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Tash e Tolstói: uma adolescência igual, mas diferente

Crédito da foto de capa: twitter da autora Kathryn Ormsbee Quando nos deparamos com um romance young-adult protagonizado por uma garota, esperamos uma série de coisas básicas no enredo: ela terá um interesse romântico complicado cujo relacionamento se desenvolverá no decorrer da narrativa, algumas dúvidas em relação a sua identidade (afinal, todo YA é sobre …

Tash e Tolstói: uma adolescência igual, mas diferente Leia mais »

Crédito da foto de capa: twitter da autora Kathryn Ormsbee

Quando nos deparamos com um romance young-adult protagonizado por uma garota, esperamos uma série de coisas básicas no enredo: ela terá um interesse romântico complicado cujo relacionamento se desenvolverá no decorrer da narrativa, algumas dúvidas em relação a sua identidade (afinal, todo YA é sobre crescer), e um comportamento tipicamente adolescente, um pouco rabugento e condescendente. Ter essas características não tornam uma obra pior ou melhor, apenas a inserem no contexto deste gênero.

Com Tash e Tolstói (Companhia das Letras, 2017), sabemos de antemão que a situação não é tão típica assim. Parte de uma nova leva de literatura infanto-juvenil que se dispõe a retratar o mundo um pouquinho mais como ele é, explorando temáticas LGBTQA e diversos tipos de identidade, a protagonista da história se identifica como algo invisibilizado tanto dentro quanto fora de sua comunidade: assexual heterromântica. Apesar de tingir as suas experiências de uma forma inegável — como qualquer parte da identidade de uma personagem o faz, especialmente quando se trata da forma com que ela se relaciona com os outros — a narrativa de Tash tem outro ponto central que também colabora para tornar a história mais moderna e realista: ela produz uma websérie no YouTube que se torna bem-sucedida do dia para a noite.

A websérie produzida por Tash e sua melhor amiga, Jack, é uma adaptação de Anna Kariênina, um dos romances do autor favorito da protagonista, Tolstói. É interessante perceber que sua devoção ao autor se manifesta da mesma forma que aquela que se tem por boybands ou atores famosos: a garota mantém um poster do autor russo ao lado de sua cama, e produz algo que poderia ser caracterizado como uma fanfic em forma de vídeo. Em um mundo onde adolescentes gravitam cada vez mais para o entretenimento online (principalmente no YouTube), é refrescante entrar em contato com um livro que consegue capturar de modo satisfatório não apenas a presença da tecnologia no cotidiano das pessoas — a vida não se dá mais offline e online, mas em uma mistura constante —  mas também o verdadeiro trabalho que produzir conteúdo para essas plataformas é. E acima de tudo, ter uma protagonista capaz de apreciar tanto a cultura “erudita” da alta literatura como a característica de sua geração — a série Harry Potter, a cantora Lorde e a plataforma de blogs Tumblr são algumas das coisas referenciadas ao longo da narrativa — quebra o estereótipo de que essas coisas são mutuamente exclusivas.

Depois de ter sua websérie, Famílias Infelizes, recomendada por uma autora influente, Tash e sua equipe vêm seu canal aumentar de tamanho vertiginosamente, em uma onda de sucesso que lhes traz muitos fãs e alguns haters, e culmina em uma indicação à Tuba Dourada, premiação dedicada a produções no YouTube que acontece anualmente na Califórnia. Em meio ao sucesso repentino, ela tem que lidar com a decisão de qual universidade fazer — algo que assume um peso ainda maior no contexto norte-americano de ensino superior caríssimo —, mudanças em sua família, conflitos entre amigos e eventuais crushes (porque sim, assexuais românticos desenvolvem crushes). Cada uma dessas coisas, quintessencialmente adolescente.

E é nisso que o livro brilha: ao tecer uma narrativa que tem tudo de mais normal, mas com uma protagonista que se comporta de forma atípica em relacionamentos amorosos, se humaniza e traz a assexualidade para a realidade. Não vemos alguém que está no processo de descoberta de sua sexualidade, mas alguém que já se reconhece como algo diferente e sabe, inclusive, qual o nome dado a isso. Os conflitos decorrentes dessa identidade são relacionados à (in)tolerância daqueles ao redor, assim como o processo constante de autoaceitação: possuir um comportamento sexual divergente da norma é sempre desafiador, mas se torna ainda mais quando sua identidade é profundamente invisibilizada e desconsiderada.

Tash ouve tudo aquilo que qualquer um no espectro assexual já ouviu: que assexualidade não existe, que é apenas uma questão de “encontrar a pessoa certa”, que todo ser humano sente desejo sexual da mesma maneira e tem as mesmas necessidades — absolutos que a levam a questionar se ela seria mesmo humana, afinal; se ela não teria nascido “quebrada” de alguma forma. Esses conflitos — tanto internos quanto externos — são colocados no livro em uma linguagem direta, simples e honesta, de modo a provocar empatia e identificação, sem parecer uma aula sobre o assunto.  E ao mostrar os discursos errôneos (que nem sempre são abertamente agressivos) sobre sua sexualidade que Tash precisa lidar cotidianamente, leitores alossexuais também podem reavaliar suas posturas e entender os pontos sensíveis naquilo que dizem.

É impossível contabilizar a diferença que ver tais falas em papel e tinta é capaz de fazer na vida de um adolescente que nunca viu alguém como ele representado na ficção de forma tridimensional. Em entrevista para o site Valkirias, a autora Kathryn Ormsbee destacou a importância de uma experiência de leitura como essa para “ajudar a articular melhor” os sentimentos do leitor que se enxerga ali e “encorajar sua confiança na sua própria jornada de autodescobrimento”. Apesar de não partilhar a identidade sexual de Tash, Kathryn se define como demissexual, rótulo que também se encontra no espectro ace. Segundo ela, uma de suas motivações ao escrever essa história foi criar a narrativa adolescente que ela gostaria de ter entrado em contato antes para se sentir compreendida e menos sozinha.

Para além de ter uma temática importante, Tash e Tolstói tem uma leitura fluida, personagens bem trabalhadas e uma verossimilhança invejável, conseguindo transmitir a experiência simultaneamente empolgante e confusa de ser adolescente com maestria, garantindo aquele quentinho no coração que só um romance young adult é capaz de dar. Em muitos pontos, ele se assemelha à obra de Rainbow Rowell (Fangirl, Eleanor & Park), autora que também se debruça nos aspectos millennials da experiência adolescente contemporânea, escolhe protagonistas menos convencionais e é capaz de criar uma atmosfera de conforto em cada um de seus livros — é seguro dizer que suas chances de gostar de Tash & Tolstói se você já gosta de Fangirl são imensas.

Mais do que qualquer coisa, Tash e Tolstói reitera a importância da honestidade, com o mundo e com nós mesmos. Colocar-se no mundo como quem você é — Tash, por exemplo, é uma youtuber que leva seu trabalho a sério antes de tudo e uma fã inveterada de Tolstói — pode ser desafiador, mas te levará aos melhores lugares possíveis.

Glossário: 

Assexual: pessoa que não sente atração sexual por outras pessoas.
Assexual heterromântico: pessoa que não sente atração sexual por ninguém, mas experiencia atração romântica por pessoas do sexo oposto.
Alossexual: pessoa que sente atração sexual por outras pessoas sem condições ou restrições.
Espectro assexual/ace: espectro de orientações sexuais que abarca aqueles que não sentem atração sexual (assexuais) ou só a sentem com restrições ou condições (demissexuais, grayssexuais).
Demissexual: pessoa que só sente atração sexual após formar uma ligação emocional/psicológica/intelectual com outro.

Por Bárbara Reis
barbara.rrreis@gmail.com

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