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A realidade dos quadrinhos sul-coreanos no Brasil

Como os manhwas tão populares na internet e nos meios digitais ocupam um espaço pouco explorado nas estantes das livrarias brasileiras

As relações diplomáticas entre Brasil e Coreia do Sul tiveram início em 1959. Desde então, as relações entre esses dois países não ficaram apenas no campo político. Em meados dos anos 2000, a terceira onda coreana, conhecida como hallyu, expandiu elementos culturais sul-coreanos pelo Ocidente. Especialmente por meio da música, com o K-pop, e em alguns países, como o México, por meio das produções televisivas, os chamados K-dramas, que hoje estão disponíveis em vários idiomas nas mais diversas plataformas de streaming. 

Apesar do Brasil ser um grande consumidor de cultura pop coreana, a absorção de elementos do país asiático não é homogênea entre os setores artísticos. Na literatura, em especial de quadrinhos — chamados de manhwas — crescem de forma lenta no Brasil.  

 

A realidade das publicações sul-coreanas no Brasil

Em um levantamento feito pela revista Cajueiro das publicações feitas entre 2004 e 2020, foram identificados cerca de 20 títulos sul-coreanos existentes no Brasil, divididos entre os mais diversos gêneros: drama, fantasia, terror ou boys love. Apesar da diversidade temática, a quantidade de publicações ainda é pouco expressiva no país, em especial se comparadas a outros tipos de literatura estrangeira importada, como a estadunidense e a japonesa. 

Em comparação com os mangás japoneses, que são publicados no Brasil desde 1988 e possuem lançamentos mensais e séries longas, os manhwas sul-coreanos geralmente têm suas publicações feitas em menor frequência.

 

Desenho de homem branco com cabelo liso preto de roupa azul olhando fixamente e sério.
A série de mangás Vagabond possui 37 volumes e está em publicação pela editora Panini no Brasil. [Divulgação/Panini]

 

Para a criadora de conteúdos sobre quadrinhos no canal Fora do Plástico Mariana Viana, para que haja um crescimento no interesse e nas publicações de quadrinhos dessa nacionalidade, é necessária uma construção de políticas públicas de incentivo, uma vez que a cultura japonesa dos mangás está sendo importada há muito tempo e, por isso, já está muito enraizada o que não aconteceu com os manhwas. 

Em complemento a essa fala, a leitora destaca o exemplo do público franco-belga, que é o segundo maior consumidor de mangás do mundo, atrás apenas do Japão. Esse caso ajuda a desenvolver uma reflexão mais profunda sobre o espaço pouco explorado dos quadrinhos coreanos no Brasil: “O mercado franco-belga absorve muito mangá, muito mais do que nós [Brasil], mas absorve também muitas coisas de outros países, porque o mercado franco-belga é muito maior do que o nosso e muito mais maduro do que o nosso: tem muito mais gente lendo, tem muito mais gente com poder de compra. Essa é uma questão de incentivo à cultura, o que nós não temos no Brasil.”

Mariana também acredita que a falta de espaço dos quadrinhos sul-coreanos no Brasil não está relacionada com a qualidade dos quadrinhos sul-coreanos, nem com a quantidade de brasileiros que os quer ler: ”Está relacionado com problemas econômicos que nos afetam e que, se nós não tivermos medidas econômicas eficazes, vão continuar a nos afetar.”

 

“Para ser aceito pelo público, basta ser uma boa história.”

– Bruno Zago, editor da Pipoca e Nanquim

 

Em entrevista para a Jornalismo Júnior, Bruno Zago, editor da Pipoca e Nanquim, uma das editoras brasileiras que se destacam na publicação de manhwas, comentou que eles “têm tudo para se popularizarem muito aqui no Brasil” e afirmou que a expectativa de novas produções é grande na sua e em outras editoras. 

Bruno explica que há uma dificuldade em conseguir contatos para tornar viável a publicação de manhwas no país, mas deixa claro que “não é uma dificuldade incontornável”, o que abre o mercado brasileiro para receber cada vez mais obras sul-coreanas. 

 

A febre das webtoons 

Diferentemente do consumo de manhwas impressos, que é menos comum, nos meios digitais o Brasil se consolida como um dos grandes consumidores de quadrinhos sul-coreanos. São as chamadas webtoons, nome que se origina da junção entre as palavras em inglês web (rede) e cartoon (animação ou desenho). 

O sucesso das produções coreanas no meio tecnológico é o que o jornalista Paul Gravett em seu livro Mangasia – The Definitive Guide to Asian Comics (2017) chama de “o efeito digital”: com o declínio do mercado editorial coreano para a impressão de quadrinhos, a transição para o digital foi muito mais rápida e também necessária para atravessar essa dificuldade. 

Em 2005, a Coreia do Sul alterou o modelo da internet de discagem para a internet banda larga, o que a consagrou como a primeira nação da Ásia a adotar essa medida. Grandes sites como o Daum e o Naver, ao perceberem a mudança de comportamento dos consumidores a partir dessa novidade, contrataram quadrinistas para a criação de histórias exclusivas, disponibilizadas nesses portais. 

Em pouco tempo essas plataformas continham quadrinhos em inúmeras línguas e que se popularizaram por todo o mundo. No Brasil, por exemplo, não é incomum encontrar fãs que traduzem para o português os quadrinhos mais populares no exterior.

Disponíveis gratuitamente, as webtoons podem ser criadas por qualquer autor, conhecido ou desconhecido, sul-coreano ou não. Ao ser publicada, pode ganhar inúmeros leitores e se tornar um sucesso mundial. É o caso de Yumi’s Cells, de Lee Dong-geon, com cerca de 186 milhões de visualizações no site oficial Webtoon e 656 mil seguidores, que ganhou adaptação com duas temporadas pela emissora sul-coreana TVN. 

O editor Bruno Zago, ao comentar sobre o mercado dos mangás japoneses no Brasil, afirma que, pelo fato do público conhecer muitas histórias a partir das adaptações em animes, isso motiva a procura pelos mangás. O mesmo pode acontecer com as webtoons que originam adaptações para a televisão. 

 

A esquerda, um desenho de um garoto pardo com cabelos pretos longos e camiseta azul escura. A direita, um homem com essas características imitando o manhwan.
Estrelado por Kim Go-Eun e Ahn Bo-Hyun, a adaptação de Yumi’s Cells foi elogiada pelo autor da webtoon: “Eu me apaixonei pelo drama Yumi’s Cells e estou realmente gostando. Eles parecem vivos”. [Reprodução: Lee Dong-geon/TvN]

 

Outros sucessos televisivos que nasceram das webtoons são Pretendente Surpresa (The Office Blind Date, 2022), All of Us Are Dead (2022) e Itaewon Class (2020), produzidos pela Netflix.

Diante do sucesso das webtoons no mundo, novas portas se abrem para as edições impressas. O público se engaja com as histórias que consome e pressiona editoras para trabalharem em publicações impressas inspiradas pelas narrativas. “A primeira forma de um leitor pressionar a editora é com venda. Então, se um quadrinho tem uma performance muito boa, dá para saber que tem potencial, talvez, para emplacar aquele mesmo autor ou alguma história naquele mesmo tema”, comenta Mariana, do Fora do Plástico. “Outra forma também é a rede social. Hoje em dia nós conseguimos ter um contato muito mais próximo: você não precisa mandar cartas, não precisa mandar e-mail, você pode encher o Instagram daquela editora de mensagens pedindo um manhwa específico, ou de um tema específico.”

Assim como Mariana, o editor Bruno confirma a efetividade dessas ações: “É comum um licenciante perceber o sucesso de uma determinada obra e oferecer mais para a editora”. Além disso, ressalta queos leitores, com o sucesso das webtoons, pedem muito para serem publicadas mais obras sul-coreanas aqui”. 

 

O surgimento das histórias em quadrinhos na Coreia do Sul

Os manhwas (만화, em coreano) surgiram no ano de 1909 na Coreia, antes da ocupação japonesa no país, que durou de 1909 a 1945.        

Um desenho de ratos em preto e branco.
Lee-Do Yeong publicava caricaturas, que eram muito populares nos jornais da época e integravam as chamadas “tiras de quadrinhos” ou “tiras cômicas”. Na foto, um trabalho do autor de nome “Imitating Others”. [Reprodução/Lambiek]

 

 

Lee Do-Yeong foi o cartunista a publicar o primeiro manhwa moderno. A história era do gênero satírico e se chamava Saphwa. Sua publicação aconteceu em um importante jornal da época, o Daehanminbo (Korea People’s Daily), posteriormente proibido pelo governo japonês. 

Até o ano de 2003, outros países não conheciam os manhwas. Apenas após a Coreia do Sul ser convidada de honra no Festival de Angoulême, nesse mesmo ano, o país pôde vivenciar uma exportação em massa de suas histórias em quadrinhos. 

 

Duas capasd e manhwas, um a esquerda em preto e branco, e um colorido a direita.
O manhwa Priest, é a inspiração principal para o filme homônimo de Hollywood, com Lily Collins e Karl Urban no elenco. [Reprodução/Wikipedia]

 

Parte do sucesso em outros países se dá ao fato de que nas histórias em quadrinhos sul-coreanas há espaço para várias narrativas. 

 

 

 

A resistência dos manhwas ao longo da história sul-coreana 

No século 20, durante os anos de ocupação e dominação japonesa na Coreia do Sul, os manhwas e a livre expressão artística foram amplamente censurados.

Na década de 1920, o poder japonês determinou o fim dos jornais políticos, nos quais eram publicados quadrinhos e tirinhas de teor crítico-social. Nesse momento, os quadrinhos do gênero myeongnang, voltados ao público infantil, eram os que tinham maior permissão para circularem nos jornais e publicações oficiais. 

Em oposição a esses esforços proibitivos, em 1945 houve a publicação da primeira revista inteiramente dedicada aos quadrinhos na Coreia, intitulada Manhwa Haengjin. 

Alguns anos depois, em 1968, frente à popularização dos quadrinhos com o surgimento dos manhwabangs (mangá-cafés, locais onde se podia alugar um espaço para ler quadrinhos), um comitê de ética com amplos poderes de censura foi criado no governo sul-coreano e, em 1980, coloca na ilegalidade assuntos considerados sensacionalistas e violentos, o que resulta no cancelamento de publicações em 19 editoras diferentes.   

Ações como essa eram frequentes e foram responsáveis por acusar autores de diversos gêneros de quadrinhos de influenciarem negativamente a juventude com suas histórias. 

O Estado sul-coreano ultrapassou esse período de censura após identificar uma crescente venda de conteúdo japonês ilegal dentro do país, fruto da censura, a qual eles procuraram combater. Assim, o governo passou a oferecer mais incentivos para o mercado interno de manhwas, a fim de gerar competitividade com os mangás japoneses. 

Em contextos como esses, os manhwas persistiram como uma forma de resistência, expressão e entendimento do mundo para cidadãos de várias idades. Apesar das dificuldades históricas que essa indústria enfrentou durante quase um século, a partir dos anos 2000, iniciou-se a independência do setor. Os anos posteriores introduziram ao mundo um mercado forte e com um vasto campo de possibilidades, que liga os quadrinhos impressos ao campo televisivo, musical e midiático.

 

A esquerda, a foto de um garoto e um idoso coreanos com roupas, respectivamente, verde e amarela. A esquerda, um desenho igual. Há pos-its colado na cara do jovem na imagem e no manwha.
O drama Navillera (Netflix, 2021) foi inspirado em uma webtoon de sucesso e teve sua trilha musical interpretada pelo cantor Taemin, do grupo de k-pop SHINee, que ajudou a impulsionar o sucesso do drama. [Reprodução/MyDramaList]

Características estilísticas dos manhwas e de suas adaptações 

Uma caraterística importante dos manhwas é a ordenação da leitura: eles adotam o jeito ocidental (da esquerda para a direita, lendo os quadrinhos de cima para baixo), ao passo que os mangás japoneses, mais populares no Brasil, são lidos da direita para a esquerda, seguindo essa mesma ordem nos quadros de cada página. O motivo dessa ordenação é a ordem de escrita e leitura do alfabeto coreano, que é da esquerda para a direita. 

Na Coreia do Sul, o modelo de adaptação mais comum dos quadrinhos para a televisão são os K-dramas, que se assemelham a novelas. Eles contém episódios de uma hora, em média, e costumam ter uma temporada única. 

Um exemplo recente dessa transformação é a série Profecia do Inferno (Netflix, 2021). Sua origem é o manhwa The Hellbound, de Yeon Sang-ho e Choi Gyu-seok, e foi lançado no Brasil pela editora NewPop. 

Quanto ao estilo de desenho, é um aspecto que difere de acordo com a intenção e estilo do escritor. “Vai depender mais do autor e do gênero que ele se propõe a trabalhar.” Comenta Ing Lee, ilustradora coreano-brasileira e leitora de manhwas, em entrevista para a Jornalismo Júnior. “Existem manhwas independentes e autorais, e outros que vêm do webtoon e são focados em uma venda mais massiva.” Logo, as intenções de venda podem levar a uma diferença estilística. Ing também aponta a semelhança entre o traço do webtoon e dos mangás japoneses como exemplo desse objetivo comercial. 

 

A esquerda, um desenho em preto e branco, e, a direita, um colorido.
À esquerda, uma página do manhwa Grama, de Keum Suk Gendry-Kim, cujo traço é menos detalhista. A ilustração ao lado é a capa do webtoon Cursed Princess Club, que preza pelo realismo e é semelhante às ilustrações japonesas. [Divulgação/Amazon] [Reprodução/Facebook LINE WEBTOON]

 

O impacto social da literatura de manhwas no Brasil

O Brasil abriga atualmente cerca de 50 mil imigrantes sul-coreanos, que há muito se estabeleceram e passaram a contribuir culturalmente com a sociedade brasileira. Por isso, urge que suas histórias e vivências sejam conhecidas e incorporadas ao cotidiano do país, de forma a engrandecê-lo.  

Nesse quesito, a arte pode ser fundamental para a quebra de estereótipos e para um maior entendimento sobre a realidade histórica e social desses cidadãos. Segundo a ilustradora Ing Lee, contar aspectos da história dos sul-coreanos é fundamental: “Muitos dos manhwas que são trazidos para o Brasil têm uma narrativa que se propõe a ser mais disruptiva, principalmente os manhwas da Keum Suk Gendry-Kim.”

Manhwas como Grama (Pipoca e Nanquim, 2020) e A Espera (Pipoca e Nanquim, 2021) cumprem o papel de contar uma história que não é contada de outras formas, como nos livros didáticos de história ou pela mídia: “contestam questões envolvendo a guerra, questões envolvendo a separação da península e esse contexto cultural que não é abordado aqui, já que nós não estudamos história para além da euro-estadunidense”.

Os manhwas, então, são uma fonte de entendimento dessas realidades. Eles se destacam por abordarem temas sensíveis, novos pontos de vista sobre as vivências de um grande grupo de pessoas, sobre o sentimento familiar e o resgate de uma identidade amarela mesmo com a imigração para países ocidentais que ainda perpetuam o racismo contra esses indivíduos. São meios fundamentais para que essa luta seja conhecida e respeitada em sua legitimidade.

 

Quadrinho é para todos 

Assim como qualquer outro tipo de quadrinho, os manhwas e webtoons são um caminho para fomentar o acesso a diferentes culturas, além de incentivar o hábito da leitura. Segundo Waldomiro Vergueiro, professor e coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Universidade de São Paulo, em entrevista para o Jornal da USP, aumentar a presença desses títulos nas bibliotecas públicas e gibitecas ao redor do país ajuda a empurrar, aumentar ou incentivar o consumo de quadrinhos”. 

Quadrinhos podem ser uma porta de entrada para a leitura, e em alguns casos, são o formato que conquista e fideliza pessoas de diferentes gerações para o vasto universo que cada autor, gênero e cultura envolvida apresentam em suas páginas ilustradas. E, nesse viés, os manhwas têm enorme potencial para atrair leitores e ensinar mais sobre a Coréia do Sul para os brasileiros. 

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