A arte é como a brincadeira de telefone sem fio. Quando um diz uma coisa, pode ser que o outro entenda outra coisa. Quando um artista faz uma obra, há milhões de interpretações e entendimentos possíveis. Quando a obra é finalizada, ela deixa de pertencer ao artista e ao que ele queria dizer, passando a pertencer ao mundo. Assim, a obra significa uma coisa diferente para cada um e a própria experiência da arte (e da arte na pandemia) também passa a ser única, subjetiva.
Vivenciamos uma fase em que o mundo da arte está se esforçando para adaptar sua dinâmica ao isolamento. Museus estão produzindo tours online, artistas estão leiloando suas obras em sites e as pessoas comuns estão consumindo cada vez mais cultura através da televisão e da internet. Ouve-se muito dessas adaptações, mas pouco se fala sobre o ensino e o estudo da arte durante a pandemia.
Por esse motivo, decidi investigar o que alunos, professores e artistas têm a dizer sobre o assunto. Compilei sete experiências distintas e singulares para responder a algumas perguntas. O que mudou? O que foi perdido?
Como era a dinâmica de aula antes da pandemia?
De acordo com alunos de Artes Visuais da ECA-USP, as aulas eram integrais, já que muitos utilizavam os espaços da própria faculdade e o tempo livre da grade horária para produzir seus trabalhos. “Ficava o dia inteiro lá no ateliê conversando e produzindo”, afirma Marina Rizzi, uma das estudantes. Além disso, toda aula possuía um mínimo de base teórica, inseparável da prática que era avaliada na
forma de projetos. Quando chegava a hora de apresentá-los, todos se reuniam e discutiam como havia sido o processo criativo e o resultado. Marina e Isabela Loures, outra aluna da ECA, estavam para começar um programa de iniciação científica. Ambas sentiam-se sobrecarregadas com o tempo demandado pela atividade unido aos estágios e aos trabalhos da própria graduação. Marina procurava forças e inspiração nos cafés da manhã diários compartilhados com sua turma no “bandejão” da USP.
Já as professoras de artes de uma escola privada alemã, Susanne Staudhammer e Grit Nindel, encontravam alívio para o estresse do trabalho, de 7 e 12 aulas semanais respectivamente, com o próprio contato com os alunos. Além disso, direcionavam seu tempo livre para desfrutar de atividades voltadas à cultura brasileira, como aulas de forró.
Como é a dinâmica das aulas durante a pandemia?
Todos os estudantes universitários com os quais conversei, estão tendo metade ou menos da metade das aulas que teriam em condições normais. De acordo com o coordenador do curso de Artes Visuais da USP, Marco Buti, de quarenta disciplinas, dois foram canceladas, cinco estão sendo ministradas online e o resto aguarda reposição presencial prevista para o início de 2021. Na escola privada alemã, o número de aulas continua o mesmo para os alunos, mas como uniram as salas para o lecionamento online, esse número diminuiu em 50% para os professores.
E as aulas de ambas instituições estão, naturalmente, sendo muito mais expositivas do que eram. Por vezes, a união entre prática e teoria é rompida, algumas disciplinas sofrem com a perda de discussões e as próprias apresentações dos trabalhos ficam severamente prejudicadas. “É bem diferente você olhar a foto de uma pintura e olhar a pintura em si. Até porque a exposição de projetos envolve muito o material, a textura, o tato”, declara Marina. Marcos de Oliveira, um terceiro entrevistado, concorda e alega que é como se houvesse “uma camada de photoshop entre você e a obra”. O momento de choque de entrar numa sala e se sentir tocado por uma obra é arruinado. E esses problemas vêm com o pressuposto de que foi possível realizar o trabalho.
Muitos alunos não têm acesso aos materiais necessários e a produção fica, portanto, muito restrita. “Não tenho um forno de cerâmica em casa, um laboratório de fotografia. Tem muita coisa que a gente quer fazer, que o professor quer que a gente faça, mas a qualidade fica prejudicada”, narra Marina. Além disso, os solventes de tinta e os pigmentos podem chegar a ser tóxicos em ambientes fechados. Dificuldades digitais também surgem: alguns alunos não têm uma conexão boa com a internet, os professores não têm familiaridade com as plataformas, as notas parecem desconectadas do trabalho, uma vez que os professores não têm mais contato com o processo criativo, etc.
E tudo isso resulta numa aula de artes de baixa qualidade. De acordo com Grit, “não existem aulas online boas” e a “escola que existia, já não existe mais”. Os alunos ficam nos seus “quadrados impessoais” com suas câmeras desligadas e a relação professor-aluno é integralmente abalada. Tanto Grit quando Susanne confessam que ficam mais abatidas pelo cansaço e que se as aulas fossem online para sempre, mudariam de profissão.
Como o processo criativo muda com o isolamento?
Raul Pacheco é psicanalista e professor da PUC-SP. De acordo com ele, e com a psicanálise freudiana lacaniana, “o sujeito se origina na linguagem e se constitui a partir da linguagem”. Como consequência, é falando que criamos e apreendemos o mundo, e a arte tem um papel essencial nesse mecanismo. No campo particular, sensorial e emocional, “a arte sempre foi a forma dos seres humanos de interrogarem o mundo na sua concepção mais ampla”. Assim, “a obra de arte é a criação do artista convidando outros seres falantes para participar dessa contemplação, dessa expressão”.
A arte é, portanto, a criação, a criatividade, aquilo que nos diferencia dos outros animais. Porém, o porquê de algumas pessoas terem maior facilidade nessa criação e as causas que influenciam tal procedimento são um mistério. De acordo com Elisa Zaneratto Rosa, psicóloga e doutora em psicologia social pela PUC-SP, nossa possibilidade de criação depende inteiramente de nossa relação com os outros, porque, no cerne, é “a vida que nos inspira”. Logo, se todos têm experiências distintas, é natural que tenham também inspirações, motivações e gatilhos diversos quanto à criatividade e à produção artística.
E é por essa razão que a inspiração de algumas pessoas tenha mudado de fonte durante a pandemia. Anteriormente, Marina era muito influenciada criativamente por sua “experiência visual, daquilo que tenho contato, daquilo que vejo”, por seus amigos, suas viagens, mas agora procura estímulos em fotos do celular e na internet. Enquanto isso, Marcelo Yamanoi, outro aluno de Artes Visuais, não observa nenhuma mudança no seu trabalho: “está mais em mudar uma rotina de pensamento do que mudar a inspiração em si”. E Claúdia Kiatake, uma artista plástica, está produzindo um trabalho com a temática de velas e outro com uma técnica japonesa de pintura. Ambas chamam para a reflexão e para a meditação, atividades que ela visa desenvolver durante a quarentena.
E a produção artística feita durante a pandemia também deve ser pensada inseparavelmente do estado mental dos artistas e do estado de espírito generalizado da sociedade.
Como o psicológico pode influenciar as obras feitas durante a pandemia?
Segundo Raul Pacheco, a maior fonte de trauma dos tempos atuais é a incerteza. Estamos todos estressados, ansiosos e angustiados, porque nos deparamos com um problema para o qual não há uma resposta e uma tecnologia prontas. Não há nenhum meio programado para lidar com a epidemia do coronavírus. E “essa situação abate algumas pessoas, angustiam outras pessoas, mas algumas ficam mergulhadas nisso, outras a partir disso criam coisas novas”.
Portanto, é lógico que algumas pessoas como Marina e Isabela estejam bem mais relaxadas aproveitando seu tempo livre para voltar a se debruçar sobre hobbies que tinham deixado de lado, mas outras, como Marcelo e Marcos, não tenham vontade e disposição para produzir.
Todos lidam como podem com os tempos obscuros de agora. E todos procuram as válvulas de escape que conseguem. Marina está voltando a fazer ilustrações e faz chamadas por vídeo todas as semanas com os seus amigos para pintarem juntos e “lembrar um pouco da sensação que era estar dentro do ateliê conversando”. Marcos, Isabela e Grit estão aproveitando para pesquisar mais sobre arte, assistir a documentários e se informar.
E o que será da arte agora?
O que é arte? O que faz a arte? À princípio perguntas simples, mas difíceis de responder. “Arte é um desejo e um incômodo”, “arte é vício, um outro jeito de você falar”, “arte é a projeção de uma ideia”, “arte é uma forma de entender o mundo por meios estéticos”. Essas foram algumas das respostas que escutei.
Se a quarentena, o isolamento social e a pandemia nos afetam, irão afetar a arte também. Afinal, é o ser humano que cria a arte. Porém, o cerne, o significado, o âmago artístico permanecem e permanecerão inalterados. As guerras sempre vieram acompanhadas de quadros e obras tão importante quanto àqueles que foram produzidos durante a paz. Logo, a arte continuará a preencher seu papel – o qual é distinto para cada um.
Mas se fosse para nomear uma mudança no mundo da arte durante a pandemia é que “o mundo está vendo o que é ter uma vida de artista”, segundo Cláudia. “É uma vida sem chão, sem segurança”.