Impulso com a parte externa do patim. Salto de frente. Três rotações e meia no ar, totalizando um giro de 1260º. Pouso com a perna oposta à da decolagem. A dificuldade desse salto, conhecido como Axel triplo (triple axel), não se restringe à teoria: é um dos mais raros e conceituados movimentos da patinação artística.
Quando Tonya Harding completou este salto na competição nacional de 1991, ela se tornou a primeira americana e a segunda mulher em todo o mundo a conquistar tal feito. Passaram-se onze anos até outra atleta fazer o mesmo, e até hoje, Harding é uma das únicas dez mulheres com esta façanha no currículo. Não contente, no mesmo ano ela repetiu o salto no Campeonato Mundial e ainda mais duas vezes no Skate America, tornando-se a primeira mulher a executar com sucesso dois triple axels em uma única competição.
Esses recordes, por si só, fazem de Tonya Harding uma das patinadoras mais importantes da história. Mesmo assim, a esportista costuma ser mais lembrada pela polêmica do seu envolvimento em um atentado contra sua rival do que propriamente pela sua grandiosa trajetória. Mas será que esse escândalo realmente supera seus méritos profissionais?
Quebrando o gelo: início, ascensão e auge
Tonya começou a patinar com três anos de idade, e aos 15, em 1986, estreou na categoria sênior do Campeonato dos Estados Unidos de Patinação Artística com o sexto lugar. Na edição do mesmo ano do Skate America, uma competição internacional realizada nos EUA, a jovem patinadora conseguiu logo a medalha de prata. Nos dois anos que se seguiram, Harding manteve boas colocações nos EUA e ganhou medalhas em competições internacionais, inclusive um ouro em Moscou.
O que explicaria um começo de carreira profissional tão próspero? “Sua resistência e habilidade atlética, e sua disposição para tentar coisas novas”, opina Terry Hall, chefe da Seção de Deveres Especiais da Portland Ice Skating Society, um fã-clube neozelandês de mais de 20 anos com membros de todo o globo.
Em 1989, Tonya foi medalhista pela primeira vez no Campeonato dos EUA, conquistando o bronze. Saiu-se melhor ainda nas competições internacionais, sendo campeã do Skate America e da versão alemã. No ano seguinte, entretanto, uma gripe agravada pela sua asma não lhe permitiu passar da sétima posição no nacional.
Chegamos então a 1991, o ano em que Tonya Harding escreveu seu nome na história. O triple axel em Minneapolis lhe rendeu seu primeiro ouro no campeonato nacional. O triple axel em Munique lhe garantiu a medalha de prata logo na sua primeira participação no Campeonato Mundial. E os dois triple axels em Oakland só poderiam mesmo ter resultado em seu segundo título no Skate America. Para tornar seu currículo ainda mais grandioso, no ano seguinte ela foi novamente medalhista de bronze no nacional, mesmo tendo torcido o tornozelo durante o treino.
Na visão de Hall, Tonya trouxe um novo estilo físico ao esporte, dando-lhe credibilidade como uma atividade atlética ao realizar tantas vezes essa complicadíssima manobra. “Para muitas pessoas, a patinação artística feminina é considerada apenas um concurso de beleza no gelo; elas não imaginam quanta força e energia estão envolvidas”. Ele aponta a física envolvida em um triple axel como a maior prova da habilidade esportiva necessária para a modalidade.
Além das pistas: vida pessoal conturbada
Mesmo com todos os atributos da atleta, o próprio cabeça do fã-clube admite que passou a admirar Tonya Harding pelo modo como ela superou desvantagens tão tremendas em sua vida. Alguns dos principais obstáculos foram sua infância extremamente pobre em Portland, no estado de Oregon, e sua relação nada saudável com sua mãe. LaVona Golden, apesar de ter apoiado Tonya na prática do esporte, abusava física e psicologicamente da filha com frequência.
O conturbado convívio com a progenitora não foi o único que Harding enfrentou, já que maus-tratos eram comuns em seu relacionamento com Jeff Gillooly. Entre namoro, casamento e diversas separações, eles viveram juntos durante toda a trajetória de Tonya na patinação, apesar dos desentendimentos e casos de violência. Gillooly, aliás, foi um dos protagonistas do episódio que acabou com a carreira de sua esposa.
Sobre gelo fino: o incidente
Após ficar a uma posição do pódio nas Olimpíadas de Inverno de 1992, o desempenho de Harding nas competições posteriores não foi animador. Ela só voltou a se destacar com o bronze no Skate America de 1993, o que lhe deu esperanças de voltar a vencer um título no ano subsequente. E o ouro, o seu segundo no nacional, realmente foi alcançado naquele ano. Entretanto, a comemoração durou pouco, já que a conquista veio acompanhada de muita polêmica com sua adversária.
Tendo ficado à frente de Harding nas Olimpíadas e nos dois nacionais antecedentes, Nancy Kerrigan era uma das favoritas para vencer o Campeonato dos EUA de 1994. Mas, depois de uma sessão de treinamento feita um dia antes do início da competição, foi atacada por um estranho com um cassetete. O homem, juntamente com o seu motorista de fuga, havia sido contratado pelo marido e pelo guarda-costas de Tonya na intenção de tirar Nancy das competições daquele ano.
O esquema foi um fracasso total: os mentores foram descobertos e presos; Kerrigan se recuperou a tempo de conquistar a prata nas Olimpíadas de Inverno, enquanto Harding terminou apenas na oitava colocação; e, admitindo ter descoberto após o início das investigações que seu marido era culpado, Tonya teve seu título nacional de 1994 retirado e foi banida do esporte pela Associação de Patinação Artística dos EUA.
Desde então, Tonya Harding teve diversas ocupações, inclusive uma retomada à vida de atleta: a ex-patinadora teve uma curta trajetória no boxe profissional, que não passou de seis lutas (três vitórias e três derrotas).
Ela, Tonya: retratos populares
O caso repercutiu intensamente na mídia da época, com visões majoritariamente negativas sobre Tonya – apesar de até hoje existir dúvidas quanto a algum conhecimento prévio dela sobre o ataque. É importante notar, contudo, como a imprensa especializada e a elite da patinação já não a viam com bons olhos muito antes do incidente.
Terry Hall explica que “Tonya foi uma das primeiras a recusar descaradamente a se conformar com o molde da ‘princesa do gelo’, em um esporte no qual as competidoras são estimuladas a parecer ‘femininas’ e graciosas”. Harding, ao invés de patinar ao som de músicas eruditas, preferia ZZ Top e os temas de Batman e Jurassic Park. Ela não escondia seu gosto por sinuca, sua habilidade de consertar carros e seu estilo “caipira”.
A história de Tonya Harding voltou aos holofotes recentemente com o sucesso do filme Eu, Tonya (I, Tonya – 2017), dirigido por Craig Gillespie, uma biografia não convencional que se utilizou de elementos de comédia e pseudodocumentário, apesar da dramaticidade dos fatos. A película apresentou um ponto de vista até então pouco abordado sobre a patinadora e suas controvérsias, com ênfase na sua complicada vida pessoal e sua imagem pública.
“As pessoas não queriam ouvir a versão dela sobre os eventos até o filme surgir”, avalia Hall. “Acredito que o filme teve um efeito enorme em mudar a imagem da Tonya – foi dada a uma nova geração a chance de revisitar a história dela”.
Independentemente da opinião pública e da visão geral sobre ela, a americana, enquanto atleta, tentou quebrar certos padrões estéticos e estilísticos ainda ligados à sua modalidade. E fez isso ao mesmo tempo em que se consolidava como uma das principais patinadoras de todos os tempos. O filme pode ter sido fundamental para lembrar o público de como o nome Tonya Harding carrega muito mais do que simplesmente algumas controvérsias.