“Existe chance da partenogênese evoluir para todo ser vivo. Seres vivos têm complexidades e plasticidades adaptativas que não podemos desconsiderar.”
Stefan Bovolon, biólogo
Partenogênese deriva do grego parthenos genesis que significa “nascimentos virgens”. Este termo se refere a fêmeas de algumas espécies que conseguem se reproduzir sem a necessidade de um macho, sendo capazes de, sozinhas, gerarem um embrião a partir de um óvulo não fecundado.
A técnica reprodutiva de partenogênese é realizada por certos seres vivos como alguns invertebrados e vertebrados. Nos invertebrados, dos artrópodes que se reproduzem por partenogênese, destacam-se os insetos, nos caso as abelhas e os aracnídeos, especialmente os escorpiões. E, nos vertebrados, existem peixes, como tubarões, e répteis, destacando lagartos e cobras, como sucuris.
Biologicamente, é incomum que uma espécie consiga gerar um ser vivo a partir de um óvulo, sem fecundação. Para entender como esse processo é possível, Giulliana Rocha, bióloga com especialização em Neuroeducação e mestranda do programa de Sustentabilidade da Universidade de São Paulo, explica: “O processo partenogenético depende muito de espécie para espécie. Por exemplo, nas abelhas, as fêmeas possuem diploidia, isto é, dois pares de cada cromossomo, sendo resultado da fecundação entre uma abelha macho e uma abelha fêmea. Já os machos, chamados de zangões, apresentam apenas uma ploidia, isto é, apenas cromossomos da fêmea que o desenvolveu”.
Sendo assim, as fêmeas são originadas da fecundação de dois pró-núcleos gaméticos (óvulos e espermatozóides) e os machos de um único núcleo gamético (dos óvulos).
Para analisar as áreas da biologia que a partenogênese abrange é necessário entender como surge esse processo e quais seriam suas vantagens no aspecto genético e evolutivo. Stefan Bovolon, biólogo e doutor em História da Ciência com pós-doutorado em Ciências, afirma que essa forma de reprodução é uma adaptação reprodutiva vantajosa por um lado, pois permite maior liberdade e independência para gerar descendentes da espécie, mas que evolutivamente é desvantajosa, uma vez que diminui a variabilidade genética.
”É uma estratégia reprodutiva boa só que, como estratégia evolutiva, ela não é tão boa. Com o passar do tempo, você perder variabilidade genética na natureza e a chance da espécie entrar em extinção é maior”, explica Bovolon.
Descobertas da partenogênese em vertebrados
Em 2001, no zoológico de Henry Doorly, no Nebraska (Estados Unidos), uma fêmea de tubarão-martelo deu luz a um filhote sem ter tido relações sexuais. Na época, foram levantadas teorias que sugerem a existência da fecundação, como a possível relação da fêmea com macho de outra espécie ou que a fêmea em questão tivesse se reproduzido anteriormente e mantido o esperma do macho em seu organismo — mas, depois de três anos em cativeiro, essa teoria se tornou pouco viável. Além disso, testes genéticos realizados por cientistas demonstraram, de maneira conclusiva, que o filhote não tinha DNA paterno. Em 2006, cientistas documentaram pela primeira vez a partenogênese na fêmea Flora, um dragão de komodo em cativeiro, no zoológico de Chester, no Reino Unido. Flora pôs 11 ovos sem contato com nenhum companheiro. Nos dragões de komodo, as fêmeas possuem cromossomos femininos e masculinos, o que possibilitou que o material genético de Flora desenvolvesse os embriões. A prole de Flora nasceu saudável e todos eram machos.
Em 2019, uma cobra sucuri-verde, denominada Anna, deu à luz a dois filhotes saudáveis, no aquário de New England, nos Estados Unidos. A serpente, com cerca de 13 quilos e três metros, apareceu grávida em um local sem a presença de machos. Os testes de DNA dos filhotes mostraram correspondência com o material genético maternal.
Sexo feminino e masculino nas espécies
Quando um ser se reproduz sozinho, ele não é necessariamente fêmea. Existem maneiras adaptativas no ambiente em que uma espécie pode modular seu gênero: “A reprodução por partenogênese acontece de várias maneiras, não tem um caminho só. Modular o gênero seria você mudar de gênero sem artifícios artificiais: alguns seres conseguem fazer essa modulação durante a vida, como estratégia evolutiva, às vezes, não tem outro gênero ali por algum estresse ambiental, competição. Nos peixes, isso é mais comum de acontecer e é mais fácil de ver”, explica o biólogo.
A modulação de gênero pode contribuir com a menor perpetuação da partenogênese, uma vez que, na falta de um dos lados necessários para a fecundação, pode acontecer a troca de gênero. Ou seja, em uma população de fêmeas, na falta de um macho, alguma fêmea pode se tornar um macho e se reproduzir com outras fêmeas de forma sexuada. Entretanto, como explica Bovolon, existem espécies de animais que se reproduzem por partenogênese e mantém sua população somente com um único gênero, como é o caso dos escorpiões-amarelos. A espécie escorpião-amarelo (Tityus serrulatus), é encontrada no Brasil nas regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Nesta espécie de aracnídeo, atualmente, não existem machos, somente fêmeas e sua reprodução é realizada por partenogênese. O fato de somente existir fêmeas não significa que não irão surgir machos na espécie desses escorpiões.
Teorias sobre a adaptabilidade reprodutiva partenogênica
Existem várias teorias atualmente que tentam explicar a estratégia evolutiva de se reproduzir por partenogênese. Uma delas é de que, na falta de machos, as fêmeas recorrem a esta reprodução para que não fiquem sem gerar proles e, por isso, seriam mais suscetíveis quando em cativeiro. Entretanto, algumas espécies de animais também utilizam da partenogênese mesmo na presença de machos na natureza, o que inviabiliza a teoria da necessidade frente ao cativeiro.
Porém, a bióloga Giulliana explica que a partenogênese ocorre quando a fêmea não consegue acasalar: “A partenogênese só ocorre quando a fêmea não consegue o acasalamento. Importante considerar que não ocorre em todas as espécies: elas não ‘escolhem fazer e fazem’. Por seleção natural, essas espécies sobreviveram em determinadas regiões justamente por apresentarem tal capacidade. Caso esse fato seja observado, é possível que ovos partenogenéticos tenham nascido ou de forma acidental ou por algum fator externo do meio — como a temperatura, por exemplo”.
Existem também espécies de fêmeas que são muito ríspidas à reprodução sexuada e que, por isso, teriam desenvolvido a técnica de se reproduzirem sozinhas. Esta teoria é voltada para dragões de komodo, que são seres isolados e podem se tornar violentos quando abordados. É comum as fêmeas dessa espécie resistirem às tentativas do acasalamento, o que permitiu uma maior possibilidade desses animais evoluírem para se reproduzirem via partenogênese.
Fatores ambientais podem influenciar na forma de reprodução de algumas espécies. De acordo com Bovolon, “esses fatores ambientais de pressão, de estresse, que envolvem migração, mudança climática extrema e a ausência de um dos gêneros, também influenciam na reprodução. Os machos geralmente acabam se colocando em situações de maior perigo — por exemplo, lutar por fêmeas. Acabam tendo uma taxa de mortalidade mais alta, partindo deste princípio. Isso também favorece a partenogênese pelo lado feminino”.
Variabilidade genética e evolução
A partenogênese é um tipo de reprodução que gera filhotes sem o material genético do macho. Com isso, existem filhotes geneticamente iguais às mães, mas, não é em todos os casos que isso ocorre. A fêmea dragão de komodo, Flora, citada anteriormente, teve 11 ovos e todos com correspondência do material genético maternal, porém, não eram totalmente idênticos. Ou seja, os produtos da partenogênese não são totalmente clones, embora tenham a mesma constituição genética da mãe. A constituição genética da prole, quando advinda de um processo de partenogênese, é metade da cópia genética de quem o gera.
“Quando você surge por partenogênese, por um processo de autofecundação, de autoclonagem, não é que você não tenha variabilidade genética, você diminui, mas você ainda tem. Mas, comparado com alguém que se mistura, a variabilidade é bem menor. Supondo em termos de porcentagem, é metade da variabilidade genética que você está perdendo. A única variabilidade que você vai ter é dos seus antepassados naquela mesma linha cronológica de nascimentos, mas eu vou ser 100% minha mãe e meu pai, consequentemente, vou ser 100% minha avó e meu avô, assim sucessivamente, até chegar no momento em que teve dois gêneros se misturando e, depois que não misturou mais, eu vou perdendo essa variabilidade”, comenta
Assim, a variabilidade genética em proles que advém da partenogênese, existe, mas não de maneira significativa. O fato de certas espécies se reproduzirem sozinhas diminui drasticamente sua biodiversidade molecular.
Além disso, geneticamente, o processo envolve a diferença de ploidia: “As mães geralmente são diplóides e formam gametas haploides. Quando estes óvulos originam a prole, ela nasce haplóide, o que não se classifica como ‘cópia genética da mãe’, mas sim como metade da cópia genética da mãe”, diz Giulliana.
Evolutivamente, a partenogênese é uma vantagem quando uma espécie de fêmea está em fase reprodutiva e não tem a presença de um macho para fecundá-la, por exemplo. Bovolon também explica que, a liberdade de gerar descendentes de maneira independente e na necessidade de se reproduzir mais rapidamente, a partenogênese se torna vantajosa. Em contrapartida, o biólogo explica que com a diminuição da variabilidade genética em um médio/longo prazo, as espécies ficam mais suscetíveis à extinção por mudanças ambientais bruscas.
Embora essa estratégia reprodutiva tenha alcançado muitas espécies, desde artrópodes até répteis, essa adaptação ainda não alcançou todas, e isso se deve aos fatores ambientais de cada espécie.
“Tem algumas hipóteses, como não trabalhamos com verdades absolutas, tem alguns caminhos. Um dos caminhos é anterior ao momento atual, em que esses bichos estão vivendo, quando era necessário ter esse comportamento partenogenético e isso fica implícito na carga genética do bicho e ele conseguir modular a expressão ou não dessa carga genética. Por exemplo, posso ter a carga genética de cabelo ruivo, mas não estou expressando a carga genética agora, mas tem algumas situações que podem fazer a minha próxima geração expressar. Isso pode levar a ter um bloqueio genético ou a expressão genética em gerações seguintes. Então, vai depender muito do histórico da espécie, no passado”, explica o biólogo.
Considerando os casos recentes em animais mais complexos de partenogênese, é possível que tenham conseguido expressar esse comportamento apenas atualmente, mas que tinham essa expressão genética há muito tempo. Além disso, Giulliana relata que essa característica partenogenética foi selecionada de acordo com o ambiente de cada animal, portanto, nem todos passaram pela mesma seleção natural.
Restauração ecológica e extinção das espécies
Considerando que uma espécie pode se reproduzir sozinha, é possível que, em termos ecológicos, isso contribua com o aumento populacional em uma determinada área. Para muitas espécies que entram em extinção, a partenogênese poderia ser uma medida de restauração, entretanto, de acordo com Bovolon, por não conterem uma diversa e vasta variabilidade genética, ficam mais suscetíveis à extinção em um longo prazo, pois podem não resistir às pressões ambientais.
Em contrapartida Giullia relata: “Com o restabelecimento de algumas espécies no ecossistema, seria possível melhorar a sucessão ecológica daquele meio, atraindo outras populações a fim de recuperar e restaurar toda fauna perdida”. A bióloga ainda complementa que as vantagens da partenogênese — de poder se reproduzir sem parceiro sexual, em regiões muito afastadas e isoladas como ilhas — garantiram a sobrevivência de muitas espécies.
É possível que exista um mundo dominado pelo gênero feminino?
A partenogênese é uma estratégia adaptativa que torna a presença de machos, algo dispensável para se gerar descendentes, mesmo que com uma menor variabilidade genética. Existem espécies que só geram proles femininas e que conseguem, sucessivamente, manter-se via partenogênese, como “as escorpiões-amarelas”, criando uma população exclusiva de fêmeas.
Recentemente, com a descoberta de partenogênese na Anna, sucuri-verde mencionada anteriormente, nota-se um aumento de espécies que conseguem utilizar desta reprodução. O acontecimento da partenogênese era mais comum em espécies menos complexas, mas existem casos em cordados vertebrados, como em tubarões e répteis. Os mamíferos também fazem parte dos cordados e embora, não se tenha nenhum caso registrado de partenogênese, não é impossível excluir tal hipótese no futuro em humanos.
“Existe a chance da partenogênese evoluir para todo ser vivo. Seres vivos têm complexidades e plasticidades adaptativas que não podemos desconsiderar. Então, dentro da minha perspectiva dentro da área, eu acredito que sim, que é possível, para outras espécies, não só de répteis. Na minha perspectiva, tudo é possível”, relata Stefan
A bióloga Giulliana explica quais são os fatores que fazem com que a partenogênese ainda não tenha chegado nos mamíferos: “Na Biologia, nunca dizemos nunca! Porém, é importante mencionar que os mamíferos possuem o genetic imprinting, uma barreira que impede a partenogênese. Os genomas maternos e paternos apresentam marcadores genômicos muito específicos, ou seja, a ausência dos cromossomos masculinos levaria a uma regulação e proliferação anormal de células, resultando em um fraco suporte para o desenvolvimento embrionário, sendo esse o principal motivo de não encontrarmos esse tipo de reprodução”.
A Biologia é algo mutável, sempre com fatos novos a serem questionados e estudados. Uma humanidade composta somente de mulheres poderia ser possível se as próximas gerações tiverem como carga genética a menor expressividade do genetic imprinting e gerarem somente descendentes femininos, bem como os escorpiões amarelos. Considerando que os répteis estão evolutivamente tão próximos aos mamíferos, essa suposição pode ganhar força no futuro.