Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

A riqueza cultural do afrobeat

Lidar com diferentes gostos musicais faz parte da agenda cultural de muitos. Quem não conhece fãs de sertanejo, de samba, ou até mesmo de rap? A diversidade é gigantesca. Tão ampla que alguns gêneros não chegam a embalar em determinados ambientes, mas fazem muito sucesso em outros lugares. Pois ao mesmo tempo em que a …

A riqueza cultural do afrobeat Leia mais »

Lidar com diferentes gostos musicais faz parte da agenda cultural de muitos. Quem não conhece fãs de sertanejo, de samba, ou até mesmo de rap? A diversidade é gigantesca. Tão ampla que alguns gêneros não chegam a embalar em determinados ambientes, mas fazem muito sucesso em outros lugares. Pois ao mesmo tempo em que a MPB estourava no Brasil durante a Ditadura Militar, com letras de protesto e misturando ritmos, de maneira semelhante, um estilo de música fazia enorme sucesso na Nigéria e se espalhava pela África. Era o afrobeat.

Assim como a música popular brasileira surge da fusão de inúmeras influências nacionais e internacionais, o afrobeat caracteriza-se como uma combinação de vários ritmos tradicionais da África Ocidental, especialmente da cultura iorubá, com influência de jazz e funk americanos.

Outra semelhança notável com a MPB é o contexto, nas suas origens, de juntas militares governando o país. Justamente por isso, as letras também tinham nítido tom de protesto. Igor Brasil, guitarrista, compositor e líder da banda ÈKÓ Afrobeat, considera o estilo como “uma música engajada, que tem uma função social. Ele nunca pode ser música só pela estética”. Já a cantora, compositora e ativista americana Sandra Izsadore reitera esse ponto: “Quando eu componho uma canção de afrobeat, eu quero ter certeza de que é dada uma mensagem para alguma mudança positiva, ou para trazer atenção a algum problema”.

Sandra é inclusive uma figura determinante para a criação desse estilo, conhecida como a Rainha Mãe do Afrobeat. Membro do Partido dos Panteras Negras, em 1969 ela acabou transmitindo muitos de seus ideais políticos e suas visões sobre a identidade negra para um jovem músico nigeriano que estava em Los Angeles com sua banda, e com quem estava se relacionando. O impacto dessas novas ideias na cabeça desse rapaz fez com que ele concebesse novas formas de se fazer música.

O músico era ninguém menos do que Fela Kuti, cantor e multi-instrumentista responsável por dar vida ao afrobeat. De volta à Nigéria, durante a década de 1970 e no começo dos anos 1980, Fela gravou mais de 40 álbuns de sucesso, e ainda fundou uma comuna (que ele declarou independente do restante do país sob a alcunha “República de Kalakuta”) para abrigar familiares, amigos e membros da sua banda. Ele se tornou um dos maiores símbolos históricos de resistência através da arte.


Sandra Izsadore (na época Smith) ao lado de Fela Kuti [Imagem: Reprodução/sandraizsadore.com]
Quando perguntada sobre a sensação de ter influenciado um dos músicos mais importantes do mundo, Sandra se diz feliz pelas sementes que plantou terem enraizado e começado a crescer. “Palavras não são suficientes para expressar o talento e o esclarecimento que Fela deu à Nigéria. Sua atenção trouxe a noção da desumanidade humana” que ocorria no país.

Não faltam exemplos que demonstrem a força política de Kuti como artista. O caso mais chocante ocorreu em 1977, após o lançamento do álbum Zombie. A canção-título criticava fortemente o governo nigeriano e comparava os militares a zumbis. Isso gerou um ataque de mil soldados à República de Kalakuta, no qual os equipamentos musicais foram destruídos e a comuna queimada. Os militares espancaram Fela, e sua mãe foi arremessada de uma janela, não sobrevivendo aos ferimentos. O inquérito oficial do governo dizia que o ataque havia sido realizado por um “soldado desconhecido”. Posteriormente, Kuti deixou o caixão de sua progenitora no principal quartel do Exército e escreveu músicas acerca do episódio.

Capa do antológico disco Zombie, de 1977, cujas ironias e críticas resultaram em um revide violento do governo. [Imagem: Barclay Records/Wrasse/MCA Universal]
Capa do antológico disco Zombie, de 1977, cujas ironias e críticas resultaram em um revide violento do governo. [Imagem: Barclay Records/Wrasse/MCA Universal]
Depois de muitos conflitos e muita música, Fela Kuti faleceu em 1997 de complicações decorrentes da AIDS. Mas o afrobeat já estava consolidado na África, e já era apreciado em todos os cantos do mundo. Além de Sandra Izsadore, diversos outros artistas e bandas deram e ainda dão continuidade ao legado de Fela. Dentre eles, estão seus próprios filhos Femi e Seun Kuti, Tony Allen (o antigo baterista de sua banda), e outros nigerianos como Remi Kabaka, Dele Sosimi e Jerri Jheto. Em outros países, há o exemplo do ganês Ebo Taylor, o guineano Mamady Keita, as bandas francesas Fanga e Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, a chilena Newen Afrobeat e os americanos Antibalas e Afrobeat Down.

Atualmente, no Brasil, existem bandas mais dedicadas ao afrobeat, como o próprio ÈKÓ Afrobeat, Bixiga 70, Abayomy Afrobeat Orquestra, IFÁ, Zebrabeat, Iconili, dentre outras. Mas é importante notar que o afrobeat exerceu influência em vários músicos brasileiros importantes, e não é raro encontrar canções com elementos desse estilo. O exemplo mais nítido são os álbuns de 1977 de Gilberto Gil e Caetano Veloso, respectivamente Refavela e Bicho, que surgiram após uma visita dos dois à Nigéria, onde conheceram Fela Kuti.

Apesar da abrangência, as composições de afrobeat possuem estruturas muito bem definidas. As bandas têm sempre um número considerável de membros. Antigamente, variavam entre 15 e 30, mas hoje em dia são um pouco menores, girando em torno de dez. Dentre os elementos essenciais na formação estão o baixo, bateria, teclado, duas guitarras, sopros e muita percussão, bem como backing vocals em peso. 

Outra característica importante é a repetição: os grooves permanecem bastante tempo em loop, muitas vezes durante toda a música. É comum o uso de apenas um acorde. A ideia é estabelecer claramente uma atmosfera mântrica, e explorá-la com longos solos e improvisos, tudo dentro do mesmo campo harmônico.

Retrato da grande quantidade de integrantes da banda Africa 70, que acompanhou Fela na maioria de seus álbuns e shows [Imagem: Henri de Saussure/YouTube]
Igor Brasil conta os desafios e as peculiaridades de tocar afrobeat no seu instrumento. “A guitarra quase nunca é solista, é uma guitarra de base.” Para ele, tocar nesse estilo exige “gostar de acompanhar, e o guitarrista geralmente gosta de solar”. Ele explica que há uma lógica para todos os instrumentos de base no gênero: “Tem que se policiar para tocar menos, não é para ninguém tocar mais do que o necessário. Cada um faz o seu groove, acha o seu espaço nele e tenta se colocar. Tenta tocar junto com os outros, se completar”.

As canções de Fela Kuti, por exemplo, têm em média 15 minutos de duração – nos anos 1980 chegaram a passar de 25 minutos. Começam com todos os instrumentos montando uma base harmônica, geralmente entrando um a um. Eventualmente, os sopros começam a melodia e os contracantos. É hora, então, de um solo de saxofone. Depois de muita improvisação e minutos de música, chega finalmente a letra. Após mais vários minutos cantados, Fela parte para outro extenso solo, desta vez de teclado (a ordem dos instrumentos solistas às vezes se inverte). Em seguida, a melodia volta, e nos últimos segundos, se altera para um desfecho rápido.

Capa do álbum Teacher Don’t Teach Me Nonsense, de 1986. Fela executava diversos solos de saxofone nas suas músicas [Imagem: Barclay Records/Wrasse/MCA Universal]
As bandas de afrobeat brasileiras alteram um pouco a estrutura do gênero. Para começar, a duração das músicas não é tão extensa, segue os moldes mais comuns e palatáveis ao público. Outra característica observada é a inserção de ingredientes nacionais no afrobeat, formando um estilo único. Para Igor, a busca por uma originalidade está justamente na mistura com a música brasileira.

Por fim, uma diferença marcante é o fato de muitas das bandas brasileiras serem totalmente instrumentais, sem vocais. Isso mostra como o afrobeat brasileiro atual é muito mais um ode à sonoridade da música africana.

Apesar da significância cultural, o gênero é pouco conhecido no Brasil, e ocupa principalmente o cenário underground. Igor acredita que isso é uma questão de investimento escasso e falta de acesso aos meios de divulgação, já que musicalmente o afrobeat teria todos os elementos para chegar às pessoas: é dançante, tem conteúdo melódico de qualidade e letras profundas e expressivas. “Para mim, é uma forma de expressão bem forte, que tem um impacto direto, que alcança muito”.

De fato, o grande alcance do afrobeat já foi provado. O prestígio dentro do meio musical também é vultoso. E sua relevância histórica é indiscutível. Ainda assim, os artistas seguem brigando por espaço e pela disseminação do estilo. Para talvez, um dia, todos conhecerem fãs de afrobeat, ou até mesmo o serem.

Fela Kuti e sua segunda banda, Egypt 80, tocam trecho da música Beasts of No Nation em Paris, 1984

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima