Desde que as pessoas começaram a se organizar em sociedade, foi percebido um tipo de comportamento interpretada como diferente, que não condizia com o do resto dos indivíduos. Comportamento este que, algumas vezes, levou a crimes como assassinatos, estupros e sequestros. Essas pessoas foram nomeadas ‘psicopatas’. E, como o cinema é o retrato da vida, vários filmes foram feitos incluindo personagens com essas características.
Alguns ganharam o coração dos fãs, como o Coringa de Heath Leadger em Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008). Outros criaram um legado, sendo copiados e estudados por anos, como Norman Bates, em Psicose (Psycho, 1960).
Entretanto, há dúvidas sobre a maneira como essas pessoas são retratadas nas telonas ser precisa ou não. De acordo com o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, em entrevista ao Cinéfilos, ‘psicopata’ é “um termo predominante da tradição jurídico-criminal”, e não clínico. Na psiquiatria, a condição pode ser traduzida em Transtorno de Personalidade Anti-Social e, na psicanálise, como Estrutura Perversa. Apesar de o diagnóstico ser difícil e controverso, Dunker lista alguns aspectos possivelmente presentes em um ‘psicopata’, baseados em pesquisadores: fracasso em adequar-se a normas sociais; irritabilidade e agressividade e ausência de remorso ou indiferença.
Com isso, é possível analisar como são criados os personagens que representam psicopatas no cinemas. Aqui, serão colocados em pauta cinco filmes: Precisamos Falar Sobre O Kevin (We Need To Talk About Kevin, 2012), Se7en – Os Sete Crimes Capitais (Seven, 1995), Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1972), Menina Má.com (Hard Candy, 2006) e Psicose (Psycho, 1960).
Quem são?
Precisamos Falar Sobre O Kevin (We Need To Talk About Kevin, 2012) trata da relação turbulenta entre Kevin e sua mãe, Eva, desde a infância, questionando a questão da psicopatia tendo como foco uma criança/adolescente.
Já Se7en – Os Sete Crimes Capitais (Seven, 1995) é focado na investigação de uma série de crimes pelos detetives David Mills (Brad Pitt) e William Sommerset (Morgan Freeman). O personagem de Pitt acaba de se mudar para a cidade e tenta se adaptar à rotina com sua esposa, interpretada por Gwyneth Paltrow. Entretanto, o assassino conhece mais os investigadores do que eles imaginam.
O clássico de Stanley Kubrick Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1972) mostra uma outra versão de protagonista em relação aos filmes anteriores: um genuíno “garoto-enxaqueca”, que causa problemas e violência por onde vai. Mas, quando é capturado pela polícia, a influência do governo em sua punição leva a reviravoltas.
O filme estrelado por Ellen Page, Menina Má.com (Hard Candy, 2006), é um dos poucos no mercado que aborda a psicopatia sob um ponto de vista feminino. Hayley conhece Jeff pela internet, mas descobre que ele pode ser um pedófilo perigoso apesar da aparência inofensiva. Mas ao ser convidada para a casa dele, fica claro que ela também não é tão inofensiva quanto parece.
Já em Psicose (Psycho, 1960) é mostrada a história de uma jovem que rouba 40 mil dólares de seu patrão e foge. Entretanto, encontra problemas ao se hospedar no inóspito Bates Motel. Este longa fez escola entre os filmes de suspense e é considerado a obra-prima de Alfred Hitchcock.
Como vivem?
Todos esses longas tendem a ter similaridades na produção por conta do assunto tratado. Exemplos disso são as diversas referências ao sangue, por meio de objetos da coloração vermelha. Na maioria, há também uma trilha sonora que ajuda na ambientação, com clássicas músicas de suspense e terror. Excetuam-se Kevin e Laranja Mecânica, que contam suas histórias com trilha irônicas às cenas exibidas. No primeiro, um bom exemplo é a cena em que Eva se depara com as retaliações da população local em resposta ao ato do filho ao som de Everyday, de Buddy Holly. No segundo, as músicas chegam ao ponto de orquestrar todas as ações como em um grande espetáculo, o que ocorre quando o grupo de Alex ataca uma gangue rival ao som de Beethoven.
Outro aspecto a ser observado é a ambientação do filme, com cenários, paleta de cores e iluminação. Em três desses filmes (Kevin, Laranja Mecânica e Menina Má.com), esta característica foge ao esperado de um filme sobre psicopatia, mostrando cores claras, boa iluminação e grande uso do branco. Já em Psicose e Seven, os atributos são tratados da maneira clássica a filmes do gênero, com jogos de sombras, cenas escuras e cores levando ao preto.
Já com os personagens, a representação segue o ideário popular de o que é um psicopata: calculista, frio, inteligente, com problema com os pais e fixação pelo poder. Isso é quase uma constante nos cinco filmes, que diferem em poucos aspectos. Por exemplo: o problema com os pais só é citado em Kevin e Psicose. Entretanto, em Psicose, Menina Má.com e Seven, há o questionamento do conceito de loucura, mostrando que o criminoso pode ser qualquer um de nós. Isso é explicitado em uma fala marcante de Seven: “Ele não é o diabo, ele é só um homem”.
Sobre esse questionamento da sanidade dos personagens, o psicanalista Christian Dunker ressalta que o psicopata não tem alucinações ou outros aspectos típicos do esperado na loucura. “Eles compreendem perfeitamente o sentido da lei, das regras sociais e das demais funções normativas, mas simplesmente não as obedecem no sentido que se espera”. Por isso, ele reforça que o psicopata pode ser qualquer um: “Pode ser seu vizinho. Na verdade, pode ser você mesmo, nos piores momentos”.
Entretanto, existem aspectos retratados com insistência nas obras que, de acordo com o psicanalista, não são obrigatórios nesse quadro. São eles a inteligência, com QI acima da média e a incorrência de comportamento criminoso. Estes aspectos não estão presentes em nenhuma das patologias associadas à psicopatia (Transtorno de Personalidade Antissocial e Estrutura Perversa) e configuram uma exacerbação de um comportamento socialmente aceito, como explica Dunker.
Além disso, ele ressalta que certas ações que poderiam ser relacionadas na ficção a esses quadros, como violência, irritabilidade ou desejos sexuais incomuns, podem se manifestar em não psicopatas. “Alguém que só consegue obter satisfação sexual sob circunstâncias muitos estritas, por exemplo, pode perfeitamente encontrar uma ‘solução’ que o proteja da ação transgressiva ou criminal”, ressalta Dunker. Porém, mesmo quando o crime ocorre, ele afirma: “Não devemos reduzir tais situações à maldade, crueldade ou a deficiência de caráter. Muitas destas pessoas sofrem e lutam vigorosamente contras seus impulsos”.
Como nascem?
A criação do ‘psicopata’ também é amplamente abordada no cinema. A influência da família, como em Kevin e Psicose, ou a questão da predisposição inerente ao indivíduo são questões estudadas por especialistas, mas ainda não há um consenso do porquê algumas pessoas têm esse tipo de conduta. Alguns pesquisadores apontam causas genéticas; outros, ambientais, como sociedade e familiares, ou ainda uma comunhão de todos esses fatores.
Todos esses filmes, todavia, entram em consonância, de maneira acertada, de acordo com Christian Dunker, ao mostrar os personagens como obsessivos por poder. Tal faceta de comportamento é explorada de diversas formas nos longas. Em Kevin, com chantagem e sadismo; em Seven, ao querer controlar o rumo da investigação e a sequência dos crimes; em Laranja Mecânica, com a liderança quase que forçada do grupo de amigos; em Menina Má.com, ao querer vingar o ato de pedofilia e, em Psicose, ao tentar reviver a mãe e não sucumbir ao desejo carnal.
É perceptível, então, que a psicopatia é um conceito conflituoso até para profissionais da área, sendo frequentemente confundido com outros transtornos. Desta forma, a indústria cinematográfica usa de artifícios, como generalizações, para ficcionalizar perfis de pessoas reais, a fim de uma disseminação maior dos filmes. O que deve permanecer em mente é que os chamados ‘psicopatas’ representam parte da sociedade. Nas palavras de Christian, “A psicopatia pode ser uma forma de reforçar preconceitos e de naturalizar atos de pessoas que nós não compreendemos e não aceitamos, porque não seríamos movidos pelos mesmos motivos, causas ou razões, mas nem por isso ela precisa ser tratada como uma doença”.
por Maria Carolina Soares
mcarolinasoares@uol.com.br