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Entre o crime e a dúvida, “Anatomia de um julgamento” é um tributo à grande reportagem

A primeira vez em que ouvi falar em impugnação foi com o texto de Janet Malcolm. A expressão, conhecida entre os falantes do direito, pode denotar uma série de ações, a maioria associada ao ato de refutar. No caso de Malcolm, indica a contestação da escolha de um membro do júri por uma das partes …

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A primeira vez em que ouvi falar em impugnação foi com o texto de Janet Malcolm. A expressão, conhecida entre os falantes do direito, pode denotar uma série de ações, a maioria associada ao ato de refutar. No caso de Malcolm, indica a contestação da escolha de um membro do júri por uma das partes envolvidas — ora acusação, ora defesa —, justificada ou não pelos promotores e advogados. Avaliado pelo juiz, o pedido deve ir à frente ou virar história, com a nomeação de um jurado (talvez) infeliz para compor o tribunal.

Foi o caso de um sujeito chamado Stein, descrito como “um homem branco mais velho e corpulento”, funcionário do Departamento de Transportes da Cidade de Nova York. Ao se dispor a participar do julgamento de um homicídio, ocorrido em 2007 no bairro de Forest Hills, Stein foi alvo de imensa reprovação do advogado da ré, Stephen Scaring, que quase implorou para que fosse impugnado. “Olhem para ele”, protestava. “Seu cabelo tem corte perfeito, bigode, vem de um lugar conservador, trabalha para a cidade de Nova York.” Para Scaring, aquele era o “Senhor Jurado da Acusação”. Se outros como ele fossem admitidos, o advogado teria um enorme trabalho para inclinar o júri a favor da médica Mazoltuv Borukhova, estrangeira, judia e mãe de uma filha pequena. A acusação era de que o ex-marido, o ortodontista Daniel Malakov, havia sido morto a seu mando. Junto dela, defendido por Michael Siff, estava Mikhail Mallayev — o executor do crime, segundo a promotoria.

Apesar de Scaring, o juiz do caso, Robert Hanophy, posicionou-se ao lado de Brad Leventhal, o promotor principal, e deixou Stein como segundo jurado suplente. É em torno de momentos como esse que se faz a narrativa de Anatomia de um julgamento: Ifigênia em Forest Hills (Companhia das Letras, 2012), livro-reportagem de Malcolm, jornalista que acompanhou o julgamento de Borukhova e Mallayev em cobertura para a New Yorker. Aos que não estão acostumados com o universo penal — o livro, de uma história irresistível, não é restrito a especialistas —, Malcolm explica o porquê de comentar as impugnações: antes mesmo do julgamento, é preciso que os advogados reconheçam as possíveis inclinações dos membros do júri. “O processo de escolha dos jurados não é mais do que o reconhecimento de que o ideal de neutralidade é inatingível, e de que a tendenciosidade é inevitável”, diz a jornalista, em capítulo dedicado ao tema. Muitas vezes, os que ganham lugar no tribunal são os mais lacônicos, que dizem pouco ou quase nada — e não revelam sobre si.

Existem duas coisas que invejo em Janet Malcolm: as histórias que escolhe escrever e a forma como decide contá-las. Com força igual à que marcou O jornalista e o assassino (1990), a escritora, aqui, retorna aos processos judiciais — desta vez, para virá-los do avesso. As histórias de crime, muitas vezes transmitidas com descuido e exagero, ganham no livro complexidade e apuração, escapando aos maniqueísmos e a toda convicção que tiver o leitor. Mais do que atirar sentenças, a anatomia de Malcolm procura apontar ambiguidades, deixar as dúvidas em aberto, num tom que varia entre a agilidade narrativa e a incerteza implacável. Algo semelhante ao trabalho da Making a murderer — a série documental lançada pela Netflix em 2015 —, com a diferença de, neste caso, a desconfiança atingir a todos, incluindo o próprio fazer da justiça.

Ifigênia em Forest Hills

Para ilustrar as frágeis narrativas dos julgamentos, Malcolm finaliza seu terceiro capítulo mencionando o caso de uma tradução ambígua. A principal ligação entre os réus — Borukhova e Mallayev — na execução do crime em Forest Hills, a princípio, era a troca de 91 telefonemas ocorridos três semanas antes do assassinato. Com acesso a uma gravação, Leventhal chamou um perito do FBI para traduzi-la para o inglês (os réus, membros da seita judia bucarana, eram falantes de bucárico e russo). “A fita gravara uma dessas conversas irritantemente banais entre duas pessoas ao celular que ouvimos impotentes em trens e restaurantes”, dizia Malcolm, e, após horas, o júri já estava cansado de ouvi-la. Apenas nas últimas frases da ligação sua importância se revelou: Mallayev perguntara a Borukhova algo que, segundo o tradutor, teria sido “Você vai me fazer feliz?” — ao que ela, em seguida, teria assentido. A descoberta, é claro, era um prato cheio para a promotoria, que passou a traçar hipóteses de acordos criminosos e até mesmo de amor.

O que o promotor não esperava, possivelmente, era o confronto com uma segunda tradução, apresentada por Scaring. Segundo ele, a primeira expressão, obraduesh, poderia ser facilmente confundida com payadesh — que indicaria uma pergunta como “Você está caindo [‘descendo do carro’, no contexto]?”. A fita obtida no tribunal, com efeito, estava arranhada e difícil de ouvir. E ali surgia a trama: conforme os interesses das partes envolvidas, uma palavra, mesmo sem querer, poderia tornar-se outra. “Passamos a vida ouvindo mal, vendo mal e entendendo mal para que as histórias que contamos a nós mesmos façam sentido”, diz Malcolm. “Os advogados levam essa tendência humana a um nível superior.”

Malcom começou a cobrir o caso a partir de 2009, quando ele já vinha ocorrendo. Para recuperar informações, a jornalista recorreu às transcrições do julgamento. (Imagem: Reprodução)

Havia outras ligações entre os réus e o crime. Logo nos primeiros dias, a investigação policial começaria pelos três tiros, dados no peito e nas costas de Malakov. O ex-marido, também ortondontista, havia interrompido a tarde no consultório para levar a filha Michelle a um encontro com Borukhova, que via a menina de tempos em tempos. Michelle, na época — o ano era 2007 —, era absolutamente apegada à mãe, e o atirador, que apareceria de surpresa, pretendia ser discreto: o plano para o crime presumia um silenciador feito com uma garrafa de água sanitária, colada na arma com fita crepe — mas que, no fim das contas, acabaria falhando. Caído no chão, os policiais rastrearam no objeto as digitais e as encontraram em registros de uma infração leve cometida anos antes pelo primeiro suspeito, Mikhail Mallayev.

Após a morte, a polícia foi até a cidade de Chamblee, no estado da Geórgia, e prendeu o acusado. Distante da família de Borukhova e Malakov, no entanto, Mallayev era ainda uma suspeita incerta. “Por quê?”, perguntava Leventhal ao júri nas declarações iniciais. “Por que este réu ficaria à espera de uma vítima desprevenida e inocente?” A justificativa da defesa para as ligações telefônicas estava numa relação médico-paciente, mantida a partir de uma doença que a esposa de Mallayev enfrentava (e que Borukhova, por sua vez, vinha tratando). Mas o argumento contrário resgatava uma história de anos de conflito em outros tribunais. Além do divórcio pouco amigável, Daniel Malakov carregava, às vezes com testemunhas, acusações graves de violência doméstica contra Borukhova e de abuso sexual contra Michelle — e à longa disputa pela guarda da filha se associava o medo da mãe de perdê-la para um homem violento. À parte suas queixas, no entanto, o início de 2007 (e uma trágica ordem judicial) colocou Michelle para morar com o pai, em decisão que espantava a todos.

Após a ocorrência do crime, Malcolm dedicou-se a narrar o ambiente, os personagens, os procedimentos, tudo que marcou o julgamento de Borukhova e Mallayev. (Imagem: Reprodução)

É evidente, apesar das complicações (sobretudo de gênero) que se estendiam dali, que o objetivo do julgamento era avaliar um caso de assassinato. Se a história de Malakov procedia ou não, Leventhal acabou vendo nela um motivo — ao passo que Malcolm, que assistia à cena, encontrou seu título para a reportagem: na mitologia grega, Agamémnon sacrificou a filha Ifigênia para satisfazer a deusa Ártemis, a quem confiava o sucesso nas batalhas troianas. Em vingança, sua esposa, Climnestra, decidiu matá-lo.

O destaque se dá para a vida conjugal de Borukhova, tocando no direito familiar e abrindo espaço para juízes, assistentes sociais e personagens controversos, como o advogado David Schnall — representante de Michelle nos processos envolvendo os pais, apesar da clara antipatia por um deles. Foi por essas razões que Stephen Scaring, na quinta semana do julgamento, levou Borukhova ao banco das testemunhas: seu objetivo era fazê-la mostrar ao júri como ali, assim como nos anos anteriores, estava sendo uma vítima das circunstâncias e da justiça norte-americana, debilitada por suas falhas e preconceitos internos.

A arte da não ficção

Na edição da Companhia das Letras, Anatomia de um julgamento termina com uma entrevista de 2011, concedida por Malcom para a Paris Review. A entrevistadora era Katie Roiphe, na época professora do departamento de jornalismo da Universidade de Nova York (NYU). Nas perguntas feitas à escritora, Roiphe abordou temas como infância, literatura, o início da atividade jornalística, técnicas de texto e os julgamentos, que hoje totalizam três livros de Malcolm. “Julgamentos são oportunidades excepcionais para o exercício da crueldade jornalística”, afirmou a autora.

Durante a cobertura do caso Borukhova-Mallayev, Malcolm dedicou algumas passagens à descrição de seus colegas de profissão, os quatro jornalistas — “feitos da matéria mais dura”, segundo ela — que a acompanhavam. Embora menos forte, a crítica que o livro faz é semelhante à de O jornalista e o assassino: na medida em que a narrativa dos jornais reproduzia as cenas do tribunal, sem apuração mais extensa, a opinião pública estava sujeita à mesma retórica e mecanismos dali. “Quando as palavras malignas, muitas vezes caluniosas de advogados em luta são retiradas do contexto acalorado do julgamento e impressas em tipos frios”, disse Malcolm, “uma tortura nova e mais requintada é sofrida pelo objeto de abuso deles — que fica então exposto ao abuso do mundo”. Eventualmente, a escritora chegou a vigiar até a si mesma, corrigindo equívocos e colocando-se como personagem da história, sujeita a deslizes e parcialidades.

Além do mérito pelo enredo, o livro-reportagem ganha pela fluidez e clareza da escritora, que transforma a rotina dura do universo jurídico num texto atraente, capaz de envolver desde a introdução. Dividido em 30 capítulos, Anatomia de um julgamento: Ifigênia em Forest Hills é o penúltimo trabalho de Janet Malcolm — perdendo apenas para 41 inícios falsos, lançado no Brasil em 2016 — e leitura essencial para advogados, escritores, jornalistas e todos que mantêm o desejo de defender e contar boas histórias. Se, na entrevista, Rophia chama a obra da escritora de “arte totalmente diferente e original” (porque mistura jornalismo, romance e outros tipos de texto), o livro pode ser considerado, ainda sim, um caso feliz de grande reportagem, gênero mais bem sucedido na tarefa de organizar os eventos e embaraços do mundo. Mesmo as lacunas, incertezas e questões que Malcolm deixa em aberto, em vez de apontar as limitações da narrativa, revelam apenas as circunstâncias da vida real — sempre mais complexa e sublime em relação ao papel. Não há outra palavra: bravo!

Por Mariana Gonçalves
mariana.vick.goncalves@gmail.com

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