melhores de cada grupo prosseguem para as semifinais.
Com o Super 8, o All Ireland passou a ter 15 jogos programados (antes, com as quartas de final, eram apenas sete). O campeonato também foi deslocado para os meses de julho e agosto. Entretanto, a final deste ano será excepcionalmente no dia 2 de setembro, para não ocorrer durante a visita do Papa Francisco à Irlanda.
Outra mudança importante refere-se às partidas terminadas em empate no tempo regulamentar. Tais casos, no modelo anterior, sempre acarretariam diretamente em um Replay. Já no sistema Super 8, isso só ocorre na final do All Ireland, além das finais provinciais. Em outros casos de empate, há, primeiro, a prorrogação de 20 minutos. Somente se o cenário persistir, haverá um Replay.
Toda essa inovação no formato do campeonato está garantida até a temporada de 2020, quando a GAA avaliará se a experiência foi bem sucedida. Porém, já existe descontentamento, uma vez que o Super 8 proporciona mais jogos entre as principais potências, mas encurta o calendário das equipes mais fracas.
Esse dilema é familiar ao futebol brasileiro também.