Você já pensou no que acontece com um corpo encontrado em uma investigação policial? Às vezes, basta olhar para identificá-lo. É possível comparar digitais ou testar DNA para comprovar a identidade. Mas existem casos em que um corpo só é encontrado depois de semanas, meses ou anos. Quando isso acontece, surge um novo problema: como identificar um cadáver em estado avançado de putrefação ou que já tenha se tornado uma caveira? E é aí que entra a ciência forense e a arte também, em casos em que é utilizada a reconstrução facial.
Os profissionais de antropologia e odontologia forense ou legal atuam no processo de identificação dos cadáveres. Eles são capazes de determinar a origem dos restos mortais e ajudam a identificar vítimas de acidentes, homicídios, guerras ou desastres, algumas vezes contando com artistas capazes de, a partir de informações determinadas pelos cientistas, reconstruir feições humanas de pessoas que não estão mais entre nós para que seja possível identificar o indivíduo.
“O crânio é uma das partes do esqueleto que oferecem mais segurança para os peritos forenses na busca da informação quanto ao sexo, a idade, a ancestralidade e a estatura do indivíduo a ser estudado”, afirma o professor Eduardo Daruge Júnior, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da UNICAMP.
Nos Estados Unidos, uma parceria entre equipes forenses e a New York Academy of Art, instituição de ensino superior em artes, tem como objetivo ensinar estudantes de artes plásticas a reconstruir rostos a partir de crânios encontrados sem identificação e informações como o gênero, idade e ancestralidade do indivíduo fornecidos por peritos. O objetivo é ajudar a recuperar as identidades desses corpos para que eles possam ser reconhecidos por familiares que continuam à procura de seus entes queridos desaparecidos.
O processo é feito com argila e técnicas de reconstrução que simulam os músculos da face e a pele sobre eles, ensinadas pelo especialista Joe Mullins. Os alunos aprendem a formar os músculos e a pele do rosto sobre réplicas bastante realistas e em três dimensões feitas a partir dos crânios escaneados.
Em 2015, o curso possibilitou que 11 ossadas investigadas em Nova York fossem identificadas e, em 2016, os estudantes reconstruíram os rostos de soldados da Guerra Civil estadunidense do século XIX. Em 2018, a escola de artes se associou aos profissionais forenses do condado de Pima no Arizona, fronteira dos EUA com o México, para identificar as ossadas de migrantes que acabaram morrendo ao tentar atravessar a fronteira. E, no início deste ano, os alunos trabalharam na reconstrução facial de crânios vindos do Canadá.
Uma outra técnica utilizada para a reconstrução facial forense é o design gráfico. No Brasil, um dos profissionais mais amplamente reconhecidos na área é Cícero Moraes. Autodidata, sempre com interesse pelas artes, ele aprendeu sozinho muitas das técnicas que hoje utiliza para reconstruir crânios usando softwares, tendo reconstruído faces de humanos de milhares de anos atrás, personagens históricos e, com a permissão do Vaticano, santos da Igreja Católica.
“Comecei a estudar a reconstrução facial forense em 2011 depois que fui assaltado e reagi a dois ladrões armados”, Cícero conta. Depois da situação traumática e que resultou em um tiro de raspão na cabeça, ele teve depressão e passou dias em casa com medo de sair. Tentando manter a mente ocupada, aprendeu sobre diversos assuntos de seu interesse, entre eles a reconstrução facial forense.
“Entrei em contato com um pessoal da Itália que apreciou os resultados iniciais e me convidaram para participar de um projeto com eles. Três anos se passaram até que eles me incumbiram de uma tarefa muito honrosa, reconstruir a face de Santo Antônio de Pádua, isso em 2014.” De lá pra ele reconstruiu mais de 70 figuras históricas, religiosas e da evolução humana.
“Designer brasileiro reconstrói face sem saber que era de Santo Antônio”, matéria exibida pela Rede Globo.
A reconstrução facial é útil para objetivos que vão além da investigação criminal. Um deles, por exemplo, é descobrir qual seria a verdadeira aparência de personagens históricos que viveram há séculos atrás. Cícero Moraes atuou nas reconstruções de Dom Pedro I, além Santo Antônio de Pádua, por exemplo, cujos restos mortais permanecem guardados.
“Cabe salientar que a reconstrução facial é uma técnica auxiliar de identificação dada a sua subjetividade. Não se pode positivar uma identificação baseada apenas em uma reconstrução facial”, adiciona o professor. Segundo ele, antes de recorrer à reconstrução facial, considerada um método secundário de identificação, o perito deve tentar os meios primários, que podem ir além dos exames comparativos de impressões digitais e dentes.
“Muitas vezes os exames de imagens como radiografias, tomografias e/ou ressonância magnética podem ser utilizados como método de identificação primário. O mesmo ocorrendo com as placas cirúrgicas, desde de que devidamente registradas e que forneçam dados objetivos para o processo de comparação.” Só quando todas essas possibilidades forem esgotadas, o perito recorre ao exame de DNA, por seu custo mais alto e maior tempo de espera pelos resultados.
O passo a passo
Em seu Manual de Reconstrução Facial 3D Digital, o designer descreve algumas formas possíveis de “portar uma caveira para o computador”. Uma delas é a tomografia computadorizada, que gera uma série de arquivos com imagens de cortes do objeto em questão incluindo os dados do paciente e a distância entre os cortes.
Através das imagens geradas pela tomografia, é possível identificar que as partes mais claras da imagem representam o tecido mais duro, os ossos. A partir daí, pode-se usar o software para filtrar as partes de interesse e gerar uma malha 3D com apenas a massa desejada. É assim que se obtém uma tomografia em três dimensões de um crânio, base para a reconstrução facial, como mostra a imagem a seguir.
Também é possível obter os moldes do crânio em 3D a partir de fotografias, caso a tomografia não seja possível. É importante, porém, que as fotos sejam tiradas em um ambiente com iluminação controlada e que o foco de iluminação permaneça o mesmo em todas elas. Essa técnica é chamada fotogrametria e também pode ser realizada por vídeo, sendo ele gravado nas mesmas condições descritas para as fotos.
Mas nem sempre o crânio se encontra em condições perfeitas. Muitas vezes, ele acaba sofrendo mudanças devido ao tempo ou condições às quais foi exposto. Caso a mandíbula tenha se movido, por exemplo, é importante que o artista a posicione de forma que os dentes superiores e inferiores se encostem, antes de começar a adicionar camadas à face.
Enfim, começa a reconstrução propriamente dita. O processo digital é feito utilizando diversos softwares, cada um com uma especialidade, mas que “conversam” entre si para alcançar o resultado completo com a estrutura da face, pele, olhos e cabelos.
Para a estrutura da face, começa-se posicionando os olhos e os músculos. São várias as técnicas possíveis: método americano, russo ou o chamado Manchester, inglês. Depois, escolhe-se um dos três métodos possíveis para modelar os músculos. Um dos fatores importantes para a reconstrução, que depende do método escolhido, é a modelação dos lábios, olhos e sobrancelhas.
Depois de posicionados os músculos, é hora de adicionar a pele, que é basicamente uma camada de textura posta sobre as anteriores. É claro que características como a cor da pele, o formato dos olhos, lábios, nariz, etc, vão depender de estudos sobre o crânio. A partir dessas características determinadas, o artista pode trabalhar pintando as áreas da forma que achar melhor para trazer o rosto à vida.
“O especialista indica uma tabela de espessura de tecido mole, que define qual será a “altura da pele” em determinadas partes do rosto. Para fazermos a estrutura do nariz é necessário traçar algumas linhas usando os próprios ossos da região. Os olhos são inseridos conforme a anatomia e a orelha é projetada utilizando a sobrancelha e a base do nariz como referências.”, explica Cícero.
Com a pele feita, o último passo é adicionar os cabelos e o resultado deve ser algo assim:
Sobre os possíveis motivos pelos quais as técnicas e possibilidades da reconstrução facial forense não são tão conhecidas pelo público brasileiro, nem postos em uso em casos como a identificação de cadáveres de possíveis desaparecidos, Cícero respondeu: “Pelas referências que tenho levantado, o que acontece no Brasil é uma concentração da discussão no meio acadêmico, geralmente sem muita comunicação com a mídia, ao contrários dos Estados Unidos, onde são criadas séries e reportagens acerca de casos envolvendo reconstruções faciais forenses.” Ele vê que, com a crescente popularização da computação gráfica em 3D, o cenário pode mudar, trazendo à superfície conhecimentos que através da ciência já são bastante robustos.