E se um dia você acordasse e seu mundo não fosse mais o mesmo? Não, nada parecido com o Eu Sou a Lenda (I am Legend, 2007) ou qualquer outro filme apocalíptico; afinal, ao invés de ficção científica, o filme Persépolis (Persepolis, 2007) – baseado no roteiro de Marjane Satrapi e com direção de Vincent Parronaud (Poulet aux prunes, 2011) – trata de um momento de mudanças no regime iraniano.
A película é inspirada no romance gráfico e autobiográfico da autora iraniana. Marjane é uma adolescente quando vivencia a Revolução Iraniana em 1979, com a tomada do poder pelos aiatolás. Como qualquer jovem criada num ambiente pró-Ocidental, bate de frente aos valores e imposições religiosas do novo regime.
Desde seu véu, que nunca estava da maneira correta, a seus discos de punk comprados num crescente mercado negro, a garotinha não se conforma com a opressão e questiona diretamente as figuras de poder – neste momento, pois, é levada a estudar num dos liceus franceses fora de seu país de origem para evitar maiores descontentamentos.
Além da religião e fanatismo, são trazidos ao debate temas universais. Direitos das mulheres, revoltas populares e repressão de um governo autoritário e despótico.
Como uma obra biográfica, o filme opta pelo flashback como linguagem predominante. O que engrandece a narrativa, acentuando a melancolia de uma personagem expatriada – o que se confirma no momento de apresentação dos documentos para o embarque. Ao sentar-se e acender a um cigarro, no aeroporto de Orly, na França; Marjane adulta começa a se lembrar desde antes da revolução, quando era uma garotinha no Irã; até os fatos que a levaram àquele momento.
A mulher
Apesar de morar com seus pais, a pequena Marjani tem um laço bastante estreito com sua avó. Sempre disposta a aprender com a mais velha, conhece desde cedo como envelhecer com beleza – e como enfrentar esse mundo injusto para as mulheres.
Sua avó, viúva de um comunista, sabe bem como enfrentar a perseguição. Com artimanhas e sabedoria, ensina à Marjane a nunca baixar a cabeça – mas também a nunca arriscá-la. Como quando esvaziaram dezenas de garrafas de vinho para não serem presas pelo regime.
Uma outra cena importante para a sequência é quando sua avó, numa renovação de caráter se decepciona com a neta e despeja seu repúdio à protagonista por esta ter posto a vida de um desconhecido em risco (contando à um policial que ele havia dito coisas vexatórias à ela) para escapar de uma punição ela mesma.
O comunismo
Marjane tem contato por um curto período de tempo com seu tio que fora recém liberto da prisão. Este ensina à jovem preciosos valores, em conversas longas sobre respeito ao próximo, engajamento nas causas populares além de pensamentos de vanguarda para uma garotinha que envolvem a luta pela liberdade e o desenvolvimento do pensamento crítico – sempre ressaltados na história.
Trazendo informações à pequena, ele a introduz ao pensamento Marxista a que foi ensinado no período em que estudou em Moscou. À contramão do que o regime fanático-religioso pregava, Marjane aprendia a questionar e acreditar na força proletária.
Deus
A personagem central da obra enfrenta, ainda muito jovem, a perda de parentes próximos; além de ser tolida diversas vezes pelos representantes religiosos locais que detém o poder do Estado – o que poderia gerar uma possível descrença na própria religião ou em alguma representação do sobrenatural, como Deus ou Alá. Entretanto, Marjane criança tem momentos de encontro com esta figura divina muito próxima à imagem construída pelo ocidente cristão de Deus.
Ela discute com este grande homem velho sobre seus problemas e busca por respostas dessa figura mítica. Num momento de grande sofrimento, briga com seu deus e resolve ignorá-lo. Não aceita mais suas decisões e seu posicionamento arbitrário. Principalmente quando é afetada pela morte de seu tio pelo regime.
Expatriada
Fugindo desta situação insuportável, seus pais a mandam para fora do Irã por duas vezes. A primeira, quando garota, para estudar na Áustria. Lá sofre por ser diferente, por ser estrangeira, não ter amigos. Mas depois de retornar ao Irã, descobre que agora ela é uma estrangeira em seu país – depois de 8 anos de guerra, tudo muda e pede a seus pais para ir viver na França.
Com saudades de casa, mas não podendo mais voltar pelo seu bem estar – Marjane agora já é uma mulher e fora diagnosticada com depressão em seu país natal – é forçada a aceitar sua situação expatriada e vivendo em um lugar tão diferente daquele a que estava acostumada.
Em um insight da adolescência se lembra de um dia em que escondeu a identidade para evitar transtornos e se disse francesa em uma festa. Agora estava sozinha em um táxi, e quando o motorista a pergunta “De onde você é?” ela não sabe mais responder.
O filme, para mim, deve ser analisado como um documento histórico. Afinal, ele trata do acontecido. A autora realmente sofreu com a mudança do regime, e isto não deve ser esquecido. Ela teve voz e pode contar sua história. Quantos outros não morreram por protestar? Além, é claro, desta linguagem cinematográfica ter o poder de atingir bem mais o espectador do que os livros empoeirados de história ou os jornais velhos.
Por Fábio Manzano
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