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De todas as formas: nascer

Um retrato da realidade do parto no Brasil

Por Renata Souza

renatasouza@usp.br

O Brasil é o segundo país que mais realiza cesáreas em todo o mundo. O percentual de 55,5%, em 2018, está muito acima dos 15% recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, nos últimos anos houve maior movimentação em defesa da humanização do parto.

Mas o que significa o nascimento humanizado? Qual procedimento tem sido mais comum no Brasil? E como os especialistas encaram a situação do país?

O parto humanizado não consiste em um procedimento específico, mas sim em uma ideologia. A filosofia da humanização está associada ao protagonismo da mulher durante um dos momentos mais íntimos de sua vida, incluindo portanto além do nascimento, o pré e pós natal. Nesse cenário, a gestante é responsável por cada escolha: se gostaria de ter ou não um acompanhante, em qual posição gostaria de parir e se gostaria de estar em casa, no hospital ou em qualquer outro ambiente.

No debate sobre a humanização, a inclusão da cirurgia cesariana é polêmica. Segundo Ana Karoline Silano, doula voluntária no Hospital Geral de Carapicuíba, na zona Oeste de São Paulo, “você não consegue fazer a cesariana totalmente humanizada, porque tem muita intervenção médica. Você precisa de uma equipe muito boa e um hospital que aceite isso”. Por outro lado, algumas mães defendem que sim, a gestante pode ser protagonista durante a cirurgia.

Já em relação ao crescimento na busca pelo parto humanizado, Ana Karoline acredita que o fenômeno pode ser entendido como “efeito dominó”. Ou seja, a expansão do discurso feminista, que incentiva o empoderamento, contribui para que se tome consciência ao fato do parto ser absolutamente pertencente à mulher, uma vez que se trata do seu corpo. “Envolve muito da sexualidade, que envolve muito do respeito aos meus limites, do que eu quero e do que eu não quero”.

 

A epidemia das cesáreas

Apesar do crescimento no debate pela naturalização, a intervenção cirúrgica ainda é predominante no nascimento de brasileiros. Segundo o ginecologista obstetra Guillermo Pascual, a cesariana é recomendada “principalmente quando a paciente já fez duas cesáreas anteriores ou nos casos de hipertensão grave (pré eclampsia e eclampsia)”. Nos casos em que há indicação, a intervenção cirúrgica é, de fato, importante. O que preocupa, porém, são os procedimentos realizados sem justificativa médica, que representam um percentual expressivo do total do país.

A cesárea eletiva ocorre quando o tipo e a data do parto são escolhidos sem necessidade prévia na gestação. De acordo com o obstetra, esse procedimento pode ocorrer, ainda que o desejável seja ter uma justificativa, “lembrando que pode haver consequências tanto para o pós operatório da mãe quanto para o recém nascido, nos casos de desconforto respiratório”.

Para o médico, a opção pela intervenção está associada, principalmente, ao comodismo e ao medo da dor do parto. Entende-se a cesárea é conveniente tanto para a gestante quanto para o médico, na medida em que pode ser planejada e terá duração muito menor do que o parto normal. Além disso, socialmente o parto normal se estabeleceu como um tabu, seja em relação ao pavor provocado pelo trabalho de parto, seja pela preocupação com a anatomia e fisiologia da região pélvica após o parto vaginal.

Camila Medeiros, doula e mãe, afirma que hoje a gente tem uma sociedade que não acredita no parto normal. “Não acredita que a mulher tem condições de parir. Nós somos colocadas como pessoas fracas, pessoas que não conseguem. Um pouco porque você de fato têm partos muito violentos, principalmente no SUS, mas nos hospitais particulares também há muitos relatos.” Ela complementa que isso ocorre “porque foi se vendendo uma cultura de cesárea, de que a cesárea era salvadora. Por que que você vai sentir dor? Vai pra cesárea.”

A associação do processo à esterilização também é apontada como causa da extrema incidência da cirurgia. Isso porque muitas vezes a laqueadura, procedimento no qual há o corte ou ligamento das tubas uterinas, é realizado durante a cesárea.

 

O parto no Brasil ao longo da história

Por muitos anos o parto foi realizado pelas aparadeiras, parteiras ou comadres de forma natural. Recentemente uma pesquisa foi publicada afirmando que a primeira cesárea que obteve sucesso ocorreu no ano de 1337, em Praga. O registro anterior datava de 1500, quando uma gestante foi operada por seu marido, na Suíça.

Ainda assim, o procedimento só se tornou parte da prática obstétrica no século XVIII. Chegou ao Brasil em 1808, com a inauguração das escolas de medicina e cirurgia.

Mas, por muito tempo, as mulheres se recusaram a frequentar hospitais durante a gestação e o parto. Nesse sentido, a virada na expressividade da cesárea nos percentuais do país é recente. Segundo dados do Instituto Nacional de Assistência da Previdência Nacional (INAMPS), o índice da cirurgia no Brasil era de 14,6% em 1970 e atingiu mais que o dobro do percentual apenas dez anos mais tarde, em 1980, com marca de 31% de cesariana.

Há alguns anos, o Ministério da Saúde, seguindo recomendações internacionais, orienta que se diminuam os índices de cesáreas injustificadas no país. O órgão público realizou medidas como o Programa Rede Cegonha, que garante que “toda mulher tem o direito ao planejamento reprodutivo e atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério (pós-parto), bem como as crianças têm o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis”. Em 2015, houve queda de 1,5 ponto percentual no valor total de cesarianas realizadas no Brasil.

 

Com a voz: uma mãe

Apesar de versões serem dadas pelas mais variadas personalidades, uma fonte é crucial: a gestante. Camila Medeiros, além de doula, é mãe de João Pedro, de 4 anos, nascido através de uma cesárea e Maria Luiza, de 3 anos, nascida por meio de um parto domiciliar.

Em sua primeira gestação, Camila esteve em trabalho de parto por mais de dez horas, quando optou pela intervenção cirúrgica em um hospital particular. Ela diz que o cansaço e a pressão por parte do médico a fizeram tomar essa decisão. “O obstetra foi pro hospital por volta de umas 15h. Eu dei entrada no hospital 11h. Decidi pela cesárea por volta de umas 21h e o João Pedro nasceu era umas 22h30. Eu imagino que ele estivesse com um pouco de pressa. Porque ele poderia ter deixado a coisa fluir de uma forma natural”.

Antes de decidir pela cesárea o procedimento já havia deixado de ser natural. “Hoje eu vejo claramente que todas as intervenções que foram feitas, não teriam necessidade de serem feitas”. Durante o processo de trabalho de parto, Camila recebeu uma dose de ocitocina artificial (hormônio utilizado para iniciar ou regularizar contrações). Segundo ela, após a aplicação as dores se intensificaram, fazendo-a pedir pela analgesia.  

Após 1 ano e 10 meses, Camila descobriu que estava grávida novamente. Durante a gestação, concluiu seu curso de formação como doula e decidiu que seu parto, além de humanizado, seria domiciliar.

 

O nascimento em casa

O parto domiciliar ocorre em casa, na presença de uma equipe escolhida pela gestante. No caso de Camila, a equipe era composta por três parteiras e uma doula, além de uma médica que poderia ser acionada em caso de emergência.

Camila Medeiros optou pelo parto domiciliar em sua segunda gestação. [Foto: Evelyn Angel]

É importante lembrar que a parteira é a profissional formada como obstetriz e não pode realizar partos vaginais de alto risco. Por outro lado, o enfermeiro obstetra possui graduação em Enfermagem, pós graduação em Obstetrícia e, além das funções da obstetriz de realizar parto normal, é apto a atuar na UTI, Pronto Socorro, Pediatria e outros. Já o obstetra é formado como médico ginecologista e, mais do que o parto normal, pode também realizar a cirurgia cesariana. Ambos os profissionais atuam no pré natal, parto e recuperação da mulher.

Em contrapartida, a doula é a figura responsável por prestar apoio físico e emocional para a gestante durante todo o trabalho de parto. “São muitos tipos de doula e depende da especialização” afirma Ana Karoline Silano. Ela explica que existem profissionais gerais ou específicos para o pré, nascimento e pós. No entanto, não é função da doula realizar procedimentos técnicos como escutar o coração do bebê, medir a pressão da mãe ou fazer o exame de toque.

Para muitos especialistas, o parto fora do ambiente hospitalar é arriscado. Segundo o ginecologista Guillermo Pascual “os riscos para o parto domiciliar estão relacionados às condições de higiene e patologias, como a atonia uterina”. Essa complicação consiste na hemorragia pós parto, que aflige a mãe. Já para o recém nascido, o médico afirma que “os primeiros cuidados e a avaliação do neonatologista são importantes”.

Em razão disso, é essencial que a gestante não possua alterações em seu prontuário médico, caso opte pelo parto em casa. Camila assegura que “o parto domiciliar é extremamente bem desenhado. Não é qualquer pessoa que pode ter, não é em qualquer gestação”.

Camila e seu marido após o nascimento de Maria Luiza. [Foto: Evelyn Angel].

O nascimento da Maria Luiza, filha da Camila, ocorreu da maneira como foi planejado. Não houve emergências, de modo que a médica de segurança não precisou ser acionada. A recuperação do parto foi, segundo ela, melhor que a de sua cesárea. Apesar do cansaço e de ter sofrido uma laceração natural (rasgo na região perineal) que exigiu sutura, em cinco dias já se sentia capaz de realizar todas as suas atividades.

 

Mas à quem chega a humanização?

Segundo a doula Ana Karoline, “é muito difícil você achar uma mulher que quer parto humanizado que não seja feminista ou que não tenha um pensamento baseado no feminismo”. Esse acontecimento está relacionado a base ideológica de empoderamento que carrega a humanização.

E, para além do fator conceitual, o parto humanizado também é pouco acessível por possuir um alto custo. Durante a entrevista, Camila Medeiros afirmou conhecer equipes de parto que cobram até 15 mil pelo deslocamento dos profissionais e equipamentos necessários.

Equipe de parto humanizado formada por três parteiras e uma doula. [Foto: Evelyn Ange].

Por isso, algumas iniciativas tentam tornar essa forma de nascimento mais popular. É o caso da disponibilização de doulas voluntárias em hospitais e a criação de casas de parto públicas.

Em São Paulo existem duas instituições gratuitas: a Casa de Parto Sapopemba, na zona leste, e o Centro de Parto Humanizado Casa Angela, na zona sul. Ambas atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

A coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Ensino e Consultoria da Casa Angela, Carina Barreto, afirma: “aqui a gente quer que a mulher seja protagonista do parto”. A parceria da instituição com o SUS começou em 2015 e, de lá pra cá, tem atendido uma média de 150 pré natais e 40 partos por mês.

Os pré requisitos para que a gestante possa dar à luz na instituição são:  ter risco de parto habitual, ou seja, não apresentar alto risco e não ter feito uma cesárea anterior. Já para garantir a gratuidade é necessário fazer o pré natal pelo sistema público (pode ser feito na Casa Angela a partir da 28º semana). Também é possível utilizar o espaço por meio de pagamento, mas o percentual desses casos é muito menor, representando cerca de 2% do total.

Durante a gestação a mulher desenvolve o seu plano de parto, no qual explicita todas as suas vontades para o dia do nascimento na instituição. Esses desejos vão desde a aromatização do seu quarto até a qual hospital gostaria de ser levada emergencialmente.

Corredor dos quartos na Casa Angela. [Foto: Renata Souza]

Outro fator importante é que a unidade, que conta com seis quartos e dois alojamentos conjuntos, procura não realizar intervenções durante os partos. Segundo a coordenadora, em 10% dos procedimentos o rompimento da bolsa é provocado e em 7% há a aplicação da ocitocina artificial. Fora isso, alguns métodos não farmacológicos podem ser realizados para atenuar a dor. Tais como, compressa de água quente, nascimento na água, massagens ou utilização da posição vertical durante a etapa expulsiva do parto.

Em casos de anormalidade durante o processo, a Casa dispõe de ambulância 24h para realizar a transferência da gestante para o hospital.

E no sistema público convencional, como estão os partos?

No imaginário de muitas pessoas, a realização do parto fora dos hospitais privados está associada a baixos índices de cesárea e extrema violência.

De fato, os índices de partos vaginais nos hospitais públicos equivalem a  59,8%, superando a taxa de intervenção cirúrgica. Para o obstetra Guillermo Pascual, que atende a rede particular, a diferença está associada ao poder socioeconômico dos pacientes: “se você atende em hospital privado, o próprio paciente te exige uma decisão e muitas vezes te coloca em situação delicada. Enquanto no público já se espera o parto normal com mais parcimônia”.

Já no que se refere aos níveis de violência, uma pesquisa de 2010 da Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC) afirmou que uma a cada quatro brasileiras foram vítimas de violência obstétrica. Apesar disso, não existem dados conclusivos a respeito dos casos serem mais ou menos comuns na rede pública.

Em despacho publicado no último dia 03, o Ministério da Saúde recomendou evitar e, possivelmente, abolir o termo “violência obstétrica” no uso de políticas públicas. Segundo o documento, a expressão é inadequada porque  “acredita-se que, tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas, não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”.

O Ministério Público Federal (MPF) orientou que o MS volte atrás na decisão, considerando violência obstétrica uma “expressão já consagrada”, utilizada inclusive pela OMS. O MPF ainda sugeriu que o órgão “atue contra a violência obstétrica em vez de proibir o uso do termo”.

 

Quanto ao futuro…

Com a relativa desaceleração do crescimento nos índices da cirurgia cesariana e o aumento na discussão pelo parto humanizado, o futuro dos nascimentos no Brasil é incerto.

Após as constantes recomendações da OMS, o governo brasileiro começou a investir em políticas públicas de apoio ao parto normal. Em 2016, o Conselho Federal de Medicina por meio da Resolução Nº 2.144/2016 instituiu que a cesárea só poderia ser uma decisão da gestante a partir da 39º semana. A medida visa diminuir os riscos para a mãe e o recém nascido, que antes dessa data poderia não estar completamente formado.

O ginecologista Pascual acredita que “em curto prazo teremos mudanças, pois estão havendo campanhas e engajamento de alguns hospitais para isso. Inclusive, órgãos competentes já questionam os honorários para parto normal e humanizado”.

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