Jornalismo Júnior

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Por trás de cada traço

Por Taís Ilhéu (taisilheusouza@gmail.com) “Da tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos ganhadores, dos viciados, das fúfias de porta aberta, cuja alegria e cujas dores se desdobram no estreito espaço das alfurjas e das chombergas, …

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Por Taís Ilhéu (taisilheusouza@gmail.com)

“Da tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos ganhadores, dos viciados, das fúfias de porta aberta, cuja alegria e cujas dores se desdobram no estreito espaço das alfurjas e das chombergas, cujas tragédias de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa praga que se faz de lágrimas.” João do Rio, já em 1910, reconhecia o qual multifacetado e profundo é o universo da tatuagem. Percebeu nos nomes gravados dentro de corações, nas cruzes e imagens de santos, nas estrelas e símbolos políticos — como brasões da monarquia — que a tatuagem, embora percebida por vezes como marca leviana e desproposital, traçava o contexto histórico e social de uma geração. Talvez mais do que isso, marcava a cultura daquela sociedade.

Acredita-se que a tatuagem seja uma prática tão antiga que acompanha o homem desde antes das primeiras civilizações. Pela escassez de vestígios, as tatuagens mais antigas de que se tem conhecimento, datam, em sua maioria, entre 4000 e 6000 mil anos atrás. Em seus primórdios, elas assumiam quase sempre valores simbólicos ligados à espiritualidade ou poder social, variando entre os diferentes povos. Vestígios encontrados em múmias egípcias sugerem a ligação da prática a rituais religiosos, inclusive de fertilidade. Os Maoris, nativos da Nova Zelândia, têm a tatuagem como um dos mais fortes alicerces de sua cultura. As tatuagens que recobrem o corpo e em especial o rosto não são adornos, mas contam a história daquele indivíduo, o posicionam socialmente e expõe seus grandes feitos. Fazem do corpo, uma biografia.

Com o tempo a tatuagem começou a agregar conotações mais negativas, em especial na cultura ocidental. No Império Romano era usada a fim de marcar os corpos dos escravos e após anos sendo recorrente entre os próprios cristãos, foi proibida em 787 pelo Papa Adriano I, que taxou a prática de demoníaca. Apesar da proibição, voltou a ser utilizada pelos cristãos posteriormente em afronta ao islamismo.

Entretanto, a força da Igreja na cultura ocidental manteve a prática no submundo por séculos, e esta só voltou timidamente à tona por volta de 1769, quando o inglês James Cook relata a prática na Polinésia e dá origem ao termo tatoo, inicialmente denominado Ta-tau — o som que os ossos faziam ao perfurar a pele durante o procedimento. Depois disso a prática começa a se espalhar novamente pelo mundo, porém inicialmente restrita a determinados grupos e já carregando consigo forte estigmatização. No Japão, por exemplo, ela acabou sendo associada à organização criminosa Yakusa e ainda hoje não é bem aceita socialmente.

No Ocidente, embora seja supostamente bem aceita hoje, a associação entre tatuagens e o mundo do crime — que remonta ao início da prática após 1769 — deixou suas marcas e um preconceito velado marca as relações sociais envoltas pelos desenhos na pele.

A imprensa brasileira, a partir anos de 1800, passa a pautar a tatuagem e explorar sua relação com o mundo criminal. Machado de Assis foi um dos primeiros a introduzir o tema por meio das crônicas que publicava no jornal Gazeta das Notícias. Em sua crônica A Semana conta a história de um homem que tinha a pele recoberta por tatuagens românticas e que, todavia, fora acusado de assassinato. A partir daí começa então a explorar a possível associação entre o crime e as tatuagens do suspeito.

Em 1923, é publicada no jornal O Paix uma reportagem que explorava os significados das tatuagens dos marinheiros, grupo mais adepto das tatuagens na época.

Outros jornais, como o Correio Braziliense, adotaram uma abordagem diferente ao deixar de lado alguns aspectos sociais e tratar da estética e da arte.

Em 1927, é publicado pelo correio paulistano a reportagem “O presídio do Carandirú”, que trata detalhadamente a tatuagem carcerária pela primeira vez na imprensa nacional, associando, por meio de tabelas, tipos de crimes e tatuagens, origem dos tatuadores e locais onde os procedimentos eram realizados.

João do Rio, no capítulo “Os Tatuadores” de seu livro “Alma Encantadora das Ruas”, trata desta relação conturbada e marcada por desconfianças entre a sociedade e a tatuagem. “A sociedade, obedecendo à corrente das modernas idéias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que – e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime.”

A tatuagem criminal

“Nem todas as pessoas tatuadas possuem envolvimento com crimes, mas uma considerável maioria envolvida com o crime possui tatuagens.” O trecho é citado entre inúmeras outras advertências ao final da Cartilha de Orientação Policial Tatuagens: Desvendando Segredos, elaborada pelo capitão da polícia militar Alden dos Santos. Baseada em mais de dez anos de estudos no Brasil e no exterior que resultaram na compilação de cerca de 50 mil documentos e fotos, a cartilha traz associações entre diversas tatuagens e seus supostos significados no mundo do crime.

Diferente do que ocorre no universo da tatuagem artística, a tatuagem criminal é marcada não pela liberdade, mas sim por um rígido e hierárquico sistema que visa ora incluir, ora excluir o indivíduo de determinado grupo. No último caso, geralmente são as tatuagens feitas dentro dos presídios, que buscam de alguma maneira constranger e expor o detento. Os maiores alvos são os estupradores e homossexuais, que por meio destas marcas – que podem ser pintas no rosto, imagens de pênis, de corações entre outros – tornam-se escravos sexuais dos outros presidiários.

Já a rede de códigos que envolve as tatuagens feitas deliberadamente a fim de indicar pertencimento a um grupo ou identificar um crime é muito maior e mais complexa. Tatuagens diferentes podem assumir um mesmo significado, ou ainda uma só tatuagem conter múltiplas interpretações. É o que acontece com a cruz, por exemplo, que de acordo com a cartilha pode indicar tanto uma demonstração de fé quanto um símbolo de periculosidade.

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Máquinas de tatuar feitas por detentos do Carandiru, exposição A Arte na Pele (Foto: Taís Ilhéu)

A linguagem da tatuagem criminal, em especial da carcerária, inegavelmente já tomou seu lugar e estabeleceu-se no Brasil, e estudos referentes a ela existem a mais de meio século, como comprova a matéria O Presídio do Carandirú, do Correio Paulistano. Não cabe, portanto, discutir a importância social destes estudos que, de uma maneira ou de outra, retratam um grupo social, suas formas de expressão e até sua interferência macrossocial. O professor Pedro Galasso, cientista social pela Unesp, trata de importância destas pesquisas no âmbito criminal “O estudo sobre tatuagens é profundo e serve como parâmetro para a visão geral da criminalidade brasileira e várias rede penitenciárias, em associação com a Polícia Civil, tratam do tema de forma séria e importante.

Todavia, não deixa de ser necessário a fomentação de um debate que trate dos impactos destes estudos em determinadas classes e grupos sociais.

Juiz de Direito desde 2007, Adriano Ponce pondera a respeito desta associação entre a tatuagem e o crime, que ele lembra como sendo recorrente na década de 90, no início de sua carreira policial. “Era mais comum você ter a notícia de que ela [tatuagem] era feita dentro de estabelecimentos prisionais”, diz ele. “Naquela época, nem os policiais nem a sociedade de uma maneira geral viam a tatuagem como uma arte, e predominava esta repulsa.”

Dentro do serviço público, todavia, Adriano relata que desde aquela época era comum a presença de servidores tatuados, o que para ele não era visto como empecilho. Entretanto, a associação da tatuagem ao crime e a marginalização, ao que parece, não deixava de se manifestar. “Quando eu ingressei na polícia civil, tinha muitos investigadores  em São Paulo que eram tatuados”, afirma. “Aliás, a gente considerava que aquilo era até positivo, porque como é que um investigador vai se infiltrar numa festa qualquer onde supostamente está acontecendo o tráfico de drogas, engomadinho, com camisa, gravata e calça social?”

Em diversos trechos da cartilha “Tatuagens: Desvendando Segredos”, Alden dos Santos enfatiza que o objeto da pesquisa não é discriminar pessoas que possuam tatuagens, já que, de acordo com ele, seria discriminar “o próprio ser humano que ao longo da história utilizou a tatuagem como forma de expressão”. Ao fim da cartilha, inclusive, é fornecido um manual com advertências e aspectos legais que devem ser observados pelos policiais a fim de se fazer um uso consciente da cartilha. Estas observações e orientações não são infundadas, já que é sabido que muitas vezes o policial age de maneira precipitada, atentando contra a “dignidade do suspeito”, como descrito na própria cartilha.

Neste sentido, Adriano diz que é difícil dizer ao certo se, à época em que atuava na polícia, observava algum tipo de discriminação e se isto chegava a interferir em uma investigação. Em sua experiência pessoal, relata que nunca teve a intenção de prejudicar uma pessoa pelo simples fato de esta ser tatuada, mas que aqueles desenhos por vezes chamavam sua atenção de uma forma negativa. Ele justifica, no entanto, que a tatuagem naquela época – década de 90 – realmente preponderava entre pessoas com antecedentes e a maioria era feita nos presídios. “Traduzindo numa linguagem popular: ficávamos com um pé atrás.” Todavia, enfatiza que estas impressões nunca afetaram a postura da instituição de uma maneira geral. Para ele, o cenário é diferente hoje, e este discurso perde cada vez mais sua força.

Após a disponibilização e divulgação na internet, a cartilha do Capitão Alden popularizou-se e despertou o interesse não só daqueles envolvidos com os estudos da tatuagem, mas também a curiosidade de internautas comuns. Os downloads da cartilha já ultrapassam a marca de um milhão e a página do capitão Alden já quase alcança também este mesmo número de likes.

Sob a mira de milhares de olhares inexperientes e curiosos, surge a dúvida se esta não seria mais uma fonte de estigmatização, já que é possível controlar a conduta de polícias em patrulha, mas não a conduta, os discursos e o surgimento e perpetuação de preconceitos da sociedade.

Jorge Luiz Werzbitzki, perito que também estuda tatuagem criminal, defendeu em entrevista ao portal G1 a divulgação destes estudos, afirmando que, saindo do âmbito científico e chegando até a população, eles podem ser uma forma desta se precaver.

O que resta é saber até que ponto a suposta segurança de alguns vale a discriminação de tantos outros.

Arte e direito de expressão

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional que candidatos a cargos públicos sejam eliminados de concursos por conta de suas tatuagens. A decisão decorreu do processo aberto em 2009 por Henrique Carvalho, eliminado de um concurso de bombeiros da Polícia Militar por possuir a tatuagem de um mago na perna.

Embora sem justificativas plausíveis, não é preciso mais do que algumas conversas casuais com pessoas tatuadas para entender por que somente agora, em 2016, essa decisão foi tomada.

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Montagem de fotos retratando a arte da tatuagem no Brasil, exposição “A Arte na Pele” (Foto: Taís Ilhéu)

Tamara Yamada relembra das ocasiões em que foi rejeitada de vagas de emprego por conta de suas tatuagens. “Até me disseram que eu tinha uma boa experiência na área,  mas que a minha aparência “modificada” não poderia ser aceita pela empresa deles.” Embora ciente do preconceito que sofreria, este nunca foi motivo suficiente para que escondesse suas tatuagens. “Já fiz entrevistas de emprego com tatuagem e piercing a mostra e me negaram a oportunidade exatamente por nem tentar ocultá-las.” O preconceito apareceu inclusive nos empregos que já ocupava há anos, onde chegou a ouvir de algumas pessoas que suas tatuagens não passavam a confiança necessária para a área em que estava.

Para Tamara e tantos outros, o encanto pela arte na pele parece ser mais forte do que estas barreiras sociais. Leonardo Lucas interessou-se por tatuagem por volta dos 10 anos. Aos 11, era tatuado, e aos, 15 tatuador. O maior receio à época era a opinião familiar: “Minha família sempre foi bem preconceituosa em relação a isso, e pela minha idade, ia ser bem complicado eles aceitarem”. Quando decidiu se tatuar, aceitou que as críticas viriam e passou a lidar com elas passivamente, sem concordar ou contestar. Todavia, nunca sentiu da mesma forma que Tamara a rejeição do mercado de trabalho, já que sempre atuou como tatuador.

Quanto ao valor simbólico, Leonardo não hesita em afirmar sua amplitude. Tatuagem, para ele, é resistência, forma de expressão e até mesmo moda. Tamara é um pouco mais restritiva, e acredita que hoje ela está muito mais relacionada à estética. Não que isso a diminua ou desmereça, até porque existe uma estrita relação com valores  e experiências pessoais muito fortes. “Vemos muitas mulheres com câncer de mama podendo reconstituir suas mamas com a tatuagem, e vemos pessoas cobrindo suas cicatrizes.”

A força da tatuagem ao longo das gerações, independente de uso e significado, reflete o que há de mais rico e complexo na própria humanidade. Na falta de definições, emprestemos a de João do Rio, que, em um de seus momento de poeta, afirmou que “a tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões”.

 

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