Por Ana Alice Coelho (anaalice.coelho@usp.br)
O uso de chás e óleos como artifício de cura não é novidade para quem cresceu perto de uma avó ou mãe com conhecimento sobre medicina natural. Mas será que essas plantas de fato ajudam na cura de doenças? Nessa matéria para o Laboratório, confira a discussão sobre a funcionalidade das ervas medicinais e como os ensinamentos ancestrais tomam lugar na construção do acervo medicamentoso popular.
As plantas medicinais e os povos tradicionais
Elizangela da Silva Costa, doutoranda em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e indígena do povo Baré, afirma que as propriedades medicinais de algumas plantas são, de fato, recursos válidos no tratamento de algumas doenças. Segundo ela, todas as enfermidades que têm origem em terras brasileiras conseguem ser curadas por meio dos vegetais.
Já as doenças provenientes da época da colonização, não. “As plantas que nós temos, tanto no quintal quanto no caminho da roça ou na terra firme, em capoeira, em margem de rio, são plantas que podem curar sim doenças do nosso corpo”, declara Elizangela.
Também licenciada em sociologia pela Universidade Federal do Amazonas, Elizangela já cultiva dentro de sua cultura os benefícios das plantas medicinais. “Desde a juventude, nós, indígenas, tomamos essas plantas e chás, que são preparados para manter a saúde do corpo.” Ela diz já estar habituada com o uso de chás e banhos para o tratamento de doenças corporais. “Há anos as pessoas estão se cuidando com isso. Antes mesmo de existirem as farmácias, antes mesmo de existirem os médicos, antes de existirem as doulas e as enfermeiras, elas já tinham essas ciências dentro dos seus territórios.”
Durante suas pesquisas sobre as respostas indígenas à Covid-19, a socióloga estudou as formas de prevenção indígena à doença. Entre elas, o cuidado corporal feito com as plantas medicinais teve papel de destaque. “A gente usava muito isso durante a pandemia do Covid-19. O corpo não estava contaminado ou emitia nenhum sintoma, mas eram preparados chás e banhos [para fortalecer a imunidade]”.
O uso dessas plantas se confirma como ponto essencial para o tratamento de doenças dentro da comunidade indígena ao trazer segurança aos saudáveis e conforto aos enfermos. “As mulheres indígenas fazem a proteção do seu corpo e do seu território por meio das plantas medicinais que elas têm dentro da sua área e conforme o povo que ela pertence, sua terra e sua família linguística.”
As plantas medicinais são substitutos dos remédios farmacêuticos?
Elizangela considera que existe alguma distinção entre os remédios farmacêuticos e as plantas medicinais, diferenciando-se em uso e resultados, além de certas precauções em cada caso. “Eu acredito que as plantas medicinais não vêm para substituir os medicamentos que já existem nas farmácias. As plantas medicinais são o cuidado que a gente tem com o nosso corpo, logo, são mais voltadas para a prevenção. Não é como na farmácia, que as pessoas vão procurar medicamentos quando o corpo já está doente.”
A pesquisadora expõe que as plantas não são complementos para os medicamentos de farmácia, assim como os esses remédios não são adições para as plantas medicinais: cada um tem o seu próprio uso. “[As plantas] são para ajudar aquele corpo a se cuidar e se resguardar das doenças que virão e as que já estão no corpo.”
Como qualquer medicamento, as plantas medicinais têm suas diferentes formas de aplicação, variando de acordo com a espécie, a quantidade, o estágio da doença e a parte da planta que está sendo utilizada. Elizangela reitera que as plantas devem ser introduzidas de maneira cautelosa dentro da dieta. “Nós, indígenas, temos a cautela da oralidade. Não há nada escrito dizendo quantos mililitros você vai tomar, quantas vezes por dia, se você pode tomar estando grávida. As nossas plantas medicinais têm todo um processo, mas não há nada escrito sobre como você as deve consumir.”
Apesar da prática ser bem aplicada nas comunidades indígenas, o cuidado com a aplicação ainda é um obstáculo no uso popular das plantas medicinais. “Ainda é um desafio que existe. As canetas ainda não escreveram sobre as nossas plantas”, conclui Elizangela.
Mesmo com o uso ancestral e popular das plantas medicinais, ainda é possível encontrar descrença dentro do âmbito acadêmico, segundo a socióloga. “Por não podermos colocar a nossa ciência na mesma prateleira ou no mesmo espaço, acabamos sofrendo essa discriminação do nosso conhecimento. Parece que o que está mais certo é o que está dentro do laboratório, o que é visto no microscópio ou é estudado em pequenas garrafas.” Por serem colocados em um papel vulnerável, seus saberes são, muitas vezes menosprezados, impossibilitados de serem utilizados em sociedade.
As plantas medicinais e seu uso popular
Dona Izeth, de 81 anos, possui diversos relatos sobre o uso das plantas medicinais no seu cotidiano. Conhecida em sua comunidade por seu quintal repleto de plantas, Izeth sempre fez questão de compartilhar os seus conhecimentos com aqueles que vêm à sua procura para tratar de enfermidades. “Muitas pessoas vêm aqui em casa pra pegar frutas e folhas. Eu tenho aqui no meu quintal plantas difíceis de encontrar.”
A amapaense relata que se utilizar das propriedades medicinais de diversas plantas e frutas para o tratamento de doenças – tanto em si própria quanto em sua família – já é hábito recorrente no dia-a-dia.
Uma dessas plantas é o jucá (ou Caesalpinia ferrea), conhecido por suas propriedades anti inflamatórias, antioxidante e anticoagulante. Por meio de folhas, cascas, frutos e sementes da árvore do jucá, pode-se produzir chás, óleos, pó e extratos utilizados para tratar diversas doenças. O jucá também é capaz de auxiliar no tratamento de úlceras gástricas e cortes. “Você tira as folhas e a suma do jucá e as guarda. Ferve as folhas para fazer um chá, coa bem e toma. A suma da folha você coloca em cima da ferida.”
Izeth comenta sobre o uso da planta cuia (Crescentia cujete), também conhecida como cuieira ou cabaceira, e afirma que a fruta auxilia no funcionamento dos rins, assim como asma e micose. Outra planta é o melão-de-são-caetano (Momordica charantia L.), que possui propriedades medicinais para o tratamento de eczema e feridas na pele. Dona Izeth também utiliza a planta para tratar de diabetes, já que a planta possui propriedade hipoglicemiante.
Os boldos, amplamente conhecidos por seu uso em chás, são utilizados por dona Izeth na redução de gorduras no fígado devido às suas propriedades hepáticas e digestivas. “Sempre fiz chás das plantas. Tomava por minha conta para curar as minhas doenças. Sempre me fizeram muito bem”.
Outra planta que é objeto de estudos científicos para a cura de doenças é a Kalanchoe pinnata, popularmente conhecida como folha-da-fortuna, coraima ou pirarucu. A planta foi estudada por suas ações antiúlcera. Dona Izeth, que possui a planta no quintal de casa, atesta o funcionamento da planta e comenta que esta, assim como outras ervas medicinais que cultiva em seu terreno, já foram levadas ao laboratório para ser fonte de pesquisa.
Ela também comenta sobre o uso da folha de algodão (Gossypium L.) para a cura da pneumonia, “é um santo remédio”. A folha de algodão é conhecida por possuir propriedades purgativas e cicatrizantes. Entretanto, deve-se tomar cuidado ao usar os chás da planta, pois a folha também tem ação emenagoga (provoca menstruação) e abortiva.
Outra erva que deve ser utilizada com cautela é a pariri (Arrabidaea chica), que, apesar de deter propriedades medicinais anti-inflamatórias, cicatrizantes, adstringentes, anti fúngicas e anti anêmicas, também possui ação abortiva, segundo Dona Izeth.
Tomando todos os cuidados, a senhora se mantém saudável com o uso das plantas medicinais, e pretende continuar usufruindo de todas as propriedades naturais delas. “Aqui, quem usa as plantas e os chás são mais eu e minhas filhas, e elas sempre nos ajudaram muito pra curar doenças de vários tipos. Pra mim, as plantas vêm sendo muito boas”, completa.
A preservação dos ensinamentos e práticas ligadas às plantas medicinais é essencial para a manutenção dos hábitos medicativos populares. O uso dos chás, sopas, banhos e compressas já se mostra presente no tratamento de doenças em diversas casas dentro e fora do território brasileiro, ultrapassando os limites do tempo e se estabelecendo como forma útil e segura de recuperação dos enfermos.