Por Bruno Richard
brunrich@usp.br
O ato de contar histórias ocorre através de diferentes mídias, como cinema, teatro e novela, mas poucas são tão estereotipadas quanto os quadrinhos, especificamente, aqueles lidos no sentido oriental, os mangás. Normalmente apenas relacionados a enredos com batalhas e público alvo infanto juvenil, a exemplos de Dragon Ball e Naruto, esse canal tem seu potencial de pluralidade subestimado. A obra Boa noite, Punpun (Oyasumi Punpun), de Inio Asano, publicada no Brasil pela editora JBC desde janeiro de 2019, quebra esse paradigma ao retratar a capacidade desse canal de abordar temas profundos e pesados da consciência humana através da linguagem singular dos desenhos.
Antes de iniciar a resenha, há uma ressalva de grande importância: a obra é densa e o autor não tem intenção nenhuma de poupar o leitor da crueza dos acontecimentos e dos pensamentos dos personagens. A classificação indicativa marcando 18 anos tem um propósito.
A obra narra a história de Punpun Onodera, desde a infância até o início da fase adulta, que orbita sua vida ao redor de Aiko após ser impactado por um amor à primeira vista. Vivendo em uma família desestruturada, cuja violência doméstica se faz presente, e sonhando ser astronauta para colonizar as estrelas, Punpun progressivamente parte da criança sonhadora e cheia de potencial para o jovem adulto com distúrbios psicológicos cujo amor vivido na infância acaba tornando-se seu único ponto de refúgio e esperança.
O quadrinho é recheado de simbolismos, entre eles o mais notável é a representação visual do personagem principal, um desenho simples semelhante a de um passarinho sem asas. Seria a própria visão do protagonista sobre ele mesmo? Ou, um recurso estilístico para que o leitor possa projetar-se em Punpun? A ausência de asas tem relação com o sonho de colonizar as estrelas? É difícil responder a essas perguntas e todas as outras subsequentes, mas a surpreendente capacidade narrativa de amarrar o enredo e de deixar as informações subentendidas atiçam o leitor a criar teorias com o intuito de desvendar os “mistérios”, enquanto permeia os mais variados temas existenciais.
Religião
“Querido Deus, querido Deus, brilha brilha lá no céu”, essa é a oração que Punpun aprendeu com seu tio Yuichi Onodera para invocar aquele que o faria companhia nos momentos solitários, Deus. Aqui se destaca outro aspecto recheado de símbolos, a projeção mental da entidade divina é representada como um homem negro, cuja personalidade é irônica e debochada.
O Personagem “Deus”, constante durante toda a história mas principalmente nas crises do passarinho, zomba de Punpun em todas as suas fases de transformação e atua como alívio cômico. Em contraste com a idealização às divindades ele é o personagem mais avesso às regras morais. Quem exatamente é esse personagem? Seria realmente Deus ou uma representação do próprio subconsciente do protagonista, o ID teorizado por Freud? O questionamento não é apenas do leitor. O incômodo e as possíveis relações alegóricas com esse ser só aumentam com o desenrolar dos acontecimentos.
Sexualidade
O tema é tratado em todas as fases da vida do protagonista. Durante a infância, as crianças têm curiosidade sobre o que é sexo e, com a dose certa de ingenuidade e malícia, tentam obter informações escondidas sobre o tema. O narrador, com sensibilidade e crueza ímpar, expõe até a descoberta da masturbação pelo personagem principal, além de representar o orgasmo de forma abstrata. Nesse ponto um claro contraste quanto ao gênero é destacado, enquanto os meninos esforçam-se para adentrar o universo do sexo através da pornografia, as meninas tendem a enxergar tais atitudes com asco e nojo.
Nas fases posteriores todas as cenas de sexo ou as que fazem referência à sexualidade estão ainda mais carregadas de culpa e, em certos momentos, atreladas à religião. Além disso, temas como abuso sexual, adultério e pedofilia são expostos, o autor evita maniqueísmos para tal, porém nesse processo surgem questões sobre os limites da arte. Deveria haver restrição quanto a temática? Representar através da arte um crime também é um crime? O autor provoca o leitor do ponto de vista ético diversas vezes. De todo modo, as ações não são gratuitas e muito menos sem consequências.
Mudanças e auto imagem
A obra pode ser comparada a um importante livro da literatura de Aluísio Azevedo, O Cortiço. Há a impressão de que o quadrinho, assim como a narrativa do brasileiro, é um romance científico, em que o narrador se comporta como um cientista e observa os fenômenos sociais como quem observa uma experiência. No caso, Inio Asano analisa como a sociedade atual transforma as pessoas em indivíduos com tendência à depressão.
No decorrer das mudanças do protagonista, Inio Asano utiliza as ferramentas inerente aos mangás. O autor modifica o aspecto físico de Punpun de acordo com o estado psicológico do personagem. Em dado momento, nem ele mesmo se reconhece mais, “é assim que meu rosto sempre foi…?”, tal fala escancara os transtornos de identidade vividos.
Niilismo e Angústia existencial
A história ambienta-se no Japão do início do século XXI, período marcado pela ausência de guerras e otimismo com o futuro das crianças. Punpun, como qualquer outra criança nascida nesse período, possui vários sonhos e durante o desenrolar cronológico da história vemos sua frustração em não alcançá-los. Tal relação entre idealização quanto ao futuro e o desencanto com a realidade é marcada com a maioria dos personagens apresentados.
“Afinal a vida é assim, você colhe o que planta”, essa fala do tio do Punpun dita para orientá-lo durante a transição da adolescência à fase adulta introduz a ética cuja responsabilidade sobre as ações são atribuídas apenas ao próprio indivíduo, ou seja, segundo Yuichi, o meio não determina o ser e as pessoas tem liberdade plena de escolha. Tal acréscimo contrasta com a aparente intenção do autor com a obra. A partir daí aumenta ainda mais a angústia vivida pelo protagonista e pelo leitor que o acompanha.
As personagens estão em constante reflexão sobre sua função no mundo, analisando sobre o passado e se realmente vale a pena viver. O suicídio se torna uma constante possibilidade para alguns personagens, e faz-se questionar se há o risco de servir como gatilho para algum leitor com histórico depressivo ao abordar tal temática. Durante esses momentos, o autor abusa da tinta preta para ambientar os momentos de ansiedade, permeia a escuridão e utiliza alegorias visuais para retratar a agonia vivida. Em algumas passagens, a obra exagera nas reações sobre os acontecimentos, fato que algumas vezes é intencional, mas outras, soa caricata.
Boa noite, Punpun trata de temas como depressão, ansiedade e tristeza mesclada de exagero e sutileza, que só poderia ser alcançada através da linguagem dos quadrinhos. Os personagens são complexos, podendo gerar raiva em dada situação, mas compaixão e identificação na seguinte. A obra não se propõe a apenas entreter, é um convite à reflexão e, mais ainda, à experimentação de novas sensações através da arte.
A resenha mais técnica que eu encontrei até o momento sobre essa obra. Gostei da despretensiosa abordagem levando em conta que, no geral, histórias em quadrinhos são subestimadas a ‘livrinho de criança’, tema que foi apontado no início da análise.