Sob o nome U.S. Girls, Meghan Remy escreve e produz música desde 2007. Seus temas têm sido relativamente constantes (e importantes) desde sempre, mas ultimamente têm se encaixado mais nas pautas sociais e culturais presentes na mente coletiva. A vivência feminina em todos seus aspectos – assim como a vivência humana no geral – são um forte âmbito de suas composições. De uma forma mais introvertida por um tempo (e talvez um pouco claustrofóbica), Remy descarregou insatisfações e sentimentos intensos em suas composições.
Inspirações mais antigas rondavam a psicodelia e um som relativamente mais experimental, que continua presente em metamorfose explosiva no projeto de 2018. In a Poem Unlimited é pop, mas é um pop subvertido, deturpado, bem trabalhado e polido. Não deixa a desejar com batidas infecciosas, mas a sonoridade alegre serve de camuflagem para letras densas e expositivas. O termo pop pode, inclusive, ser uma categoria sem abrangência o suficiente, uma vez que o álbum explora tantos caminhos que a sua produção é de riqueza muito grande, posicionando-o como um destaque para o gênero no que vai de ano. Essa versatilidade, porém, não se desvia com tanta facilidade para criar uma obra pouco coesa, pelo contrário: transições e composições estão muito bem amarradas, e muitos aspectos se repetem ao longo do álbum. Remy deixa sua marca característica em diversas faixas, dando ao projeto um tom 100% autoral.
Músicas introdutórias são importantes em álbuns porque costumam ser uma primeira abertura para o que esperar – e não sempre causam uma boa primeira impressão. “Velvet 4 Sale” é uma ótima evidência do que o álbum conterá, e logo de cara traz uma explosão de marcas que se tornarão chave para o disco. Tonalidade meio psicodélica, vocais suspirados que transportam para uma dimensão etérea abraçam uma letra afirmativa: a voz da música ensina uma garota como – efetivamente – matar seu alvo masculino. Tiro certeiro na exemplificação da vivência feminina, o solo de guitarra no final serve como uma ácida declaração melancólica.
“Rage of Plastics” a segunda da lista, segue a sequência sonora, mas agregando um tom mais soul, transportando o ouvintepara um cenário que, fosse tomar vida, poderia ser ambientado no sul dos Estados Unidos, mistura que lembra o som antigo clássico mas o futuriza com sucesso graças aos seus sintetizadores distorcidos e mais um belo solo instrumental. Uma clara irmã da primeira, “Rage of Plastics” abrange outra tonalidade e é um aumento de expansão que vai continuar pelo resto da lista.
O leque começa a se abrir cada vez mais e as influências são incontáveis. “M.A.H.” chega a transmitir uma energia que remete à época de reavivamento do ska (gênero jamaicano com mistura de ritmos caribenhos e estadunidenses) nos anos noventa. As faixas são auxiliadas pela voz fina de Remy, que não poderia ser melhor acompanhamento para a atmosfera do álbum (e inclusive lembra a de uma Gwen Stefani adolescente com No Doubt ainda fiel ao próprio ska).
“Rosebud” (uma referência mais-que-direta a Cidadão Kane) possui letra introspectiva sobre autocontrole, autoconfiança e descobrimento pessoal. A música convida a explorar os cantos mais internos do ser, aqueles que doem. A cantora não distorce ou glamouriza a dor – mas enfatiza – “vai doer, eu prometo”. Outro teletransporte geracional e de gênero, a canção incorpora influências de uma eletrônica e R&B que lembram Sade e passam por perto de Björk em uma década de noventa com nostalgia para o glam dos anos 70. Outro acerto em cheio.
Um dos pontos mais elevados do álbum – talvez o maior – chega em “Pearly Gates”. Esse auge vai desde a congregação impecável de diversidade na produção até a metáfora complexa e irônica da sua letra. A começar pela sonoridade, a música é talvez a maior e mais prazerosa viagem do disco: uma batida que recorda o hip-hop primordial da década de oitenta e noventa e dialoga fortemente com o funk da de sessenta, ainda conversando com o glam de cores vibrantes da era disco. A letra é construída em torno da aparição de São Pedro nas “portas do paraíso” (retratado com exuberantes cores neon no videoclipe), que mais serve para evidenciar cruamente o contexto sociocultural responsável por imprimir um complexo de inferioridade ao feminino, no geral. A letra surgiu de uma anedota entre duas pessoas, em que o homem tenta convencer a mulher a fazer sexo sem proteção. “Never, never be safe / even if you’re in the Gates / Give it up, you’re just some man’s daughter”. Prestes ao fim, a extrapolação sentimental mais uma vez ganha auxílio da fina voz de Remy, que com entoação pungente e repetida se encarrega de mostrar indignação sem amarras.
A finalização do disco é ao mesmo tempo o último grande golpe – 8 minutos de explosão – e ainda assim com ritmo muito acelerado, começando pela incorporação da percussão ao fundo, os já marcantes solos de guitarra extensos e um baixo que retoma o funk vibram com uma ansiedade e rapidez que falam diretamente com o título da música, “Time”. Em meio às diversas inserções, encontra-se o momento para a entrada de sax epiléptico que mais uma vez envolve a nostalgia clássica mas que conta com efeitos distorcidos e rugosas cordas de guitarra. A finalização é tão marcante que deixa com uma certa sensação de espera e ansiedade por mais, certamente outro ponto altíssimo de todo o álbum e que serve para um término digno de reconhecimento.
In a Poem Unlimited é um álbum sobre o viver, mais precisamente o viver que dói, mas também é um transporte a diversos momentos, que consegue juntar sensação, composição e produção de maneira épica. Cru, exposto, mas muito bem polido e refinado, não passa a impressão de pontas soltas. Consegue ser delicado ao mesmo tempo em que é robusto e denso em questão de crítica e politização do discurso através de narrativas musicais. É melancolia e sofrimento dançantes, porque nada mais puro do que a efervescência de sentimentos que uma boa batida pode provocar.
Por Daniel Medina
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