Jornalismo Júnior

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Russa, brasileira, alemã, apátrida… Tudo e nada: Elke

Ícone da moda, atriz, cantora e presa política, não faltam histórias sobre Elke Maravilha, que hoje completaria 79 anos
Por Nicolle Martins (nicollems@usp.br)

“Ela é um personagem difícil de definir ou resumir”

– Marilia Gabriela, De Frente com Gabi

No ano de 1945 nasceu, na Alemanha, Elke Georgievna Grünupp, filha de um russo e de uma alemã. Anos depois, no Brasil, a pequena criança loura se tornaria modelo, referência de moda, jurada de programas de televisão, atriz e, às vezes, até cantora. Tudo isso foi reunido em um codinome: Maravilha. 

Elke Grünupp ainda criança [Imagem: Arquivo pessoal/Elke Maravilha]

Era 1948 e a Europa estava devastada. Três anos após o fim da Segunda Guerra, a fome e o desemprego assolavam os países que participaram do conflito. Apesar disso, uma  família em específico tinha mais motivos para estar ali. Em 1939, George Grünupp, jovem russo de então 23 anos que se tornaria pai de Elke, se juntou ao exército na Guerra do Inverno, que começou com um ataque da União Soviética contra a Finlândia. Mas George não estava com os soviéticos: ele batalhou do lado finlandês.  

Ferido em batalha, George foi mandado para um centro médico em Freiburg, cidade alemã que faz fronteira com a França e tinha parceria com a Finlândia para tratar seus feridos. Foi ali que George e Liezelotte se conheceram. Curado, o soldado não voltou às batalhas e passou cinco anos morando na cidade, onde se casou com Liezelotte. A felicidade matrimonial não durou muito além de um ano.

Em 1940, o Tratado de Moscou foi assinado entre a União Soviética e a Finlândia, dissolvendo a guerra entre os dois países. Com isso, a proteção de George acabou e ele se tornou oficialmente traidor da pátria russa. George se manteve longe dos radares por quatro anos, até que foi encontrado e enviado para o Gulag, um campo de trabalho forçado na Sibéria. Liezelotte estava grávida de três meses quando seu marido foi preso. 

Em 22 de fevereiro de 1945, há exatos 79 anos atrás, nasceu Elke Georgievna. O segundo nome escolhido foi uma forma de homenagear seu pai,  pois significa, em russo, “filha de George”. Já “Elke” tem origem viking e remete ao nome de um animal, o veado. Segundo Elke Maravilha para seu biógrafo, Chico Felitti, “Pros antigos vikings, é aquele veado enorme. Eu já nasci um viadão, um viadão viking”. 

Quando Elke tinha três anos, seu pai saiu da prisão e foi para a Alemanha encontrar a esposa e a filha. Liezelotte e o marido decidiram, nessa situação, fugir da Europa. Em 1948, os planos foram frustrados novamente, por George ter sido preso ao cruzar a fronteira da França e enviado para a União Soviética. A salvação de George foi ninguém mais ninguém menos que ela: sua filha. 

História de como Elke conheceu seu pai em trecho de Elke: Mulher Maravilha, biografia escrita por Chico Felitti, [Imagem: Arquivo Pessoal/Nicolle Martins]

Durante uma visita a George, Liezelotte, sabendo que seria revistada, colocou um revólver escondido nas roupinhas da pequena Elke. “Conta a lenda familiar que foi a primeira atuação de Elke: quando  o agente estava prestes a encostar na menina, ela estendeu os braços e beijou o rosto do guarda. Enternecido, ele não revistou a criança, que entrou com o revólver.” É o que narra Chico Felitti em Elke: Mulher Maravilha (Todavia, 2020).  

Com ajuda da esposa e da filha, George conseguiu fugir, e eles se encontraram com seus pais na costa francesa, onde embarcaram para o Brasil e vieram parar na Ilha das Flores. 

O Brasil a acolheu

A Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores, na Baía de Guanabara, foi construída em 1883 para abrigar os imigrantes que chegavam ao Rio de Janeiro para trabalhar. A escolha do local da hospedaria foi estratégica. A Ilha das Flores era perto o suficiente do porto do Rio de Janeiro e isolada o suficiente para manter em quarentena os imigrantes que chegavam e poderiam trazer doenças. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, mais de 50 mil refugiados chegaram ao Brasil pela ilha.

Placa do Museu da Imigração da Ilha das Flores, que fica em São Gonçalo, Rio de Janeiro [Imagem: Reprodução/oestrangeiro.org]

Em 3 de janeiro de 1949, desembarcaram na Ilha das Flores um homem, uma mulher e uma criança. Eles eram Georg, Lieselotte e Ilga Grunupp, vindos da França. Esses registros foram escritos de maneira equivocada. Os Grünupp eram, na verdade, George, Liezelotte e, o nome mais alterado, Elke. 

Após uma vistoria rigorosa e o registro – com os nomes errados – a família agora tinha um novo problema: sair da Ilha das Flores. Apesar das três refeições diárias e do espaço para dormir, não era um lugar exatamente aconchegante, pois o intuito era que fosse temporário. George logo começou a procurar um emprego e enviou um anúncio no jornal inglês Brazil Herald, no qual ofertava seus serviços como agrônomo. Quatro meses após a chegada, os Grünupp partiram para sua nova casa: uma fazenda em Itabira, Minas Gerais, onde George trabalharia. Esse foi o início da história da família que vinha de vários lugares, mas agora se declararia brasileira com orgulho. 

Questões de nacionalidade

Durante toda sua vida, Elke disse em entrevistas que era russa. Sempre que a questão sobre de onde veio a loira de quase um metro e oitenta era levantada, a resposta dada era: São Petersburgo, a antiga Leningrado, Rússia. Tal como Raul Seixas, que moldava a realidade para entregar histórias interessantes, Elke contava seus causos com orgulho, e nem sempre falava a verdade. Assim aconteceu com sua nacionalidade. O certo é que Elke nasceu em Leutkirch, na Alemanha. 

A exposição dessa mentira veio na biografia Elke: Mulher Maravilha, de Chico Felitti. O jornalista, que recebeu críticas por sua afirmação, buscou a certidão de nascimento de Elke e entrevistou seu irmão, George Grünupp Filho. Ambos os elementos provaram que a nacionalidade de Elke foi contada de forma equivocada ao longo de toda a sua vida. 

Comentário de avaliação no livro Elke: Mulher Maravilha de Chico Felitti na Amazon [Imagem: Reprodução/Amazon.com]

“Elke criou um personagem um personagem para si mesma, e o levou adiante até sua morte”

– Chico Felitti (Elke: Mulher Maravilha, Todavia 2020, p.15)

Em entrevista para Marília Gabriela no De Frente com Gabi em 2013, Elke não fala sobre ser alemã. Ao contar a história da família, destaca todos os diversos países de onde vieram seus familiares, mas desvia ao falar de si mesma: “Veio [refugiado para o Brasil] meu avô paterno, que era mestiço de azerbaijani com viking, minha avó paterna, que era mongol da facção dos tartar, minha mãe que era alemã, meu pai que era russo e eu, que não era nada”. 

Posteriormente , ao narrar a saída da família da Ilha das Flores, ela foge de se autodeterminar mais uma vez: “Meu pai escreveu para um jornal chamado Brazil Herald, dizendo que ele era russo, minha mãe alemã, e eu… pequena”. No vídeo, ela gagueja na última parte, como se buscasse em si palavras para se descrever. A verdade é que, quando deu essa entrevista, Elke já não era alemã, russa ou sequer brasileira. Elke era apátrida, como seu pai um dia foi.

Elke de frente com Gabi, de quem pareceu íntima na entrevista em 2013 [Imagem: Reprodução/SBT]

Lá vem ela, na passarela

Aos 17 anos, Elke passeava pelo centro de Belo Horizonte quando foi abordada por um homem com uma proposta curiosa: participar de um concurso de beleza. A essa altura, ela já havia se mudado algumas vezes: tinha morado em Bragança Paulista (SP), Atibaia (SP), Rio de Janeiro (RJ) e, em 1962, estava de volta a Minas Gerais, quando recusou a proposta para o concurso.

O homem em questão era Eduardo Couri, o criador do concurso Glamour Girl, que buscava coroar a jovem mais glamourosa da capital mineira. Couri investigou e encontrou o endereço de Elke, onde foi falar com sua mãe. Liezelotte achou que seria uma boa ideia, e incentivou a filha. Foi assim que, menos de dois meses depois, Elke foi eleita Glamour Girl Belo Horizonte 1962. 

Um de seus triunfos, que mais impressionou os jurados, foi seu talento em falar  oito línguas. Quando cumprimentou a plateia em russo, alemão, francês, grego, latim, italiano e espanhol, o público foi à loucura. Mesmo coroada, sua vida seguiu normal por alguns meses. Elke continuou a estudar e dar aulas de idioma.

No final daquele mesmo ano, Eduardo Couri voltou para a vida de Elke com um novo convite: a participação no concurso Rainha Brasileira do Café. Couri dizia que essa era uma oportunidade que poderia levá-la a viajar pelo mundo.

Elke ficou entre as cinco finalistas, mas perdeu para a representante de Londrina, Andréa Vasconcelos. Apesar disso, a projeção de ter participado do concurso a elevou para outras oportunidades: o cineasta Louis Serrano a convidou para participar do filme Bossa Nova, que acabou não sendo lançado, mas Elke também virou capa da revista Manchete.

Quase invisível, o nome de Elke aparece na lateral esquerda da capa [Imagem: Divulgação/Manchete]

Uma viagem e um sonho

Elke tinha um sonho que não incluía vida artística. Ela queria ir para Cuba plantar bananas, pois estava apaixonada por Che Guevara. Em 1965, após fazer um teste de aptidão que indicou que ela combinava com o curso de Medicina, Elke se dedicou e passou na Faculdade de Medicina Federal do Rio Grande do Sul, pois estava morando em Porto Alegre. O problema com a faculdade de medicina não foi o curso, mas os colegas. Elke dizia que eles “tinham o rei na barriga” e o ambiente de estudo não era legal. Então, a jovem abandonou o curso.

Quando George Grünupp ouviu da filha que ela abandonou a faculdade e queria ir para Cuba, imediatamente fez uma contraproposta. O problema, segundo ele, não era viajar para o país americano, e sim viajar sem antes conhecer suas origens, na Europa. Foi assim que Elke acabou em um navio em direção a Gênova, na Itália. Ali, Elke Grünupp conheceu o grego Alexandros Evremidis, que lhe daria seus outros dois nomes: Elke Evremidis e Melissa Vassiliki. Alexandros tinha como destino final a Suíça, e Elke, a Alemanha. Nos oito dias no navio, os dois se encontraram e começaram a se envolver. Apesar dos destinos diferentes na Europa, depois de algum tempo fora do navio, Elke e Alexandros se reencontraram na Suíça. 

Elke e Alexandros em seu casamento [Imagem: Arquivo pessoal/Alexandros Evremidis]

O casal viajou pela Europa durante um ano e meio, sustentando-se por meio de pequenos trabalhos. Nesse período, Alexandros escreveu o livro Melissa, uma biografia não autorizada de Elke, a quem ele chamava de Melissa Vassiliki. O primeiro nome significa “abelha” e o segundo “membro da família real”. Elke era uma Abelha-Rainha. Não é possível encontrar a biografia nos dias de hoje, assim como não é possível saber quanto é verdade e quanto é ficção. Elke nunca leu o livro, mas afirmou que tudo o que estava escrito nele era verdade.

Em 1966, o casal voltou para o Brasil, para a casa dos pais de Elke, em Porto Alegre. Alexandros começou a trabalhar como jornalista, escrevendo reportagens para diversos veículos, e Elke passou a cursar Letras Clássicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a trabalhar como recepcionista em um banco. Três anos depois, eles se casaram e foram morar no Rio de Janeiro.

Retorno ao Glamour

“Eu nunca quis ser artista, me enfiaram nessa vida na marra”

– Elke Maravilha (Elke: Mulher Maravilha, Todavia 2020, p. 29)

Novamente, a iniciativa para desfilar não partiu de Elke. Alexandros chegou em casa um dia anunciando que Elke trabalharia para Guilherme Guimarães, um dos maiores estilistas de alta costura da época. O marido de Elke conseguiu o contato e o endereço do homem, e achou que seria uma boa ideia que sua esposa desfilasse para a marca dele. 

Elke pensou em não seguir a ideia, mas a curiosidade foi mais forte e, quando bateu à porta de Guilherme anunciando que já tinha sido miss e gostaria de ser sua modelo, ele não pensou muito antes de aceitar. O desfile ocorreu no hotel mais sofisticado do Brasil, o Golden Room do Copacabana Palace. A elite carioca compareceu em peso, e grandes modelos também. Vera Valdez, importante modelo brasileira e manequim favorita de Coco Chanel, era uma das modelos que desfilavam. Na plateia, Carmem Mayrink Veiga, uma das socialites mais famosas da época, que também era considerada a mulher mais elegante do Brasil, marcava presença.

Ao desfilar, Elke seguiu as instruções: rodou com o vestido, um modelo preto de corte conservador, mas com tecido transparente e parou no fim da passarela com as mãos na cintura. Foi aí que cometeu um ato de rebeldia. Elke abriu um imenso sorriso, depois gargalhou. A plateia ficou em choque e a aplaudiu com ardor. Até hoje, não é costumeiro que modelos sorriam na passarela

É possível ver na imagem pessoas sorrindo junto com Elke ou olhando com curiosidade [Imagem: Reprodução/Autor desconhecido]

“Essa mulher é um jet leg

– Guilherme Guimarães (Elke: Mulher Maravilha, Todavia 2020, p.65)

Depois desse desfile, a carreira de Elke como modelo ascendeu. Ela deixou de ser Elke Evremidis para ser só Elke, porque seus sobrenomes eram muito complicados de anunciar. Ela desfilou para Clodovil Hernandes, Zuzu Angel e Dener, que, junto com Guilherme Guimarães, eram os maiores nomes da moda brasileira. Elke tinha sua própria personalidade como modelo, e só aceitava trabalhos em que pudesse se expressar livremente.

As comparações de Elke com Marilyn Monroe eram grandes. Ela foi capa das revistas inTerValo, da editora Abril, e Realidade, uma das maiores revistas da indústria brasileira, com associações sobre a atriz norte-americana. Não demorou muito para que essa associação fosse cortada, pois o estilo de Elke mudou.

A comparação na revista Realidade aparece de forma mais óbvia, enquanto na inTerValo aparece na legenda [Imagem: Divulgação/Revista Realidade e Revista inTerValo]

Ditadura e resistência

A vida de modelo trouxe para Elke uma grande amiga. Zuzu Angel, para quem já havia desfilado antes. O estilo de Zuzu era provocativo e de resistência. Nessa época, por volta de 1970, o Brasil vivia um dos chamados “anos de terror” da ditadura militar. A repressão política era massiva, os presos e desaparecidos somente cresciam.

Dentre esses desaparecidos estava o filho de Zuzu, Stuart Angel. O jovem era estudante de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fazia parte do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), que participava da luta armada contra a ditadura. Ele foi preso aos 25 anos e, pouco tempo depois, dado como desaparecido. Zuzu fez um protesto internacional por meio de um desfile no consulado brasileiro em Nova York. Todas as modelos vestiam peças que remetiam ao sumiço de Stuart, e a estilista estava coberta da cabeça aos pés de tecido preto, para demonstrar o luto.

Um dos modelos apresentados por Zuzu Angel em seu desfile [Imagem: Divulgação/Instituto Zuzu Angel]

A relação entre Elke e Zuzu era mais amigável que profissional, mas a modelo esteve em muitos desfiles assinados por Zuzu. A proximidade das duas também aproximou Elke de Hildegard Angel, filha de Zuzu, que era atriz. Em 1971, as duas atuaram juntas em O barão Otelo no barato dos bilhões (1971). O papel delas era secundário, mas a fama das duas as levaram a promover o filme na televisão junto com o ator principal, Grande Otelo

No início de 1972, Elke caminhava pelo aeroporto Santos Dumont com Grande Otelo e Hildegard Angel, com quem participaria de seu primeiro programa de TV, o Programa do Silvio Santos. O propósito era divulgar o filme em que os três participaram, que seria lançado em breve. Pelos corredores do aeroporto, as pilastras estavam cobertas por cartazes de “procura-se” com a foto de Stuart Angel. A esta altura, Elke já sabia que Stuart havia sido brutalmente assassinado, pois Zuzu recebeu uma carta do colega de cela do filho descrevendo sua tortura e assassinato. O fato era negado pelos policiais, que o declaravam desaparecido

Elke sentiu raiva. Sua primeira reação foi arrancar um dos cartazes e rasgá-lo ao meio. Imediatamente, dois militares apareceram e perguntaram o que se passava. Ao ser questionada se conhecia Stuart, Elke afirmou que era irmã dele. Os policiais encaminharam Elke para a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), enquanto Grande Otelo e Hildegard, a verdadeira irmã de Stuart, assistiam boquiabertos.

A modelo contou para seu biógrafo que sentiu medo e ouviu histórias horríveis, mas segurou o choro. “Não era a hora de demonstrar sentimento, era hora de eu ser louca”. Elke adotou uma postura de indiferença. Cantou, riu da cara dos policiais e apanhou por isso. Enquanto isso, Hildegard, Zuzu e Alexandros buscaram maneiras de tirar Elke da prisão antes que o pior acontecesse. Juntos, eles mobilizaram um delegado e um cônsul alemão que intercedeu por ela, apesar de afirmar que não podia fazer muita coisa, porque Elke não era alemã. 

Elke foi libertada, mas seus documentos ficaram retidos com a polícia. Mais tarde, um policial tentou devolver seus documentos em troca de dinheiro, mas ela se negou a aceitar. Preferiu ficar sem, assim como escolheu, em 1979, ficar sem a cidadania brasileira ao recusar a Anistia que devolveria a ela seus direitos e limparia sua ficha. Para Elke, a anistia era assumir uma culpa que ela nem sequer tinha. E foi assim que Elke se tornou apátrida. Apenas formalmente, porque, para seu biógrafo, ela disse: “Eu sei que sou brasileira, não é um papel que vai dizer isso, bobinhos. Eram uns coitadinho esses meninos do Dops”.

“Eu acho que tenho que ser apátrida. Foi um apátrida que me pariu”

Elke Maravilha (Elke: Mulher Maravilha, Todavia 2020, p. 59)

O nascimento de Elke Maravilha

No mesmo ano da prisão, Elke foi convidada para participar do Buzina do Chacrinha. O programa trazia pessoas para se apresentarem artisticamente e tinha uma bancada de jurados rotativa, então Elke estava lá como representante de moda. A participação chamou tanta atenção na emissora que ela foi efetivada. Chacrinha, como era conhecido Abelardo Barbosa, foi um dos maiores apresentadores de programas televisivos do Brasil. Na época, o programa era transmitido pela Rede Globo, que não era muito grande. 

“[O Buzina do Chacrinha] Parecia  uma feira livre televisionada. Eram duas horas de puro Brasil”

– Elke Maravilha (Elke: Mulher Maravilha, Todavia 2020, p. 65)

O programa tinha esse nome por um motivo especial: na apresentação dos calouros, quando Chacrinha estava insatisfeito, tocava uma buzina para que eles parassem. Esse foi um dos charmes de Elke, que a destacou na bancada: quando o apresentador buzinava para um participante, Elke, que levava sua própria buzina, também fazia barulho da bancada. Apesar do alcance pequeno da Rede Globo, que era transmitida somente em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e no Rio de Janeiro, Elke ficou bastante famosa e foi convidada para muitos outros projetos.

Elke e Pedro de Lara formavam uma dupla memorável na bancada de Buzina do Chacrinha [Imagem: Reprodução/Rede Globo]

Ao pensar na figura de Elke, o que mais chama atenção é sua forma de vestir e seu cabelo. No programa, isso ficou mais marcado, pois a cada edição ela aparecia de forma diferente, sempre bem vestida. A artista tinha diversas perucas, vestidos, botas e fazia maquiagens grandes e chamativas, o que despertava, já na época, a comparação com drag queens. Até hoje, Elke é lembrada por seus enormes cabelos, roupas e acessórios. Após sua morte, seu enorme acervo de moda foi colocado em exposição por sua família.

“Custei que entendessem que não é fantasia. É assim que eu sou e pronto”

– Elke Maravilha para o Jornal Nacional

Na época em que se tornou jurada frequente, Elke já havia se separado de Alexandros e perdera o nome Evremidis. Chacrinha achou estranho chamá-la só de Elke, e lhe deu o nome pelo qual é conhecida até hoje: Elke Maravilha. Chacrinha e Elke desenvolveram uma ótima relação. Ela, inclusive, o chamava de “painho”, porque via nele uma figura paterna, assim como ele via nela uma filha.

Essa foi a época de ouro na carreira de Elke. Além de sua ascensão no programa de TV, participou de Quando o Carnaval chegar (1972), filme protagonizado por Maria Bethânia, Chico Buarque e Nara Leão, fez shows e até lançou músicas em álbuns de carnaval.

Atores que interpretaram Elke e Chacrinha no filme Chacrinha – O Velho Guerreiro (2018) que conta a história do apresentador [Imagem: Divulgação/Downtown Movies]

Elke atuou em A volta de Beto Rockfeller (1973), uma novela transmitida pela TV Tupi em mais de 21 estados brasileiros. Por conta da grande audiência, as expectativas eram altas, mas a novela não deu certo e foi encerrada antes do previsto. Ainda assim, Elke conseguiu mais visibilidade, e foi convidada para participar do Programa do Silvio Santos, o maior da época.

Silvio Santos e Elke Maravilha tiveram alguns desentendimentos, e o biógrafo de Elke afirma que ele era a única desavença verdadeira da modelo. Em seu programa, Silvio fazia apologia e propaganda aos militares, o que desagradava Elke. A única coisa que a manteve trabalhando para o dono do SBT foi o dinheiro. O orçamento da Rede Globo na época era pequeno e mal conseguia manter o programa de Chacrinha, fazendo com que Elke recebesse às vezes e, em outras, participasse voluntariamente. Sendo  assim, o SBT era uma opção mais lucrativa, mesmo que fosse, segundo a própria Elke, seu pior período de trabalho.

Além do SBT, Elke tinha outras fontes de renda, como o cinema. Ela atuou em A força de Xangô (1978), filme no qual conheceu Zezé Motta, que viria a se tornar uma grande amiga, e com quem atuaria novamente em Xica da Silva (1996), produção que alavancou a carreira de Zezé. A atriz também protagonizou Elke Maravilha contra o Homem Atômico (1978), que não a despertava orgulho e foi rapidamente esquecido. No mesmo ano, fez seu filme mais marcante, A noiva da cidade (1978), com roteiro de Chico Buarque e Humberto Mauro. Foi a atuação favorita da carreira de Elke. De bilheteria, o filme também foi um fracasso, mas quem assistiu diz jamais esquecer, segundo as entrevistas de Chico Felitti em seu livro biografia.  

Elke Maravilha e Zezé Motta [Imagem: Arquivo pessoal/Zezé Motta]

Em 1979, Chacrinha migrou da Rede Globo para a Rede Bandeirantes e levou consigo Elke. Para se dedicar integralmente, ela saiu do SBT. No novo programa, Discoteca do Chacrinha, a dificudade de conseguir artistas para se apresentar era recorrente, então foram promovidos diferentes concursos com temas incomuns, como “a datilógrafa mais rápida” ou “o burro mais bonito do Brasil”. O programa revelou a apresentadora Angélica, na época com apenas 6 anos. Ela foi eleita, em um concurso, a criança mais bonita do Brasil. Elke votou nela, o que foi mencionado pela famosa em 2013, quando Elke participou de seu programa, o Estrelas.

O pagamento na Bandeirantes também não era muito alto, então Elke começou a fazer shows por conta própria, mas não deixou de participar dos programas, nos quais virou quase uma segunda apresentadora. Ela também se arriscou mais uma vez na música. Lançou com a gravadora Chantecler o disco Joia Rara (1983), com duas músicas. Sua carreira como cantora parou por aí. Como outra forma de renda, ela também recebia os direitos de imagem pagos por uma marca de maquiagem que lançou a linha “Elke Maravilha”.

Em 1988, Chacrinha veio a falecer. Elke ficou desolada e passou uma semana sem sair de casa. Perdida, teve que pedir emprego a Silvio Santos. Anteriormente, quando foi para a Bandeirantes no final da década de setenta, Elke se despediu de Silvio e disse que não voltaria a trabalhar com ele. Silvio não se esqueceu disso, mas a aceitou de volta mesmo assim.

No SBT, a jurada trabalhou ao lado de Pedro de Lara, que tinha sido seu colega anteriormente como jurado nos programas do Chacrinha e no de Silvio Santos, mas não havia retornado para Chacrinha na Bandeirantes. Em 1993, Elke foi transferida para seu próprio programa de entrevistas. Ali, falava de assuntos considerados polêmicos na época. “Elke”, como era chamado o programa, teve sua estreia com Jorge Lafond, que interpretava Vera Verão em “A Praça é Nossa”, como entrevistado. Eles terminaram a edição declarando que seu sonho era o fim da AIDS

Rara imagem do programa Elke, em seu primeiro episódio com Jorge Lafond (à esquerda) [Imagem: Reprodução/YouTube/Henrique Zambelli]

Em dezembro de 1993, Elke celebrou um casamento homoafetivo no meio do programa, 20 anos antes da legalização desse tipo de matrimônio. O programa de Elke era um sucesso, chegou a bater 15 pontos de audiência, quando a média do canal era de 9, e agradava ao público. Mas não ao patrão, Silvio Santos, notório conservador. Não se sabe ao certo o porquê, mas o programa foi cancelado. Especula-se que o cancelamento tenha relação com a celebração feita por Elke. Apesar da situação controversa, a apresentadora não foi demitida da emissora e continuou atuando no “Show de Calouros” até 1996.

Brincando de outra coisa

Elke continuou sendo convidada para novelas, filmes e programas de televisão, nos quais manteve firme sua imagem, apesar de aparecer por pouco tempo. Ela também foi interpretada no cinema por Luana Piovani, no filme Zuzu Angel (2006), dedicado a contar a vida de sua grande amiga homônima. 

Luana Piovani e Elke Maravilha nos bastidores do filme [Imagem: Reprodução/Instagram/Luana Piovani]

Em 2015, Elke fez sua última participação na televisão em um quadro chamado XYZ do Fantástico. Junto com Berta Loran e Vilma Nascimento, dava conselhos para ajudar os internautas com dilemas pessoais.  Também atuou no filme Carrossel 2: O Sumiço de Maria Joaquina (2016), interpretando Dona Lelé. No mesmo ano, rodou pelo Brasil com o espetáculo Elke Canta e Conta (2015), acompanhada do músico e ator Adriano Salhab. Nas apresentações, narrava histórias emocionantes vividas por ela por meio de canções e usava seus marcantes figurinos.

“Ela tinha o hábito de chamar as pessoas de criança. Aquilo era formidável, era uma alegria total. É uma criatura sensacional. Igual àquela não vai existir não”

– Vilma Nascimento para o Jornal Nacional
Elke com seu acervo de objetos [Imagem: Divulgação/Guillermo Giansanti]

Elke bebia muito. Ela dizia que, por ter origem russa, já tomava vodka na mamadeira quando bebê. Detestava beber água e, quando os médicos a aconselharam a tal, bebia água com gás, pois dizia não gostar de “água xoxa”. Sua saúde se deteriorou ao longo dos tempos por conta de seus hábitos não saudáveis. Em seus últimos anos de vida, Elke passou por dificuldades por não poder mais contar com a renda dos programas de televisão e ter poucas participações bem pagas em produções audiovisuais. Aos 71 anos, uma úlcera causou o rompimento interno de seus órgãos e ocasionou no falecimento de Elke. Como ela dizia sobre morrer: ela foi brincar de outra coisa.

Um legado no playground

Ainda que tenha ido brincar de outra coisa, Elke deixou para os colegas de playground o legado de várias brincadeiras que inventou. Uma das pessoas que perpetua essa herança é João Ferreira, artista sergipano que, além de projetos de arte diversos, tem em seu currículo duas drag queens: Samantha Dark e Elke Maravilha de Aracaju

João contou, em entrevista à Jornalismo Júnior, como começou a se montar de drag queen. A vontade surgiu ao começar um curso de maquiagem, em que tinha que treinar as técnicas em seu próprio rosto. Quando se vestiu pela primeira vez, as amigas apelidaram sua personagem de Afrodite, porque ela era a responsável por juntar os casais nas festas. A arte drag na época não era tão conhecida, e as profissionais eram chamadas de transformistas. 

Segundo João, seu rosto era suficientemente diferente na maquiagem para que nem mesmo seus amigos o reconhecessem. Quando percebeu o sucesso de Afrodite, pensou em uma personagem original, Samantha Dark, uma drag que tinha como característica principal as roupas e maquiagem pretas. 

João já conhecia Elke dos programas de televisão, mas não pensava muito na artista, até que viu uma divulgação do espetáculo Elke Canta e Conta. O artista estava se mobilizando para viajar de Sergipe para São Paulo, onde aconteceriam os próximos shows, quando soube do falecimento de Elke. Ainda assim, João não esqueceu de Elke Maravilha e, no carnaval de 2017, a cover de Aracaju participou de desfiles vestida como sua musa.

Elke de Aracaju se arrumando para entrevista para a Jornalismo Júnior [Imagem: Arquivo Pessoal/João Ferreira]

“Eu ouvia as pessoas gritarem ‘Elke Maravilha, Elke Maravilha!’. E aí eu olhava, mandava, beijo, tchau.. Foi quando eu percebi que as pessoas me reconheceram” conta João, lembrando do primeiro evento em que se vestiu como artista. Até hoje, em 2024, João se veste como Elke em ocasiões especiais. Seu perfil no instagram é dedicado a postar fotos de Elke, declarações e curiosidades. Além do perfil cover, João administra outras duas contas, uma para Samantha Dark e outra em seu nome, João Ferreira, para suas produções como artista plástico, educador, maquiador, desenhista e ilustrador, 

O artista conta que costura os próprios figurinos e personaliza as perucas, que aprendeu a fazer sozinho, vendo vídeos de Elke no YouTube. Ele lamenta não ter conhecido Elke Maravilha e diz que “ela era a madrinha das travestis e dos gays. Acho que teria sido ótimo se nos conhecêssemos, eu teria uma grande professora”.

Em 2023, o estilista brasileiro Walério Araújo colocou peças em homenagem à Elke na passarela do São Paulo Fashion Week (SPFW). As peças tinham as cores da bandeira LGBTQIA+ e as características exuberantes de Elke. Para o portal Uol, Walério descreveu Elke como “uma mulher enorme, com maxiperucas, maxilook, maxibotas” e disse que ela era “a moda, um ícone sem saber” e que ela “causou sem  querer causar”. 

Um dos modelos de Walério na passarela [Imagem: Zé Takahashi / @agfotosite / Elas no Tapete Vermelho]

Mesmo após sete anos de sua morte e mais de 50 anos de seu sucesso nacional, Elke continua abalando a moda, a estética e as vidas que se inspiraram em sua personalidade. 

“Numa das últimas conversas que tivemos, em 2007, perguntei o que Elke gostaria de deixar de legado quando fosse brincar de outra coisa. Ela botou o dedo indicador na frente dos lábios, franziu o cenho e explodiu numa gargalhada de oito segundos. Daí respirou fundo e disse: ‘É isso que eu queria deixar nesse mundo’.”

– Chico Felitti (Elke: Mulher Maravilha, Todavia 2020, p. 181)

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