Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Sem regulamentação, streaming ameaça soberania cultural brasileira

Projeto de lei em análise no Congresso busca garantir investimentos e fortalecimento do audiovisual diante das plataformas de streaming
Por Ana Julia Oliveira (anajulia.oliveira@usp.br) e Gabriela César (gabriela.oliveiracesar@usp.br)

Em 2022, o senador Nelsinho Trad (PSD/MS) propôs uma nova legislação para regulamentar as plataformas de streaming no Brasil. A proposta da lei previa alíquota de até 3% sobre a receita bruta anual das empresas de transmissão no país, assim como a definição de regras e cotas para obras nacionais nesses serviços audiovisuais.

Aprovada no Senado, a proposta seguiu para a Câmara dos Deputados em 2024, que aprovou um aumento na contribuição de até 6% da receita das plataformas digitais para o desenvolvimento do setor audiovisual brasileiro. Em novembro de 2025, a Câmara aprovou o texto-base do projeto de lei que regulamenta os streamings no Brasil.

Embora em andamento, a burocracia estatal para a aprovação da lei incomodou setores do audiovisual, que pediram urgência na regulação dos streamings, por meio de carta enviada ao governo federal em julho de 2025. O documento, assinado por personalidades como Kleber Mendonça Filho, Fernanda Torres e Wagner Moura, destaca que “sem regulação, o Brasil corre o risco de ser um mero mercado de consumo e de prestação de serviços para as plataformas, sem desenvolver aqui uma indústria capaz de crescer, investir e valorizar os trabalhadores brasileiros do audiovisual”.

Considerada a próxima aposta do Brasil no Oscar, O Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho, contou com o financiamento do FSA [Imagem: Reprodução/TMDb]

Segundo Giovanni Francischelli, documentarista e doutorando em Estudos de Mídia pela Universidade de Oregon, a regulação do streaming no Brasil parte do mesmo princípio da taxação para o cinema e para a TV: quem explora economicamente o conteúdo audiovisual do país deve contribuir para o desenvolvimento da indústria nacional. Entretanto, o que acontece hoje, de acordo com Francischelli, é uma desproporcionalidade na contribuição do setor audiovisual nacional, já que plataformas de streaming operam há mais de 10 anos no país sem cobranças.

Histórico do streaming no Brasil

A primeira plataforma de streaming a chegar ao Brasil foi a Netflix em setembro de 2011, com a proposta de ser um catálogo de filmes e séries ilimitados. Durante o evento de lançamento da empresa no país, o então diretor-geral, Reed Hastings, destacou que “quando testamos o serviço, não havia nenhum outro lugar como o Brasil, com tamanha paixão por vídeo”.

Verdade ou não, o fato é que as plataformas de streaming não pararam de chegar ao Brasil durante a última década. Em 2015, acompanhando a repercussão da Netflix, a Rede Globo criou sua própria plataforma para produções, o Globo Play. O serviço começou com um catálogo de conteúdos apenas da emissora e, aos poucos, foi inserindo títulos internacionais relevantes, como The Good Doctor (2017-2024) e Parasita (Gisaengchung, 2019).

O Prime Video, plataforma da Amazon, chegou ao país em dezembro de 2016 e logo se tornou uma forte concorrente às demais plataformas. A empresa iniciou suas atividades no Brasil com uma mensalidade de R$ 20, enquanto a Netflix cobrava R$ 22,90 no mesmo período.

A Netflix, em outubro de 2025, foi taxada no Brasil em cerca de 3,3 bilhões, o que contribuiu para uma queda de mais de US$ 33 bilhões em valor de mercado da empresa [Imagem: Reprodução/WikimediaCommons]

Plataformas como o HBO Max, Disney+ e Apple TV+ foram outros streamings que se inseriram no mercado nacional na última década, fragmentando os catálogos de produção e aumentando a competitividade entre as empresas.

Esse cenário propiciou um crescimento no número de consumidores nacionais de audiovisual, especialmente por meio de aparelhos eletrônicos. Hoje, segundo pesquisa da Opinion Box em parceria com a Vindi, 73% dos brasileiros assinam pelo menos um streaming de vídeo. Para Francischelli, o mercado audiovisual brasileiro é muito grande e possui capacidade de crescimento, de geração de emprego e renda, e de fortalecimento de uma indústria estratégica para a economia e para a cultura do país.

Políticas de fomento à cultura

O cinema brasileiro possui o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) como principal política pública de fomento. Esse fundo, de acordo com o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), vem de contribuições recolhidas principalmente da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (CONDECINE) e do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (FISTEL). A partir dessa verba, o FSA procura realizar o desenvolvimento articulado de toda a cadeia produtiva da atividade audiovisual no Brasil.

Sucesso internacional, Ainda Estou Aqui arrecadou mais de R$200 milhões, e reacendeu a paixão dos brasileiros pelo próprio cinema [Imagem: Reprodução/ The Movie Database]

Entretanto, na prática, segundo Francischelli, ocorre uma priorização histórica no setor de produção audiovisual e, por isso, produtoras independentes não conseguem lançar seus projetos no mercado. “A maioria dos filmes brasileiros, especialmente os independentes, não têm acesso a orçamentos robustos de distribuição e comunicação — o que é justamente uma das maiores lacunas de política pública no audiovisual hoje”. Ele reforça que sem uma política de fomento à distribuição e exibição, fica quase impossível sustentar os filmes brasileiros nas salas diante da concorrência com os blockbusters estrangeiros.

O filme Ainda Estou Aqui (2024), produzido por Walter Salles, foi um caso excepcional no cinema brasileiro, com presença em festivais e um lançamento inteligente, segundo o documentarista. Isso porque o longa-metragem contou com uma campanha estruturada, com um investimento privado de cerca de R$ 40 milhões, conforme dados da Revista IstoÉ. Ou seja, não dependeu de políticas públicas para sua produção e distribuição.

“Cada real aplicado num projeto cultural volta pra economia em forma de emprego, turismo, serviços, inovação e formação de público”

Giovanni Francischelli

A Lei Rouanet é outra relevante política pública de fomento à cultura. Por meio dessa lei, empresas investem parte do Imposto de Renda, que seria direcionado ao governo federal, para financiar produções culturais. É importante destacar que, por mais que essa legislação ajude alguns setores da cultura nacional — como teatro, dança, música, exposições, literatura —, ela não pode ser usada no cinema de longa-metragem.

“Muita gente fala da Lei Rouanet como se fosse um grande gasto público, mas se olharmos para números, o valor é muito pequeno”, diz Francischelli. Em 2023, a captação total via Lei Rouanet foi de cerca de R$ 2,2 bilhões, enquanto a renúncia fiscal total do governo superou R$ 179 bilhões — e setores como o agronegócio receberam sozinhos grande parte desses benefícios, destaca o pesquisador.

A Petrobras é conhecida por financiar uma grande quantidade de produções brasileiras, com o objetivo de se isentar de impostos ao governo [Imagem: Reprodução/ TMDb]

Francischelli ainda afirma que falta ao Brasil um planejamento duradouro e estável para o setor audiovisual, que permita que as produções permaneçam, ainda que ocorram mudanças de governo. Os Estados Unidos, por exemplo, conseguiram desenvolver o audiovisual como um campo estratégico da economia e da soberania do país por meio do investimento público na área. Não é à toa que, hoje, o cinema de Hollywood seja mundialmente reconhecido e consumido, conforme afirma o documentarista.

Longe dos holofotes

Diferente de grandes produções, como Ainda Estou Aqui ou Tropa de Elite (2007), que contaram com um financiamento — em sua maioria — privado, a maior parte das produções acontece de forma independente. Altamente competitivo, o mercado de audiovisual é formado por um grande número de profissionais que dependem das verbas de auxílio, como a Lei Paulo Gustavo, Rouanet ou o FSA, que não contemplam a indústria em sua imensidão, seja pelas vagas escassas ou pelos baixos orçamentos.

Em entrevista ao Cinéfilos, Pedro Seno, profissional independente do audiovisual, explica que o auxílio ocorre através de editais. Segundo ele, a desigualdade começa neste processo, uma vez que, em muitos casos, os editais exigem um teaser da produção, uma pequena amostra da proposta que, para quem depende do auxílio, é inviável.

Outra questão levantada foi a parcialidade da banca, que costuma aprovar projetos de diretores renomados com muita facilidade e altos orçamentos, em detrimento de artistas independentes. Estes, dificilmente são escolhidos, ou quando o são, recebem verbas incompatíveis com a necessidade da produção.

Que Horas Ela Volta?,  dirigido por Anna Muylaert, foi financiado pelo FSA e pela Spcine, além de ter contado com o apoio à distribuição pela Ancine [Imagem: Reprodução/TMDb]

Por outro lado, Pedro dá destaque a algumas mudanças nos editais, como a exigência de temas sociais, ou a presença de pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+, por exemplo. A proposta busca trazer diversidade e inclusão das narrativas que são financiadas, além de dar voz a artistas que dificilmente conseguem concretizar suas ideias sozinhos. Além disso, ele chama a atenção para editais que não exigem um teaser na sua inscrição, uma decisão que busca democratizar o processo seletivo. “Escrever o roteiro é de graça, então fica mais justo”, ele afirma.

Apesar das melhorias, o sistema ainda carece de uma revisão estrutural, segundo o profissional. O próprio auxílio, por exemplo, quando adquirido, depois de um processo seletivo acirrado, não garante o sustento dos profissionais, muito menos a distribuição da obra. A partir de orçamentos baixíssimos, é comum que a equipe da produção precise equilibrar mais de um emprego para garantir o sustento, ou em casos extremos, investir de forma independente na obra, para além do auxílio fornecido. 

Depois de finalizada, essa obra precisa chegar ao público, e o cinema é o caminho mais clássico. Porém, tendo em vista que essa etapa não consta no edital, o que a produção consegue pagar, em raros casos, são os poucos horários que sobram nas salas de cinema. 

“Precisa haver uma porcentagem para o profissional se sustentar, e os editais precisam prever planos e verbas de distribuição”

Pedro Seno

A presença exorbitante de filmes estrangeiros nos cinemas é outro fator que acaba ofuscando a produção nacional, muitas vezes limitada aos horários restantes e ao público escasso, que encontra dificuldade em enxergar com bons olhos os filmes produzidos no Brasil. Em 2024, o governo Lula regulamentou a Cota de Tela, que havia sido expirada em 2021, e prevê que entre 7,5% e 16% da programação das salas devem ser destinadas a produções brasileiras. Mesmo assim, profissionais da área afirmam que a medida não é o suficiente. Em entrevista ao Jornal da USP, em 2024, Carlos Calil, cineasta e professor da ECA-USP, aponta: “O mercado do cinema no Brasil pertence ao cinema americano e não ao cinema brasileiro”. 

O filme com a maior bilheteria no Brasil ainda é Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, 2019), com mais de R$300 milhões arrecadados, enquanto Minha Mãe É Uma Peça 3 (2020) representa o filme nacional de maior bilheteria, com quase R$170 milhões [Imagem: Reprodução/TMDb]

Plataformas e perda da soberania cultural

Com a popularização do chamado Video on Demand (VOD) no Brasil, o problema da distribuição tornou-se um pouco menor. No entanto, para serem financiados ou incluídos no catálogo das plataformas, como a Netflix, os produtores foram orientados a se encaixar em padrões de performance que garantem audiência, uma série de fórmulas de sucesso inibe o processo criativo e a diversidade proposta pelos criadores.

Segundo Pedro, essas exigências não se restringem ao conteúdo, mas se alongam a questões técnicas, como material de captação e edição. Essa padronização é básica, do ponto de vista hollywoodiano, porém aos moldes do cinema brasileiro, que é realizado de forma precária e improvisada, as exigências são altas demais. Nas palavras do profissional, “quando elas [plataformas] migraram para o mundo emergente, para a África, Ásia, América do Sul, encontraram um cenário de guerra, destruído, pessoas mal remuneradas e equipamentos faltando”.

A presença massiva das empresas de streaming, entretanto, teve alguns pontos positivos, de acordo com o produtor independente. Ele acredita que as plataformas contribuíram na “alfabetização do audiovisual para o público brasileiro”, uma vez que, ao assinar esses serviços,  os brasileiros estão “à espera” de novos conteúdos para consumir, e a necessidade de buscar novas obras fora de casa já não é mais uma realidade. 

Ele também alerta sobre o processo de educação da população para assistir ao próprio cinema, como acontece na Argentina, por exemplo. No Brasil, o público ainda preserva uma cultura de desprezo à própria arte, em oposição à admiração pelo cinema de Hollywood. Sem um incentivo que parte dos brasileiros também, o audiovisual brasileiro encontra resistência para continuar. Por esse motivo, fenômenos como Ainda Estou Aqui, que trouxe um Oscar para o território nacional, são importantes na construção de um imaginário positivo acerca da cultura.

Até março de 2025, de acordo com a ANCINE (Agência Nacional do Cinema), Ainda Estou Aqui havia levado mais de 5 milhões de brasileiros aos cinemas [Imagem: Reprodução/Unsplash]

A regulamentação do streaming, para Pedro, é essencial nesse processo. Sem ela, as empresas, facilmente, se instalam no Brasil, “sequestram” o dinheiro produzido aqui, e levam de volta para os Estados Unidos, sem investir na indústria brasileira. É um consenso entre os profissionais da área que deve haver um limite na exploração, além de um incentivo formal na cultura do país. 

A regulamentação já acontece em países da Europa, como França e Itália, que exigem que uma parcela dos lucros da plataforma seja revertida em investimentos na cultura nacional. O maior desafio, no entanto, é convencer as empresas a permanecerem no país sob novas condições. O aumento de impostos, geralmente, tem como consequência o aumento nos preços das assinaturas, porém se elas sobem muito, a plataforma perde assinantes. Além do investimento direto, o Projeto de Lei em tramitação prevê cotas de tela, garantia de direitos autorais das obras produzidas para a plataforma e a fiscalização das ações da empresa no país.

O que permanece unânime no debate é a necessidade de reafirmar a soberania cultural do Brasil, que precisa ser capaz de criar e produzir obras originais, que cheguem ao público local. Sem políticas de incentivo e regulamentação do streaming, o país corre o risco de ter sua cultura padronizada e sucateada por empresas estrangeiras, que visam o lucro acima da arte.

*Imagem de capa: Reprodução/Freepik

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima