Com um nome intrigante, Histórias que só Existem Quando Lembradas (Brasil, 2011) é repleto de sutilezas, e apresenta um elenco que garante veracidade à trama: a atriz principal, Sônia Guedes, é reconhecida por seus trabalhos no teatro. Além dos outros três atores, os personagens do filme são, em sua maioria, moradores de uma das cidades escolhidas como cenário, e nunca atuaram anteriormente.
A trama se passa em uma cidadezinha no interior do Rio de Janeiro, Jotuomba. O lugar e seus habitantes parecem congelados no tempo e na rotina. Os dias mudam, mas o comportamento continua o mesmo. A protagonista, Madalena, uma jotuombense viúva e já idosa, faz pão todas as noites para, de manhã cedo, levá-los ao armazém. Depois disso ela toma café com Antônio, dono do estabelecimento, e os dois vão à missa em uma igrejinha antiga no alto de uma montanha, típica de vilarejos. Após rezarem, dona Madalena limpa a porta do cemitério, trancada a cadeado.
Assim, ela segue com os poucos moradores que se reúnem para o almoço. Depois de comer, a senhora retorna à sua casa, atravessando os trilhos de um trem que já não passa mais pelo local. E isso se repete dia após dia. A história só ganha uma promessa de mobilidade quando Rita, uma jovem fotógrafa, chega à Jotuomba procurando retratar o cotidiano daquelas pessoas e a viúva a acolhe – com uma dose de desconfiança – em sua casa.
Um dos pontos mais interessantes do longa é como a diretora consegue trabalhar as nuances do embate entre o velho e o novo de forma leve. O contraste entre o claro e o escuro é uma das maneiras adotadas por Julia Murat para simbolizar o antigo. As cenas são filmadas com pouca luz, especialmente as que se passam dentro da casa de Madalena, onde ainda não há energia elétrica. Já Rita aparece diversas vezes em cenas externas, repletas de claridade, fotografando cada pedaço da cidade.
Além disso, podemos notar a diferença entre as gerações pelo modo como a câmera opera em cada uma das cenas. Nas protagonizadas por Madalena ou por outros habitantes da cidade, a câmera permanece parada, estática, e a cena se desenrola a sua frente. Por outro lado, quando Rita surge, a jovialidade é metaforizada pelo movimento da câmera, em tomadas feitas com o equipamento nas mãos. Há uma cena que retrata bem esse contraste entre os dois mundos, em que a moça, com sua moderna máquina de fotografar, tira um retrato do lampião que ilumina a cozinha enquanto Madalena faz os pães para o dia seguinte.
A chegada de Rita representa, simbolicamente, algo que desloca a visão, há muito inalterada, dos moradores de Jotuomba para uma reflexão interna. Uma das cenas mais marcantes é a que a jovem almoça pela primeira vez com eles. Os olhares são todos de julgamento, de desconfiança. Ver o rosto daquelas pessoas é algo muito forte, que faz com que o próprio público entre em algum tipo de reflexão.
Contudo, a moça dos cabelos curtos, câmera nas mãos e fones de ouvidos com músicas estridentes acaba ganhando seu espaço entre os personagens daquela cidade fantasma. Ao contrário do esperado, eles a transformam tanto quanto ela os modifica. Em uma das cenas, Rita e Madalena caminham lado a lado, uma em cada extremidade dos trilhos do trem, o que representa a união entre o passado e o futuro.
Todo o filme é permeado por detalhes que contam histórias: a protagonista, que escrevia cartas para o falecido marido todas as noites, ainda usava aliança de casamento e guardava fotos de pessoas que já morreram há tempos. Enquanto isso, não tinha coragem de se olhar no espelho. Presa no passado, arrastava-se no presente com medo de vivê-lo.
Histórias que só Existem Quando Lembradas cumpre bem o papel de unir a realidade à uma atmosfera sombria que mescla, ao mesmo tempo, fantasia e leveza. Com um enredo construído por detalhes, por nuances e por efeitos sinestésicos, o longa conta sua história a partir do silêncio, do não dito, e nos propõe uma análise acerca da morte e do tempo.
Por Malú Damázio
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